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Internacionalização soviética e tentativas de aproximação ao Brasil

Capítulo 2 – Modernização, descolonização e efeito-demonstração (1953-1959)

2.3 Internacionalização soviética e tentativas de aproximação ao Brasil

No Brasil, mesmo antes da morte de Stalin, existia muita curiosidade para saber qual era o cotidiano do outro lado da Cortina de Ferro. Renomados escritores brasileiros comunistas publicaram livros sobre suas viagens ao bloco soviético. Jorge Amado lançou O Mundo da Paz: União Soviética e Democracias Populares em 1951, e Graciliano Ramos teve o seu Viagem publicado postumamente em 1954 (o escritor falecera em 1953). Amado passou o inverno de 1948-49 na URSS, a convite da União dos Escritores Soviéticos. Também esteve na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária. Graciliano Ramos esteve na Tchecoslováquia e na URSS em meados de 1952. O livro de Amado tem forte tom militante, já o de Ramos se parece mais com um diário de viagem, razoavelmente descompromissado do ponto de vista político-ideológico352. Ambos os intelectuais circularam com desenvoltura pela elite cultural do bloco soviético; especialmente entre os literatos. Nessas visitas, os brasileiros sempre tinham à sua

350 Para tentativas de replicar o modelo soviético de desenvolvimento na África veja IANDOLO (2012). 351 BRUN; HERSH (1990, p. 135).

disposição uma espécie de cicerone/tradutor da Sociedade de Relações Culturais com o Estrangeiro (VOKS) da URSS353.

Relatos sobre viagens ao bloco soviético também começariam a aparecer nos jornais brasileiros. Convidado a participar de uma reunião do Conselho Mundial da Paz e do II Congresso de Escritores Soviéticos em 1954, em Moscou, o jornalista e escritor Marques Rebelo narrava em sua coluna diária no jornal Última Hora, no Rio de Janeiro, suas impressões do outro lado da Cortina de Ferro354. José Guilherme Mendes fez o mesmo pouco tempo depois. Suas reportagens, entrevistas e crônicas realizadas no bloco soviético foram publicadas no Correio da Manhã, na revista Manchete, e no diário baiano A Tarde355.

Muito menos conhecido que todas essas publicações, no entanto, é o livro do magistrado Osny Duarte Pereira, lançado em 1952. Em Juízes Brasileiros atrás da Cortina de Ferro, ele relata sua experiência como delegado brasileiro no V Congresso da Associação Internacional de Juristas Democratas em Berlim, realizado em setembro de 1951. Pereira também esteve na Tchecoslováquia, URSS e Polônia. Em Moscou, foi convidado pelo ministro da Justiça da URSS para um encontro informal356. Ainda na capital soviética, visitou o Conselho Soviético da Paz, onde encontrou seu presidente, Nikolai Tichonov, que era “companheiro de trabalho” da brasileira Branca Fialho no Conselho Mundial da Paz357.

353 Desde os anos 1920, essa entidade organizou a maior parte da propaganda soviética fora do país, especialmente organizando visitas de centenas de intelectuais estrangeiros à URSS. Na segunda metade dos anos 1950, no entanto, novas estruturas visando incrementar as trocas culturais e intensificar a propaganda internacional seriam criadas. No início de 1958, a VOKS seria substituída pela SSOD (União das Sociedades de Amizade Soviéticas). No ano seguinte, uma Associação da Amizade Soviético/Latino- americana seria fundada dentro de seu âmbito. Além dela, o Comitê Estatal para Relações Culturais (GKKS) seria fundado em 1957. O órgão seria responsável pela implementação da maior parte das atividades culturais soviéticas nos países estrangeiros. Seus funcionários colaboravam com os partidos comunistas locais, mas mostravam ‘certa distância’ do PCUS e buscavam representar o Estado soviético quando negociavam com autoridades de outros países. A administração de programas de rádio, literatura em línguas estrangeiras e agências de notícias estavam sujeitas ao GKKS. A entidade também seria subdividida de acordo com critérios geográficos. A partir de 1959, o futuro embaixador da URSS em Cuba e na Argentina e ex-agente do NKVD, Alexander Alexeyev, seria o chefe do setor de Assuntos Latino- Americanos. O GKKS seria extinto em 1967, a partir do advento de um Departamento Cultural dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros da URSS (MID). RUPPRECHT (2015, p. 31-33).

354 REBELO (2014).

355 MENDES (1956, p. 3). Sobre o livro de Mendes veja RUPPRECHT (2015, p. 171-73). Para mais impressões de autores brasileiros sobre a URSS nas décadas de 1950 e 1960 veja RUPPRECHT (2015, p. 145-47 e p. 173-75). Além dos autores mencionados por Rupprecht, veja PRADO Jr. (1967).

356 PEREIRA (1952, p. 371-378). O livro é oferecido ao presidente Vargas em agradecimento pela “segurança da viagem”.

Ao lado do advogado Margarino Torres Filho, Pereira iniciou uma viagem por países da América Latina, em novembro de 1952, a fim de “atrair” participantes para uma versão regional do evento do qual ele havia participado em Moscou: a Conferência Continental de Juristas Democratas, a ser realizada no Rio de Janeiro no mês seguinte. O Itamaraty julgava que se tratava de uma reunião de comunistas, e chegou a enviar um telegrama a todas as missões diplomáticas brasileiras nas Américas (com exceção de quatro, as quais já estavam cientes da situação), solicitando “evitar, com discrição, a concessão de visto a eventuais delegados”358. Apesar das dificuldades, o evento acabou ocorrendo entre novembro e dezembro de 1952.

O governo norte-americano se preocupava com essa internacionalização da agenda soviética, e compartilhava a inquietação e informações a respeito com seus aliados, incluindo o Brasil. A superpotência comunista avançava em instituições internacionais em duas frentes. Numa, integrava-se a agências, organizações e confederações concebidas e mantidas, majoritariamente, pelos países capitalistas ocidentais. Noutra, organizava, com ajuda dos outros países de seu bloco, associações de classe internacionais por meio de subsidiárias regionais com razoável capilaridade global.

Em relação à primeira frente, percebe-se que durante os anos 1950 a URSS tornou-se membro de mais de 200 organizações, como a Cruz Vermelha e o Comitê Olímpico Internacional, além de agências especializadas da ONU, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Unesco, ambas em 1954, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1957359.

No tocante à segunda frente, o governo soviético buscou trazer para seu controle algumas organizações internacionais criadas logo após a Segunda Guerra Mundial. O objetivo era incrementar o intercâmbio cultural entre o bloco soviético e países da Ásia, África e América Latina. O Conselho Mundial da Paz, a União Internacional dos Estudantes, a Federação Mundial de Sindicatos, a Federação Democrática Internacional das Mulheres, a Associação Internacional de Juristas Democráticos, e a Organização Internacional de Jornalistas eram espaços de trocas entre brasileiros e soviéticos.

Esse movimento era consistente com uma presença mais ativa da URSS em organismos multilaterais. Assim, a partir de 1956, diplomatas soviéticos – e de seu bloco

358 AHMRE, 500.1 (1950-56), MRE-Missões Diplomáticas nas Américas com exceção das de Assunção, Caracas, México e Montevidéu, Confidencial, “Conferência Continental de Juristas Democratas no Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1952.

de influência – começaram a buscar uma aproximação com seus colegas brasileiros em diversas partes do mundo de maneira mais insistente.

Em junho de 1956, em Paris, diplomatas romenos e búlgaros fizeram novos contatos a fim de se estabelecer um acordo comercial e, eventualmente, reatar relações diplomáticas. A chancelaria brasileira recusou-se a negociar um entendimento comercial com a Romênia. Alegava a impossibilidade de estabelecer um regime de comércio e pagamentos “mutuamente satisfatório”. As revisões e renegociações desses em relação à Hungria e Iugoslávia estavam apresentando “sérios inconvenientes, do ponto de vista brasileiro”. Ainda segundo o Itamaraty, era necessário primeiro renegociar os acordos vigentes ou denunciá-los360 para que depois emergisse uma nova “orientação geral” quanto ao comércio com a Europa Oriental, a qual, possivelmente, seria aplicada também à Romênia361. Apesar disso, os acordos comerciais do Brasil com Polônia e Tchecoslováquia eram prorrogados sucessivamente, de comum acordo, sempre por mais alguns meses, enquanto uma nova formulação não era alcançada362.

Ao responder a abordagens de representantes romenos buscando uma aproximação comercial no ano seguinte, a Secretaria de Estado instruía as missões diplomáticas brasileiras a responder que reformas no sistema tarifário e mudanças na legislação sobre comércio exterior (especialmente nas regras cambiais) precisavam ser concluídas antes de se iniciarem conversações com a Alemanha Oriental – via um acordo interbancário – ou se revisarem os instrumentos comerciais já existentes do Brasil com Polônia, Tchecoslováquia e Hungria363.

360 Em 28 de janeiro de 1956, o Brasil denunciou seu Acordo de Comércio e Pagamentos com a Polônia, bem como as normas de intercâmbio comercial com àquele país. Veja AHI, Associações Comerciais, Cartas Expedidas (1955-59), Chefe da Divisão Econômica ao Presidente da Confederação Nacional do Comércio, “Ajustes de Pagamentos e de Comércio Brasil-Polônia”. Rio de Janeiro, 16 de março de 1956. Também em março, a chancelaria brasileira fez o mesmo em relação ao seu compromisso comercial com a Tchecoslováquia. Veja AHI, Associações Industriais, Cartas Expedidas (1953-58), Chefe da Divisão Comercial ao Presidente da Confederação Nacional da Indústria, “Acordo de Comércio Brasil- Tchecoslováquia”, Rio de Janeiro, 27 de junho de 1957.

361 AHMRE, 811 (42)(00) (1947-67), MRE-Paris, Confidencial, “Relações Brasil-România. Proposta de reatamento”. Rio de Janeiro, 28 de junho de 1956.

362 Veja, por exemplo, AHI, Associações Industriais, Cartas Expedidas (1953-58), Chefe Substituto da Divisão Comercial ao Presidente da Confederação Nacional da Indústria, “Acordo de Comércio Brasil- Polônia”, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1957. Esse documento prorrogava até 1º de outubro o entendimento comercial entre os dois países. Veja AHI, Associações Industriais, Cartas Expedidas (1953- 58), Chefe Substituto da Divisão Comercial ao Presidente da Confederação Nacional da Indústria, “Acordo de Comércio Brasil-Tchecoslováquia”, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1957. Esse documento prorrogava até 30 de setembro o entendimento comercial entre os dois países.

363 AHMRE, 811 (42)(00) (1947-67), MRE-Buenos Aires, Confidencial, “Comércio Brasil-Rumânia”. Rio de Janeiro, 18 de março de 1957. Veja também AHMRE, 811 (42)(00) (1947-67), MRE-DelBRASONU, Confidencial, “Comércio Brasil-Romênia. Proposta de reatamento”. Rio de Janeiro, 5 de abril de 1957 e AHMRE, 811 (42)(00) (1947-67), Eduardo Portella Neto (cônsul de 3ª classe)-Chefe da Divisão Comercial,

Seria uma maneira de o governo brasileiro postergar um envolvimento comercial mais substantivo com os países da órbita soviética – evidenciando sua hesitação em relação ao tema –, ou uma busca por melhores termos de barganha no sentido de negociar esses entendimentos com o bloco socialista europeu em conjunto, esperando uma nova proposta de aproximação comercial vinda diretamente da União Soviética?

Ainda em julho de 1956, o embaixador do Brasil em Montevidéu foi abordado pelo ministro plenipotenciário soviético sobre a possibilidade de obter uma audiência com o presidente Juscelino Kubitschek. O embaixador Berenguer César questionava o Itamaraty sobre qual atitude deveria ter diante da “insistente ofensiva de aproximação” do diplomata soviético364. Cinco dias depois, a chancelaria brasileira respondia que não pretendia, “no momento (grifo original), reatar relações com a União Soviética”365. Também no mesmo mês, a Legação da Hungria em Buenos Aires manifestou seu interesse em reatar relações diplomáticas com o Brasil366. Em junho, representantes da Bulgária já haviam procurado a embaixada brasileira em Paris com o desejo de “estabelecer relações comerciais e diplomáticas com o Brasil367”.

Uma nova aproximação soviética com o Brasil ocorreria em novembro de 1956. Dessa vez, a resposta do governo brasileiro seria mais ponderada. Durante uma reunião da Cepal, em Santiago, o delegado comercial da URSS em Buenos Aires se referiu às possibilidades de intercâmbio comercial entre Brasil e URSS e manifestou interesse em conversar sobre o assunto com o Chefe da Divisão Comercial, Antônio Corrêa do Lago368. O Itamaraty instruiu Lago a “aceitar, com as devidas cautelas”, a sugestão do representante soviético. Ressaltava, no entanto, que ele não deveria:

Confidencial, “Relações comerciais Brasil-Rumânia”. Rio de Janeiro, 2 de maio de 1957. Segundo esse documento, as mudanças envolviam mudanças na legislação cambial e deveriam ser aprovadas pelo Congresso Nacional, p. 1.

364 AHMRE, 920.1 (42)(74) (1943-62), Montevidéu-MRE, Confidencial, “Relações Brasil-Rússia. Proposta de reatamento ao Governo brasileiro”. Montevidéu, 26 de julho de 1956.

365 AHMRE, 920.1 (42)(74) (1943-62), MRE- Montevidéu, Confidencial, “Reatamento de relações Brasil- União Soviética”. Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1956.

366 AHMRE, 920.1 (42)(00) (1942-66), Informação da DPc, Confidencial, “Relações Brasil-Hungria. Rompimento de relações”. Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1961, p. 3.

367AHMRE, 811 (42)(00) (1947-67), Paris-MRE, Confidencial, “Relações diplomáticas e comerciais. Brasil-Bulgária”. Paris, 6 de junho de 1956. O representante brasileiro em Paris, Carlos Alves de Souza, ressaltava que a proposta feita pelo Bulgária era “diferente em seu contexto” da que a apresentada recentemente pela Romênia. Segundo ele, a Bulgária oferecia um quadro “menos normal” em suas relações internacionais já que seus contatos com os Estados Unidos ainda estavam interrompidos. Uma semana antes, a Legação da Bulgária em Paris já havia entregue à representação brasileira uma lista de produtos que poderiam servir de base ao início das conversações comerciais. Veja na mesma pasta Paris-MRE, Confidencial, “Reestabelecimento de relações Brasil-Bulgária”. Paris, 18 de junho de 1956.

368 AHMRE, 811 (42)(00) (74 a 77) (1953-67), Santiago-MRE, Confidencial, “Comitê de Comércio da CEPAL. Intercâmbio comercial com a Rússia”. Santiago, 20 de novembro de 1956.

[...] assumir qualquer compromisso de negociação para já ou mais tarde, embora não deva, por outro lado, perder de vista as possibilidades de entendimentos futuros que venham a tornar-se aconselháveis após detido exame do resultado das suas conversações preliminares369.

A instrução primava pelo não comprometimento imediato, mas se preocupava em não “fechar portas” prematuramente. A posição refletia cautela, mas contrastava com a negação sumária do chanceler Rao em 1954. O governo brasileiro começava a ponderar seriamente sobre as possibilidades comerciais advindas de uma aproximação à URSS.

Esse fato pode estar relacionado com o envio da primeira missão parlamentar brasileira à URSS em julho do mesmo ano. No próximo item, trataremos das interações de brasileiros e soviéticos no âmbito de missões parlamentares entre os dois países entre 1956 e 1958.