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1.2. COMPORTAMENTO HUMANO: RESULTDO DA DINÂMICA

1.2.5. A (des)internalização de valores pró-sociais como factor de influência nas escolhas

O ser humano, para se adaptar, apreende apreendendo, partilha e transmite numa dinâmica de relação interactiva intencional com outras pessoas (Serrão, 2004). Na sua intimidade a sua conduta rege-se por opções pessoais e únicas, na sua acção é confrontado com conflitos que envolvem interesses e valores pessoais, conformes aos costumes e normas sociais (Rodrigues, 2009). Assim, como ser único (em presença na relação outro) é dotado de ―consistência, coesão interna e unidade‖ (Pires, 2000, p. 1290).

Posto isto, e como vimos atrás, uma multiplicidade de factores inter-actuantes concorrem para a emergência dos comportamentos humanos, nomeadamente os social e/ou criminalmente reprováveis/puníveis. Quanto a nós, esta questão está directamente relacionada com a capacidade de internalização ou não de valores aceites na sociedade/comunidade em que se vive e/ou do grupo social a que pertence.

A intenção para agir envolve um conjunto de mecanismos motivacionais que atrás referimos à luz da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, entre os quais se incluem a internalização de valores/crenças socialmente aceites, que se vão adquirindo/consolidando ao longo do ciclo desenvolvimental, quer através do leque de experiências pessoais que os promovem, quer por via do processo de socialização.

Adoptaremos aqui as definições de valor e de sistema de valores aventados por Rokeach (1973, cit. in, Resende, Fernandes & Cruz, 2005):

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―Um valor é uma crença duradoura de que um modo de conduta ou finalidades de existência são pessoalmente ou socialmente preferidos em oposição ou contrário a outros modos de conduta ou finalidades de existência. Um sistema de valores é uma organização duradoura de crenças considerando preferidos modos de conduta ou finalidades de existência ao longo de um contínuo de relativa importância.‖ (p. 229)

As escolhas feitas por uma pessoa dependerão das opções preferenciais que faz de uns valores em detrimento de outros, o que implica a distinção entre o que é relevante do que é acessório ou secundário, permitindo que estabeleça uma hierarquização dos mesmos, de forma livre e responsável. Assim, a sua relação com o outro e com o meio sociocultural vai além de mero observador, pois trata-se de um agente apto a fazer escolhas, a tomar decisões, ter comportamento e atitudes harmónicas e/ou que entram em conflito com o grupo social a que pertence (Tamayo, 2007). Porém, não podemos ignorar que há pessoas que apresentam incapacidades de vários tipos e com limitações diversas, as quais poderão restringir e até mesmo impossibilitar as suas livres escolhas e tomadas de decisões.

No entanto, como sabemos, muitos indivíduos que nasceram em meios familiares e socialmente adversos/desestruturados/degradantes não se tornaram criminosos, outros desenvolveram-se em meios estimulantes em termos pró-sociais e cometeram crimes, vários reincidem sistematicamente na prática de crimes, resistindo à socialização, e ainda outros são portadores de psicopatologia e não incorrem na prática de crimes. Deste modo, estamos crentes de que efectivamente factores bio-psico-sociais estão envolvidos no fenómeno da ocorrência da criminalidade e da sua reincidência.

Não devemos também esquecer o facto de que a emergência das novas tecnologias, da sociedade de consumo, da sociedade da informação, das novas formas organizacionais, de percepção de espaço e de tempo (real e virtual) decorrentes da globalização, vieram alterar/introduzir novos conceitos, novas formas de ser, estar e de se relacionar (mesmo sem ver/conhecer pessoalmente o outro), novos de estilos de vida, novas formas de tomar decisões e de agir, que assentam em novos valores. No entanto, como vimos, o ser humano necessita não só de outro para sobreviver, mas também do estabelecimento de relações/vínculos significativos desde que nasce, para que tenha maiores probabilidades do seu desenvolvimento se operar de forma saudável, sendo imprescindível a qualidade desses vínculos. Porém, nas últimas décadas, assiste-se de forma incisiva à aplicação do imediatismo e da descartabilidade aos relacionamentos humanos, o que tem concorrido para que os referenciais se tornem rapidamente ultrapassados e obsoletos (Bauman, 2004).

Assim, a internalização de valores ao longo do ciclo desenvolvimental está condicionada a esta nova realidade em que vivemos, que se rege por valores neoliberais, mas que não isenta o indivíduo de continuar a depender de aspectos biopsicológicos e de

75 natureza interactiva (família, amigos, vizinhos, comunidade, meio ambiente…) envolvidos no seu processo de socialização. A estes aspectos relacionais interactivos, junta-se uma multiplicidade de factores, entre os quais citamos os relacionados com o carácter (des)vinculativo das relações laborais e outros relativos a factores de ordem económico- -financeira e política, bem como os referentes à mobilidade residencial, ao fenómeno das migrações, da heterogeneidade étnica e da interculturalidade, novas questões que se prendem com a protecção das pessoas, bens e segurança que vão além das fronteiras de um Estado, e que são de preocupação a nível internacional.

Segundo Nunes (2004), as sociedades contemporâneas, abertas à globalização, abarcam um vasto leque de mundivivências, sendo necessário estabelecer um denominador comum a todos os seres humanos que seja satisfatório para todos e que promova a inclusão e a coesão social. Este autor acresce que esse ―modelo de convivência social, plural nas

ideias e secular nas práticas, reside no conceito de dignidade humana‖, pois valor é

condição ontológica, sendo que o seu reconhecimento envolve a ―assumção da

responsabilidade como dever de cidadania‖ (p. 12), que constitui a génese dos demais

direitos, entre os quais apenas citamos o direito à vida, à integridade física e moral, e ao reconhecimento da personalidade.

Nunes, Ricou e Nunes (2004) consideram que, nesta sociedade secular e plural em que vivemos, o referido conceito de dignidade ―é não apenas o referencial ético nuclear,

mas a própria essência da organização política do Estado‖, em que ―a autonomia individual tem sido observada como o paradigma de um modelo de sociedade no qual a intersubjectividade não é alheio o ideal de um exercício de cidadania responsável e altruísta‖ (p. 7). Estes autores acrescem ainda o seguinte:

―A miragem do homem autónomo, no pleno uso da sua racionalidade, mas profundamente influenciado pela inteligência moral e emocional, na ausência de uma verdade revelada ou de uma ortodoxia de pensamento acriticamente imposta, deve reconhecer a essência da sua natureza: a vida de relação enquanto garante da perpetuação da espécie e fulcro da sua auto- regulação. e na relação com o outro, e para o outro, que emerge um vasto elenco de valores sociais que visam não apenas uma estratégia de sobrevivência mas, sobretudo, a edificação de um arquétipo de sociedade em conformidade com os interesses das gerações futuras.‖ (p.7).

Santos (2002) e Infante e Souza (2003) afirmam que na actualidade existe uma instabilidade de valores ou “crise de valores”. A este respeito, Infante e Souza (2003) afirmam o seguinte:

―Hoje em dia a degradação dos valores é tão sensível e de consequências tão graves que até o bem mais nobre do ser humano, qual seja a ‗vida‘, está sendo banalizado. Por motivo fútil tira-se de outrem, parecendo ao cidadão comum viver numa selva urbana, onde a pessoa que vive à margem do valor nobre da ‗justiça‘ detém mais direito que aquele que cumpre com o código ético-moral em prol da supremacia do Estado.‖ (p. 2).

76 Relativamente ao comportamento fora da norma ou desviante, Rabot (2004) defende que os que propugnam políticas no sentido do seu ―endireitamento‖ esquecem-se de que o ser humano é um ser complexo (p. 5). Neste contexto, transcrevemos um excerto que nos parece elucidativo desta questão:

―O processo de domesticação do qual falavam Nietzsche e Foucault, o processo de curialização [que no medievo decorre relação entre a pequena comunidade formada por vassalos que viviam ao redor do rei e da sua corte] do qual falava Elias, o processo de humanização do qual falava Marcuse, nem enriqueceram o homem, nem engrandeceram a humanidade. Contrapondo-se aos críticos da cultura de massa que se renderam à ideia adorniana [de sentido estético] de um mundo totalmente administrado, Edgard Morin afirma que ‗ninguém é definitivamente civilizado‘ e acrescenta: ‗a cultura de massas droga-nos, embebeda-nos com ruídos e furores [não nos curando dos fundamentais] […]‘ Pois, contra a tolerância zero nas estradas aparecem os ‗malucos do volante‘ e os ‗rodeos‘ motorizados aos fins-de-semana, onde os jovens brincam com a morte ao desafiá-la e vivê-la no quotidiano. Contra os princípios laicos garantidos pela Constituição aparecem os malucos de Deus. Contra as diferentes imposições sociais surgem os ‗malucos do ego‘, segundo a expressão de Salvador Dali. Contra o despotismo impessoal dos peritos e dos pedagogos surgem as mais variadas perversões. Contra a prepotência da verticalidade erigida em símbolo de poder pela civilização ocidental aparecem os aviões suicidas. Contra a uniformização e a asseptização da vida pelos valores prometeicos [transcendentes, mas que visavam a melhoria da condição humana e que o ser humano se tornasse uma pessoa melhor] que se exprimem nessa ‗trindade laica que são o Progresso, a Razão e o Trabalho‘ […], assistimos ao desabrochar de uma violência gratuita a que Julien Freund deu o nome de ‗violência dos sobrealimentados‘. Em oposição às campanhas de luta contra toda a forma de dependência (tabagismo, alcoolismo, droga, sexo, seitas, ansiolíticos, Internet, etc.) aparecem todos aqueles que erigem o excesso em regra de vida. A própria religião é vivida com excessos. Aliás, todas as sociedades foram confrontadas com a questão da oposição entre a religião e a superstição. A ‗superstitio‘ significava nas origens um excesso de religião que permitia aos romanos de se desprenderem da ordem social e de introduzir uma ruptura no consenso social. O povo age com paixão e por excesso.‖ (p. 5)

Apesar de o crime ser considerado o acto que transgride a lei vigente, torna-se tarefa difícil obter respostas sobre o fenómeno da criminalidade. De facto, embora esse fenómeno englobe actualmente crimes de natureza diferente da que tradicionalmente estava instituída (até há um tempo histórico muito recente), parece ser consensual que a criminalidade continua a ser decorrente quer de factores externos que influenciam o desenvolvimento do indivíduo, quer de factores internos, nomeadamente a propensão para o adoecer psicopatológico ou para o desenvolvimento de transtornos de personalidade que possam facilitar/concorrer para o seu envolvimento em condutas desviantes.

Assim, como referimos anteriormente, acreditamos que, à semelhança do que acontece em meio livre, também em meio juridicamente privado de liberdade entra em jogo a natureza das (inter)relações. Estas influenciam o seu estado de saúde geral, as escolhas que faz, as suas tomadas de decisão, o seu comportamento, entre outros. De facto, consideramos que ao ser colocado nesse contexto, de imediato se opera um corte entre o indivíduo bio-psico-social e os que faziam parte das relações significativas de que dispunha em meio livre (se é que ainda as possuía), corte esse que poderá culminar na perda das mesmas. Esse corte impede-o de se relacionar de forma livre/autónoma com o

77 mundo externo, mas sim de forma condicionada e faseada. Além disso, ao passar para o contexto de privação jurídica de liberdade, deixará de desempenhar papéis e funções que lhe eram inerentes em meio livre, tendo que se ajustar, e passando, portanto, a estar sujeito a novos papéis e funções. No entanto, caso o queira, não deixa de poder exercer alguns que, de forma diferente, poderão fazer sentido manter em simultâneo em ambos os contextos, embora de forma limitada (pai, companheiro/marido, estudante…), por estar separado do meio livre.

Neste contexto, Negrão (2004) propunha que a aplicação de práticas igualitárias promovem a desigualdade, por isso deve-se implementar medidas de reposição efectiva da igualdade. Segundo este autor, a concepção e execução dessas medidas deverá visar a reintegração co-responsável, de modo a envolver indivíduos e respectivas famílias, para que possa diminuir a vulnerabilidade. Logo, as medidas deveriam agir sobre as causas e não sobre os efeitos, visando a prevenção como objectivo inicial, bem como incluindo um projecto de vida, valores de referência e a redução/remoção dos riscos.

1.2.6. Comportamentos social e criminalmente reprováveis versus