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Interpretação dos Enunciados Modalizados

2 MODALIZAÇÃO: MANIFESTAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM

2.4 Interpretação dos Enunciados Modalizados

Quanto à diversidade de interpretação dos enunciados modalizados, Neves (2006) apresenta um esquema em que se evidenciam os significados que podem ser atribuídos às modalizações, como:

Quadro 1. O significado das modalizações – baseado no esquema proposto por Neves (op. cit., p. 177).

Significado de raiz ou pessoal Capacidade ou

habilidade, permissão.

PODER

Significado epistêmico ou impessoal

Simples possibilidade.

Significado de raiz ou pessoal Obrigação, ordem.

DEVER

Significado epistêmico ou

Convém acrescentar que o verbo dever também exprime probabilidade, conforme exemplo fornecido por Cervoni (1989, p. 64):

(72) Ele deve ter chegado (é provável que tenha chegado).

Para os dois grandes tipos de modalidade (epistêmica e deôntica), podem ser usadas as mesmas formas verbais. Assim é que alguns autores apontam, no estudo da modalização, a ambigüidade entre significados epistêmicos e significados deônticos. Nesse sentido, Bybee e Fleischman (1955, apud NEVES, 2006) indicam a necessidade de se recorrer ao contexto para o estabelecimento do significado.

Silva-Corvalán (1995, apud NEVES 2006, p. 180) e Klinge (1996, apud

NEVES 2006, p.179) ressaltam a importância do contexto para a interpretação dos verbos modais. Klinge postula que a oposição entre epistêmico e não-epistêmico não reside propriamente nos modais, mas deve ser descrita como o resultado de contextualização. O autor assevera que atribuir aos verbos modais a responsabilidade pela expressão dos diferentes tipos de modalidade é negligenciar o papel representado pelo contexto. Para ele, o conteúdo proposicional de uma sentença independe da elocução e tem papel importante na interpretação do significado. Enunciados construídos com o verbo poder, por exemplo, podem assumir diferentes significados modais, como permissão, volição, possibilidade epistêmica, possibilidade deôntica. Nesses casos, não há como fazer a distinção de significados por meio do verbo modal, o qual não fornece a interpretação completa da sentença. Silva-Corvalán ressalta que verbos modais comunicam significados contextuais de acordo com sua interação com outros elementos do contexto, os quais contribuem para a produção de significados compatíveis com a sua semântica. Assim, o significado contextualizado constitui a mensagem que o verbo modal comunica num contexto específico.

Neves (2006) assevera, porém, que falar em “significado contextualizado” é uma resolução um tanto vaga, uma vez que a própria noção de contexto é vaga. Assim, nem sempre o contexto, considerado dentro dos limites da frase ou dentro dos limites da proposição nuclear, é suficiente para a resolução da interpretação. Num enunciado como

a contextualização do modal no âmbito da frase completa não descarta a possibilidade de pelo menos três interpretações: probabilidade (possibilidade epistêmica), obrigação interna (necessidade deôntica) e obrigação externa (necessidade deôntica). O significado expresso em (73) só se resolverá num contexto maior do que a frase. Entretanto, pondera a autora, considerar somente o contexto lingüístico implica minimizar as relações intersubjetivas em construções em que o verbo modal pode indicar um ato ilocutório, como um pedido ou uma oferta. Nesse caso, o lexema modal vai além do significado do enunciado para realizar a função ilocutória do ato de linguagem na interação verbal.

A esse respeito, a autora apresenta uma interessante observação de Roulet (1979 apud NEVES, 2006) acerca dos lexemas modais. O autor postula que os lexemas modais são modais potencialmente, ou seja, são modais sob certas condições de emprego. No caso dos verbos que exprimem modalidade explícita (como acho, penso), é necessário, para essa expressão, um pronome sujeito (ou objeto indireto para os impessoais) e um tempo que envie para o enunciador. Para confirmar essa tese, são oferecidos os exemplos:

(74) Euacho que é na política que o poder da mulher vale mais. (75) Ele acha que é na política que o poder da mulher vale mais.

(76) Naquela época eu achava que era na política que o poder da mulher valia mais.

(77) Quero que você não me perturbe. (78) Eles querem que você não os perturbe.

(79) Eu quis durante muito tempo que você não me perturbasse mais.

A autora observa que em (74) e (77), tem-se um emprego modal; já em (75) e (78), com sujeito de terceira pessoa e em (76) e (79) com verbo no passado, não há um emprego modal. Todavia, acreditamos que o verbo querer, independentemente do tempo e da pessoa em que for empregado, pressupõe outros tipos de modalidades. No exemplo (78), pode se perceber um vínculo com a noção de obrigação, e no exemplo (79), a forma verbal no passado indica um desejo do sujeito. É por essa e outras razões (como possibilidade de construção direta com o infinitivo subseqüente e a recusa de imperativo) que Cervoni (1989) inclui o verbo

querer na categoria de auxiliares modais. Muitos empregos de verbos ditos modais também só se tornam modais dentro de uma situação específica de enunciação. Nesse sentido, Neves postula, com base em Roulet (apud NEVES, 2006, p. 171), que

[...] verbos como dever e poder, em seus empregos ditos deônticos, não são efetivamente empregados como modais se a obrigação ou a permissão foi criada pela própria palavra do enunciador (isto é, nos atos ilocutórios de pedido, solicitação ou permissão). Eles não são necessariamente modais quando o enunciador simplesmente enuncia a existência de uma obrigação ou de uma permissão que não tem o ato de enunciação como fonte. (grifos da autora)

Essa observação evidencia a complexidade que envolve os enunciados modalizados. As expressões e verbos modais apresentam-se bastante polivalentes. Os verbos poder e dever, por exemplo, têm empregos tanto epistêmicos quanto deônticos, e, dentro desses usos, ainda devem-se levar em consideração também as várias possibilidades de interpretação. É o que acontece no enunciado abaixo, emprestado de Neves (2006):

(80) Vocês não devem ter medo.

que tanto pode significar “provavelmente vocês não têm medo”, quanto “vocês não precisam ter medo”, podendo seu sentido, segundo a autora, ser resolvido somente no contexto. Não é o caso de

(81) Pode haver novidade.

que, mesmo no contexto, continua com uma possibilidade de dupla interpretação, ou seja, dado o contexto próximo:

(82) Eu vou para o acampamento. Pode haver novidade. Daqui a pouco é hora do almoço.

o enunciado tanto pode significar “não está excluído que / eu não tomo posição”, como “acho que é possível que”.

De todo o exposto, podemos depreender que a interpretação de enunciados modalizados envolve todo um complexo de elementos que entram em interação no contexto de comunicação. Na verdade, não é fácil proceder a uma interpretação que

contemple toda a diversidade dos significados modais. Acreditamos que, para uma interpretação razoável de tais enunciados, deve-se levar em consideração não só o contexto de atuação, mas as relações intersubjetivas e a situação de enunciação.

Ainda sobre a interpretação de verbos modais, Parret (1988) assegura que, em alguns casos, essa interpretação só pode se dar na esfera semântica ou pragmática. É o caso dos enunciados:

(83) Os filósofos podem ser camaleões. (84) Os filósofos poderiam ser camaleões.

(85) É possível que os filósofos sejam camaleões.

As interpretações semânticas de (83) têm sempre um valor de verdade (Todos os filósofos são às vezes..., Alguns filósofos são sempre..., Alguns filósofos são às vezes...). Já a interpretação de (84) está isenta desse valor, uma vez que ela não quantifica somente no mundo real, mas quantifica o real no interior de mundos possíveis. O predicado “possível” de (85) é semanticamente ambíguo: exprime a não-necessidade no interior do mundo real ou ainda dentro do conjunto de mundos possíveis. Essa desambigüização só se dá por uma interpretação puramente semântica. Todavia, cogita o autor, esse critério não se aplica aos enunciados:

(86) Os belgas devem ser maus motoristas. (87) Os belgas deveriam ser maus motoristas.

(88) É possível (provável) que os Belgas sejam (são) maus motoristas.

Nesses casos, não se está mais sobre o eixo do necessário ou do possível, mas sobre o eixo da crença. (86) e (87) são proposições: a primeira é uma hipótese baseada na conjectura atual, portanto, verificável no presente; a segunda é uma hipótese baseada numa expectativa futura, controlável somente no futuro. A distribuição das formas gramaticais de dever e a circunscrição da ambigüidade do predicado possível são governadas por fatores contextuais. Portanto, a desambigüização só pode se dar através de fenômenos pragmáticos. Diz o autor que “a contextualidade accional determina todas as propriedades de linguagem, de qualquer nível de profundidade que sejam elas” (Ibid., p. 98). Entretanto, ao se acolher uma interpretação pragmática para o significado modal, não implica

abandonar o critério semântico; pelo contrário, a semântica permanece o núcleo de toda interpretação das modalidades; ela é apenas completada pela pragmática.