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1. Direito, Moral e Reconhecimento em Fichte

1.2. Intersubjetividade originária e o direito como coerção: a Grundlage des Naturrechts (1796/97)

1.2.3 Intersubjetividade e Zwangsrecht

O tema a ser tratado por Fichte na segunda “parte principal” do Direito Natural, que engloba os §§ 5-7, é a “dedução da aplicabilidade do conceito de direito”, a qual é revelada, ao fim de sua exposição do § 7, como um dos interesses fundamentais da teoria do direito, o que deixa ver que o escopo da obra ultrapassa em muito a dedução do direito a partir da relação fundamental de reconhecimento recíproco: dentre outras coisas, é justamente a tentativa de deduzir as condições de aplicabilidade do conceito de direito que torna evidente a separação radical entre a moral e direito natural, assim como arremessa a relação intersubjetiva fundamental de “respeito recíproco” ao plano da aplicabilidade da lei a casos de transgressão. Neste sentido, estes desenvolvimentos completam aquela “redução” jurídica da intersubjetividade primeiramente deduzida como educação e a tornam o ambiente propriamente jusnaturalista da defrontação de indivíduos plenamente individualizados enquanto pessoas. Conforme se mostrou acima, a reciprocidade na auto-limitação da liberdade, o direito enquanto “comunidade das consciências” que se reconhecem mutuamente, e a individualização dos seres racionais se condicionam reciprocamente, de maneira que uma individualização segura e indiferente de todos como pessoas depende da continuidade da reciprocidade do reconhecimento. Entretanto, pode-se perceber como, a partir de Fichte, pode ser levantada a questão acerca da simbiose entre esta individualização indiferente e formas participativas de socialização que poderiam ser pensadas sob o título de educação.

Os quatro primeiros parágrafos mostraram que a consciência-de-si de um ser racional finito pressupõe a auto-atribuição de livre eficiência – e, com isso, a posição e determinação de um mundo sensível –, mas também a suposição de outros seres racionais finitos, bem como a relação originária de reconhecimento recíproco entre si e estes outros coabitantes do mundo das ações. Desta última relação, que é condição para a consciência-de-si do sujeito finito, deduziu-se a relação de direito, a qual significa que os seres racionais finitos têm de delimitar as próprias expressões de sua liberdade no mundo pelo conceito da possibilidade da liberdade de outros seres racionais finitos, se todos devem partilhar, enquanto sujeitos individualizados, o status de seres conscientes de si. Neste sentido, a segunda parte vai procurar enunciar as condições fundamentais sob as quais é possível a realização da relação de direito. Continuam a explorar o universo temático dos parágrafos anteriores, mas agora da perspectiva de um indivíduo que já se constituiu como tal. Os dois “princípios doutrinários” subseqüentes, desenvolvidos nos §§ 5 e 6, pretendem mostrar que um ser racional finito não pode se pôr a si mesmo como eficiente, sem atribuir a si mesmo um corpo (Leib) material, o qual ele é capaz de determinar continuamente; e que a auto- atribuição de um corpo não é possível para o ser racional finito, sem a suposição de que este corpo possa ser influenciável por outro ser racional sensível. Depois destes primeiros elementos, os quais reproduzem o teor da argumentação anterior no plano do sujeito individualizado como pessoa e de posse da esfera corporal de expressão de sua liberdade, Fichte conclui sua exposição com a idéia, exposta no § 7, de que as condições essenciais de aplicabilidade do conceito de

direito estão esgotadas, o que representa a passagem para o âmbito da aplicação propriamente dita.

O § 5 faz a dedução do corpo (Leib) como esfera de atuação exclusiva da pessoa, na qual se parte do conceito de indivíduo ou pessoa que fora deduzido anteriormente.

“O ser racional põe-se ... como um indivíduo – ao invés desta expressão, nós nos utilizaremos, de agora em diante, do termo pessoa – através disso: ele atribui a si mesmo exclusivamente uma esfera para sua liberdade ... nenhuma outra [pessoa] é ela mesma, isto é, nenhuma outra pode escolher nesta esfera destinada somente a ela. Isto constitui seu caráter individual: por meio desta determinação ela é o que é, este ou aquele, que se acha deste ou de outro modo.”205

O apercebimento de si como uma pessoa atuante no mundo sensível, o qual, segundo os §§3-4, contém também a existência de outros seres racionais atuantes, somente pode surgir, se pertence à pessoa uma esfera de atuação de sua liberdade disponível somente a ela. É esta esfera de atuação da liberdade que constitui o caráter individual da pessoa. Para Fichte, nesta auto- atribuição de uma esfera individual de liberdade reside a passagem originária do eu formal absoluto para o eu material, determinado pela contraposição em que se atribui a si uma esfera diferente do mundo para a atuação pessoal da liberdade. Tal passagem ocorre pelo contraste entre a egoidade fundamental, enquanto intuição pura da atividade infinita, e o eu individual como pessoa determinada concretamente pela sua presença no mundo sensível, a qual faz, na auto- posição a partir da consciência prática comum, a experiência de si mesma como ser racional. “Na medida em que ele se a atribui, ele se limita e se transforma do eu absolutamente formal em um eu material e determinado, ou em uma pessoa. Queira-se, pois, não mais confundir estes dois conceitos bastante diversos, que estão aqui colocados de maneira suficientemente capciosa um ao lado do outro.”206A esfera exclusiva da liberdade do eu concreto lhe aparece como exterior a si207, uma esfera de liberdade enquanto objeto extenso no espaço, ou “ein ausgedehntes”.

A esfera de liberdade do ser racional, encontrada como extensa, é experienciada pela pessoa como objeto contraposto a ela, mas também como algo que lhe é interior e que constitui,

205 GNR, 56 206 GNR, 57

207 Esta percepção do eu concreto, segundo a qual a esfera do exercício da liberdade do ser racional finito se contrapõe a ele como uma parte do

mundo exterior que se diferencia dele mesmo, é explicada por Fichte por um recurso à teoria transcendental da objetividade, desenvolvida na

Wissenschaftslehre de 1794. Fichte evoca, no § 5, apenas o resultado geral de sua exposição: a intuição não é simplesmente receptiva em relação a

um objeto dado previamente, mas produz este objeto. Segundo ele, intuir é, na verdade, produzir. “Esta esfera é posta por uma atividade originária e necessária do eu, isto é, ela é intuída (angeschaut), e se torna assim um real – como certos resultados da doutrina-da-ciência não podem ser apropriadamente pressupostos, eu apresento somente aqueles que são necessários aqui. Não se tem a mais leve idéia sobre o que é tematizado na filosofia transcendental – e, mais propriamente, em Kant – se se acredita que, no intuir, afora aquele que intui e a intuição, haja ainda uma coisa, talvez uma matéria (Stoff), à qual se dirige a intuição ... Através do intuir mesmo e simplesmente por meio dele surge o intuído, o eu retorna a si mesmo. E esta ação fornece, ao mesmo tempo, a intuição e o intuído. A razão (o eu) não é, na intuição, de forma alguma passiva (leidend), e sim absolutamente ativa; ela é, na intuição, imaginação produtiva (produktive Einbildungskraft). Através do intuir, algo é delineado (hingeworfen), assim como talvez, se se deseja uma metáfora, o pintor lança sobre a superfície a figura completa, e como que antevê (hinsieht), antes que a mão mais lenta possa imitar seus esboços. Da mesma maneira, é posta aqui a referida esfera.”. No entanto – e nisto reside a verdadeira diferença entre a consciência comum e a consciência filosófica –, o ser racional não é, no âmbito da vida, consciente de sua própria atividade de produção do objeto. Para alcançar esta consciência, para poder reconstruir a gênese do mundo segundo os preceitos de um sistema genuinamente idealista – isto é, atribuindo esta gênese, de maneira originária, à egoidade absoluta –, ele necessita dos meios artificiais projetados pela reflexão filosófica. “Fichte exprime a diferença entre a produção natural do objeto pelo ser racional e sua aparente independência do mesmo através do contraste entre

pôr (pelo lado do eu puro) e achar (pelo lado do eu empírico).”Zöller, Günter –„Leib, Materie und gemeinsames Wollen als Anwendungsbedingungen des Rechts (Zweites Haupstück: §§5-7)“ in: Merle, Jean-Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des

Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001,92-111] Com isso, Fichte caracteriza a forma fundamental da atividade intuitiva-produtiva originária do ser racional como o “traçar linhas” ou das Linienziehen, o qual é compreendido como raiz comum do tempo e do espaço, a partir da qual estes seriam obtidos por uma determinação ulterior “Mais ainda: o eu que intui a si mesmo como ativo intui a sua atividade como um traçar de linhas (Linienziehen). Este é o esquema da atividade em geral, tal como aquele que quer estimular em si mesmo aquela mais elevada intuição vai encontrar. A linha originária é a pura extensão (die reine Ausdehnung), o comum ao tempo e ao espaço, e da qual os últimos surgem apenas por diferenciação e determinações ulteriores. Ela não pressupõe o espaço, e sim o espaço a pressupõe; e as linhas no espaço, isto é, os limites daquilo que nele se estende, são algo inteiramente outro. Da mesma forma, em linhas, ocorre a produção da esfera que é o tema aqui, e ela se torna assim algo extenso (ein Ausgedehntes).”GNR, 58.

por isso, sua identidade. A pessoa somente é o que é, na medida em que a esfera de liberdade permanece a mesma. A permanência subjetivamente considerada da pessoa corresponde, do lado objetivo, à permanência de sua esfera de liberdade. A esfera de liberdade estendida espacialmente e atribuída constantemente à pessoa por si mesma é seu corpo material (materieller Körper) como o que abrange todas as suas ações livres possíveis. “O corpo (Körper) material deduzido é posto como âmbito (Umfang) de todas as ações livres possíveis da pessoa , e nada além disso.”208 Este conceito é forjado em estrita relação com o caráter fundamental como ser racional agente. “Como o descrito corpo (Körper) nada mais é do que a esfera das ações livres, assim é esgotado tanto o conceito do último através de seu conceito, quanto o seu conceito pelo conceito do último. A pessoa não pode, a não ser nele, ser uma causa absolutamente livre, isto é, uma causa imediatamente atuante através da vontade.” 209O corpo é aquela parte do mundo na qual a atuação da liberdade da pessoa se torna imediatamente eficiente, o que quer dizer que, através da posição proposital de um fim, a pessoa se torna imediatamente causa de um objeto correspondente a este conceito do fim, enquanto toda outra eficiência causal orientada por volição é indireta e mediada através de outras conexões causais que não pelo seu corpo próprio.

O conceito fichteano de Körper, forjado no bojo de uma teoria da ação, estabelece uma conexão imediata entre a vontade livre de uma pessoa e seu corpo. “Quando um determinado querer é dado, então se pode concluir uma determinada modificação do corpo que lhe é correspondente. Inversamente ... a partir de uma dada alteração nele, pode-se, da mesma forma, concluir seguramente um determinado conceito da pessoa que lhe é correspondente.”210 Não há nenhum querer dentro da esfera exclusiva de liberdade sem que sua eficiência esteja imediatamente nesta esfera; e, inversamente, não há nenhuma alteração na esfera de liberdade da pessoa sem o correspondente conceito desta alteração no querer da pessoa. É a exclusividade da pessoa na atividade nos limites de sua própria esfera de liberdade que será crucial na discussão acerca da possível influência na esfera de liberdade por parte de uma outra pessoa.

Em conexão com o conceito de Leib ou corpo articulado (artikulierter Körper)211, Fichte desenvolve uma teoria da atuação de um ser racional finito sobre o outro, baseando-se na dupla articulação de Körper e nos conceitos de “sentido superior” (höherer Sinn) e de “sentido inferior” (niederer Sinn). “A mesma determinação da articulação – tanto quanto podemos perceber provisoriamente – é, ao mesmo tempo, de uma certa maneira, efetivamente produzida pela eficiência da vontade, e, ao mesmo tempo, de uma outra maneira, suspensa (aufgehoben) por uma atuação vinda de fora.”212 Não gostaríamos de nos deter nesta discussão, que toma quase todo o

restante do § 6. No contexto da aplicação do direito, importa que a atuação sobre um determinado ser racional possa ser atribuída especificamente a um outro ser racional. Como um resultado geral, Fichte espera ter provado que a “figura humana” (Menschengestalt) é condição necessária e suficiente para a indução do processo de interpelação (Aufforderung): para Fichte a articulação é, assim como o próprio mundo exterior habitado pelos seres racionais, um conceito

208 GNR, 59 209 GNR, 59 210 GNR, 59

211 Como esfera exclusiva da exteriorização livre da vontade de uma pessoa, seu corpo não é uma matéria inalterável como tal, mas sua forma

particular modificada, ou as partes da matéria imediatamente postas em movimento pela vontade. O conceito de Körper diz respeito somente aos membros do corpo de uma pessoa que são móveis independentemente umas das outras. A partir desta articulação do corpo que se refere imediatamente à vontade da pessoa, pode-se diferenciar a constituição biológica do corpo ou sua organização, que não é, por sua vez, objeto imediato da vontade. Fichte denomina o corpo articulado (artikulierter Körper), enquanto esfera exclusiva da liberdade da pessoa, Leib. “Um corpo (Körper), como o que foi descrito, a cujo persistir e identidade nós ligamos o persistir e a identidade de nossa personalidade (Persönlichkeit), o qual nós pomos como um todo fechado e articulado, e nós nos pomos imediatamente como causa através de nossa vontade, é aquilo que chamamos nosso corpo (Leib), e assim está provado o que deveria ser provado.”(GNR 59)

comunitário213. De acordo com esta “fenomenologia da liberdade”, construída a partir dos conceitos de corpo articulado e da figura humana, no processo de interpelação ao desenvolvimento e uso da razão, que se inicia através da percepção da figura humana, reside já, por parte do ser que interpela, um momento de reconhecimento, pois para o ser racional solicitante não importa tanto o conhecimento da razão e da capacidade racional do outro ser racional, mas do reconhecimento dele no tocante à auto-limitação voluntária da própria atividade livre em favor da possibilidade da atividade livre do outro. Que a interpelação contenha um momento de reconhecimento revela todo o potencial desta “atitude” intersubjetiva que subjaz à possibilidade de uma relação mutuamente excludente enquanto reconhecimento especificamente jurídico. No entanto, o reconhecimento ocorre aqui de maneira unilateral e necessita ainda ser complementado até se tornar uma relação recíproca214. Finalmente, é somente nos §§ 5-6 que Fichte é capaz de responder aquela questão que, desde a época das Vorlesungen, julgara ser uma das questões pendentes da filosofia, de cuja resposta dependeria a construção de um direito natural meticuloso: “É uma questão à filosofia que infunde apreensão e que, segundo minha consideração, ninguém ainda solucionou: como nós chegamos a transferir o conceito de racionalidade a alguns objetos do mundo sensível e a outros não. Qual é a diferença característica de ambas as classes ?”215 Agora, com a teoria do corpo articulado e da figura humana, Fichte julga ter finalmente chegado a precisar satisfatoriamente uma resposta ao problema: “Foi apresentado um critério seguro para saber a quais seres sensíveis (Sinnenwesen) devem ser atribuídos direitos e a quais não. Cada um que tem uma figura (Gestalt) humana é necessitado internamente a reconhecer todo outro ser que tem a mesma figura como um ser racional e, portanto, como um possível sujeito de direitos. Mas tudo que não tem esta figura é para ser excluído da esfera deste conceito e não se pode tematizar os direitos do mesmo.”216 Desta forma, graças à demonstração deste resultado, Fichte considera ter cumprido a tarefa de fornecer uma dedução da aplicabilidade do conceito de direito: “a aplicabilidade do conceito de direito está agora perfeitamente assegurada, e os limites do mesmo estão indicados de maneira determinada.”217

No final do § 6 e no § 7, Fichte retoma aspectos da validade hipotética da lei do direito, do problema geral de sua aplicação e da relação entre a lei jurídica e o âmbito da consciência moral, os quais são unificados por sua compreensão de que a aplicabilidade do conceito de direito equivale a uma reconstrução de um ordenamento exterior dos arbítrios segundo o princípio moral kantiano. “Kant disse: age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa ser princípio de uma legislação universal. Mas quem deve, pois, pertencer ao reino que é regido por esta legislação e ter participação na proteção dada pela mesma ? Eu devo tratar certos seres de tal maneira que possa querer que eles me tratem, por seu turno, segundo a mesma máxima ...

213 “Também esta transferência (dieses Übertragen) de meu pensamento necessário a uma pessoa fora de mim jaz no conceito da pessoa. Por

conseguinte, eu tenho de atribuir isto à pessoa fora de mim: que, caso ela me ponha como pessoa, ela suponha de mim o mesmo que eu mesmo suponho de mim e dela; e suponha de mim, ao mesmo tempo, que eu suponha dela o mesmo. O conceito da articulação determinada dos seres racionais e do mundo sensível exterior a eles são conceitos necessariamente comunitários (gemeinschaftliche Begriffe), conceitos sobre os quais concordam (übereinstimmen) necessariamente os seres racionais, sem qualquer acordo (Verabredung) prévio, pois em cada um, em sua própria personalidade (Persönlichkeit), está fundamentada a mesma forma de intuição, e eles precisam ser pensados como tais. Cada um pode pressupor do outro com fundamento, motivá-lo (ihm anmuten) e recorrer ao fato de que ele tenha os mesmos conceitos sobre estes objetos, tão certo quanto ele é um ser racional.” GNR, 73

214 “Esta contradição não se deixa extirpar a não ser pela pressuposição de que o outro seja necessitado, já naquela atuação originária, necessitado

como um ser racional, isto é, obrigado (verbunden) pela conseqüência, a me tratar como um ser racional – e, na verdade, que ele seja necessitado a isso através de mim – portanto, que ele seja, ao mesmo tempo, já naquela primeira atuação originária, na qual eu dependo dele, dependente de mim; por conseguinte, que já aquela relação (Verhältnis) originária seja uma interação (Wechselwirkung). Mas anteriormente àquela atuação, eu

não sou de maneira nenhuma eu. Eu não me pus, pois a posição de mim mesmo é condicionada através desta atuação, só é possível por meio dela.

Realmente eu devo atuar (wirken). Portanto, eu devo atuar sem atuar, atuar sem atividade.”GNR, 74

215 GNR, 80 216 GNR, 90/91 217 GNR, 90

Enquanto esta pergunta não for respondida, aquele princípio não tem, malgrado toda a sua excelência, nenhuma aplicabilidade e realidade.”218 Com a ampliação do modelo da

Aufforderung/Anerkennung para uma teoria fenomenológica da liberdade, Fichte pretende ter

solucionado, ao deduzir o critério de diferenciação dos “assistidos” pela lei, o problema da aplicabilidade (Anwendbarkeit) da reciprocidade implícita na moral kantiana a uma comunidade de seres racionais finitos. Resta a questão da “realidade”, ou seja, do “mecanismo” pelo qual esta proteção se institucionaliza, questão que se refere à aplicação ou Anwendung do conceito de direito.

Logo no início do §7219, Fichte esclarece que sua teoria do direito pretende responder à pergunta pelo acordo entre a liberdade da pessoa e a necessária influência recíproca entre elas. Para Fichte, a demonstração “se apóia simplesmente sobre a pressuposição de uma tal comunidade, a qual se funda ela mesma na possibilidade da consciência-de-si. Assim, todas as conseqüências até aqui são derivadas, através de inferências mediatas, do postulado Eu=Eu, e são tão certas quanto o mesmo.”220 Com efeito, a questão da possibilidade da autoconsciência se converte na questão da possibilidade de uma comunidade de seres livre como tais. “Até aqui revelamos as condições exteriores desta possibilidade. Nós explicamos como, sob esta pressuposição, as pessoas que estão em influência recíproca e a esfera de sua influência recíproca – o mundo sensível – têm de ser constituídas (beschaffen sein müsse).” 221 Com a teoria do corpo

articulado e da atuação sobre a esfera de liberdade da pessoa, enquanto extensões do modelo intersubjetivo do direito, foram apresentadas as condições que Fichte denomina “exteriores” ou “objetivas” da possibilidade da comunidade jurídica, unificadas na compreensão da relação jurídica como fundamentada na gênese recíproca da comunidade e da individualidade, ou seja, em um âmbito de intersubjetividade originária que se conecta com as implicações da autoconsciência. Deste modo, o modelo interpelação/reconhecimento aparece como fundamento da relação “arbitrária” em geral: “a toda interação arbitrária de seres livres jaz uma interação originária e necessária dos mesmos como fundamento, a seguinte: o ser livre necessita, através de sua simples presença no mundo sensível, sem mais, todo outro ser livre a reconhecê-lo como uma pessoa. Ele fornece o fenômeno determinado, o outro fornece o conceito determinado.” 222

Toda “relação social” possível é, segundo Fichte, condicionada por uma relação recíproca de indivíduos mediante sua inteligência – enquanto faculdade de apreender a peculiaridade fenomênica da auto-posição e de forjar um conceito desta posição – e liberdade, isto é, a faculdade de responder de maneira não coagida ao conceito desta posição. Tal declaração revela um potencial ético-inclusivo, implícito na noção de interpelação, na medida em que “ambos estão necessariamente unificados ... conhecem (erkennen) um ao outro em seu interior”223. Entretanto,

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