• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4 Analisando os dados da pesquisa

4.2 Mídias, práticas jornalísticas e gêneros discursivos

4.2.2 Intertextualidade

A intertextualidade é uma categoria analítica ligada mais diretamente ao significado acional/relacional. Ela é definida como “a presença material de outros textos dentro de um texto – citações” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 39), portanto refere-se ao fato de um texto ser cheio de fragmentos de outros textos, isto é, apresentar vozes particulares diversas. Para construir tal teoria, Fairclough (2003, 2008) baseou-se no conceito de dialogismo, de Bakhtin (1997), para quem enunciados distintos confrontados um com o outro, lidando com um mesmo tema, ainda que superficialmente, constroem uma relação dialógica entre si. Mas as citações não são a única maneira de percebermos esse “diálogo” nos textos, pois a intertextualidade pode manifestar-se também por meio do resumo do que foi dito, escrito ou pensado, do discurso direto, indireto ou indireto livre (FAIRCLOUGH, 2003).

Ao analisar a intertextualidade, é importante observar quais “vozes” estão presentes e quais estão ausentes, ou melhor, quais são incluídas e quais são excluídas. O autor dos textos pode incluir ou excluir pessoas/categorias. Dessa forma, é possível identificar nos textos, além da voz do autor, articulações ou não com vozes externas. Isso significa que os discursos subjacentes a essas vozes podem ser convergentes e harmônicos ou podem apresentar-se sob outra perspectiva, isto é contrapor-se. Uma maneira de investigar essas vozes é, conforme mencionado, por identificação de discursos direto e indireto. O primeiro é aquele em que se transcreve ipsis litteris o discurso de outrem, normalmente as aspas marcam esse tipo de discurso; o segundo normalmente é introduzido por um verbo dicendi e aparece misturado à voz do autor. O uso deste último, por exemplo, traz certas implicações: uma vez que os discursos do autor e de quem relatou algo são fundidos, pode-se atribuir ideologicamente alegações que, de fato, não foram feitas.

As vozes que emergem nos discursos podem, nos termos Fairclough (2003, p. 41-2), contribuir para a criação de cinco cenários que propiciem desde a “abertura” até o “fechamento para a diferença”, isto é, o diálogo entre as vozes relatadas nos textos nem sempre é harmônico e pode apresentar-se de cinco maneiras diferentes. Vamos aos cenários:

Quadro 4.2 - Cenários de negociação da diferença

(a) uma abertura para, aceitação de reconhecimento de diferença; uma exploração da diferença, como em ‘diálogo’ no sentido mais rico do termo;

(b) uma acentuação da diferença, conflito, polêmica, uma luta pelo sentido, normas, poder;

(c) uma tentativa de resolver ou superar a diferença;

(d) colocar a diferença entre parênteses, um foco nos aspectos comuns, solidariedade; (e) consenso, uma normalização e aceitação das diferenças de poder que suprime ou coloca a diferença de sentido e normas entre parênteses.

Fonte: Fairclough (2003, p. 41-2).

Nas reportagens do Correio Braziliense, foram encontradas muitas instâncias de discurso direto e indireto, como é comum em textos desse gênero. Essas instâncias de discurso incluem as vozes dos/as professores/as (representantes, dirigentes do Sinpro- DF), do governo (governador, secretários), dos pais, das mães, dos/as alunos/as e da população. Verificamos, ao todo, 70 instâncias de vozes dos/as docentes contra 71 do governo do DF nas reportagens do Correio Braziliense. Um dos objetivos de pesquisa é investigar aspectos acionais e interacionais do gênero situado reportagem jornalística, materializado no corpus principal. Portanto, interessa-nos aqui analisar as inter(ações) por meio da intertextualidade, isto é, quais as vozes aparecem (ou são suprimidas) e como elas são articuladas.

Bakhtin (2006) orienta que a inércia do discurso direto pode ser atenuada pelo verbo que introduz a citação ou por observações e réplicas feitas pelo/a autor/a do texto. Isto quer dizer que, conquanto esse tipo de discurso pareça neutro, seu uso traz implicações ideológicas. Esse pensamento coaduna-se com a ideia de que “eventos e interações sociais variam em termos da orientação para diferença, assim como ocorre com os textos como parte dos eventos sociais” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 42).

Em relação ao uso do discurso direto e indireto, nas reportagens do Correio

Braziliense, foi relevante notar certas recorrências: a voz do governo do DF, por meio

do governador ou de seus representantes, foi ou constantemente ratificada pelo jornal (o que está sublinhado) ou não havia comentários em sentido contrário, consoante observamos nos exemplos abaixo:

(33) "Dialogar é uma marca de um governo democrático. Vamos continuar conversando sobre o plano de carreia. Mas como a população pode entender uma greve de uma categoria que teve 13%, quase 14% de reajuste? Talvez seja o maior do Brasil, é duas vezes a inflação”. [...] Ele refere-se ao reajuste de 13,83%, concedido à

categoria em 2011 e dividido em três parcelas. A primeira, de 6,36%, foi paga em 2011; a segunda, de 4,7%, em setembro do mesmo ano, e a última, de 2,69%, deve ser aplicada ao próximo salário. (Texto1, Correio Braziliense, 09.03.12)

(34) "Os professores do DF também ganham três vezes mais do que o piso nacional da educação. Agora não é possível ter aumento porque colocaria o DF na ilegalidade". [...] Desde o início da greve, a categoria pressiona o GDF a usar os R$ 285 milhões do Fundo Constitucional do DF para cobrir o reajuste salarial. No entanto, o argumento do governo é de que a manobra seria ilegal. (Texto 7, Correio

Braziliense, 11.04.12)

(35) Os professores consideraram insuficiente a proposta feita pelo governo, que inclui o pagamento de R$ 110, a partir de julho deste ano (veja quadro). Infelizmente, o momento e a realidade financeira e orçamentária por que passa este governo, aliados aos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), nos impedem de avançar como gostaríamos no atendimento das reivindicações. (Texto 12, Correio Braziliense, 20.04.12)

(36) "Esperamos que os professores tenham bom senso e pensem nos estudantes que estão sem aulas. Há uma decisão judicial e os educadores precisam cumpri-la". A liminar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDF) foi concedida na última sexta-feira pelo desembargador José Divino e Oliveira, atendimento, atentando ao pedido da 2ª Promotoria de Justiça e Defesa da Educação (Proeduc) do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). (Texto 13, Correio Braziliense, 23.04.12)

No exemplo (33), depois do discurso do Governador do DF, o jornal explicita como foram divididos os reajustes proporcionados aos/às docentes. No exemplo (34), após a fala do governo, o jornal esclarece a questão da ilegalidade a que o governo se refere. Em (35), o jornal apresenta proposta do governo à classe por meio da remissão a um quadro contendo cinco itens que teriam sido oferecidos pelo governo e rejeitados pela categoria. Em (36) há, no trecho destacado, uma continuidade por meio do esclarecimento da decisão judicial.

Em suma, o Correio Braziliense corrobora, ratifica, esclarece, justifica as declarações feitas pelo governo, em um diálogo perfeitamente alinhado, que se mistura a ponto de parecer um só, portanto o cenário de negociação da diferença aí presente é o do consenso, isto é, o fechamento ou supressão da diferença. Isso nos remete à legitimação por racionalização, isto é, a construção de uma rede de raciocínios que justificam/apoiam o ponto de vista governamental a fim de que ele seja considerado digno/válido.

Já acerca das vozes dos/as professores a análise mostrou diferenças: antes ou depois do discurso dessa categoria, que aparece em itálico, o jornal geralmente refuta as

ideias apresentadas, que aparecem sublinhadas, acentuando a diferença. Vejamos os exemplos abaixo:

(37) "Exigimos pelo menos uma média do que ganham os profissionais de nível

superior da capital”, complementou (voz da diretora de imprensa do Sinpro-DF).

Um professor da rede pública com dedicação exclusiva e que trabalhe 40 horas semanais recebe 4.226, a maior remuneração do país. (Texto1, Correio Braziliense, 09.03.12)

(38) "Foram quatro reuniões nas duas últimas semanas, sem nenhuma proposta.

Entendemos que há uma intransigência do governo", avaliou. (voz do diretor do

Sinpro-DF). Segundo ele, o reajuste pode ser concedido com verba do Fundo Constitucional, no entanto o secretário de Administração rebate. "São 9,9 bilhões do fundo para este ano. Desse valor, quase 9 bilhões são para gasto com pessoal. O restante, menos de 10%, será direcionado para infraestrutura de hospitais, escolas, etc. Não podemos usá-lo para reajuste salarial. Seria um erro do GDF", argumentou. (Texto 3, Correio Braziliense, 14.03.12)

(39) Além disso, ele disse que o sindicato tenta "de todas as formas, abrir um diálogo

com o GDF." (voz do diretor do Sinpro-DF). [...] Além disso, segundo Denilson, o

diálogo continua aberto e pelo menos 90% das reivindicações da categoria já foram negociadas. (Texto 5, Correio Braziliense, 28.03.12)

(40) De acordo com um levantamento da Secretaria de Educação, feito na última sexta- feira, 42% dos cerca de 27 mil professores estão parados. O Sinpro, por sua vez,

alega que aproximadamente 65% dos profissionais cruzaram os braços. Nenhuma

escola do DF parou completamente. (Texto 5, Correio Braziliense, 28.03.12) (41) "Essa situação é uma vergonha, imoral. Não propuseram nada para este ano”,

reclamou Washington Dourado, diretor jurídico do Sinpro. O governo apresentou

seis propostas, entre elas a incorporação integral da Titularidade de Dedicação Exclusiva ao Magistério (Tidem) em seis parcelas a partir de 2013; o pagamento da dívida oriunda de acerto de contas de exercícios anteriores, metade em 2013 e metade em 2014; e a divulgação do edital de convocação para contratação de 129 professores e profissionais da educação para suprir as vagas decorrentes de aposentadorias, exonerações e falecimentos desde 1º de janeiro deste ano. (Texto 8,

Correio Braziliense, 13.04.12)

Os exemplos mostram que as instâncias discursivas referentes à voz dos/as docentes são plenamente refutadas e seus discursos deslegitimados. Isso é feito ou pelo próprio jornal ou por outras vozes utilizadas para esse fim. Nesses cenários, a voz do jornal acentua a diferença: no exemplo (37), o jornal não utiliza conjunção que indique oposição, mas constrói uma relação contrastiva (de oposição, contraste), nos termos de Fairclough (2003), entre o período que exemplifica a voz dos/as professores/as e o seguinte, ressaltando que a categoria recebe a maior remuneração do país.

Em relação ao exemplo (38), o Correio Braziliense tenta desconstruir a "instransigência" da fala do diretor do Sinpro-DF, utilizando uma relação contrastiva

("no entanto"), a qual apela para uma autoridade especializada (van LEEUWEN, 2008), isto é, de alguém com expertise, nesse caso, o secretário de Administração. Os exemplos (39) e (40) assemelham-se, a voz do Sinpro-DF é posta em xeque, confirmando o que van Dijk (2010) sugere sobre a relação discurso, acesso e poder: quando grupos criticam ou reivindicam algo de elites, seus discursos são sempre questionados (ver seção 4.2). Em (39), o contraponto é o discurso do representante do governo, fundido ao do jornal, por meio de uma afirmação; observe que o jornal usa as aspas no discurso do sindicato demarcando uma distância entre as vozes, o que não ocorre em seguida com a voz do governo, a qual é internalizada. Em (40), "um levantamento feito", ação concreta e realizada, contradiz uma alegação ("o Sinpro [...] alega"), ou seja, uma conjectura, uma suposição, uma possibilidade, enfraquecida/suplantada também por uma afirmação categórica "Nenhuma escola parou completamente".

Por fim e ao cabo, no exemplo (41), o jornal contradiz “Não propuseram nada para este ano”, com a afirmação de que “o governo apresentou seis propostas”, listando as tais propostas. Além disso, a seleção lexical do processo verbal (verbo dicendi) "reclamou" é ideológica, uma vez que é uma atribuição do/a autor/a da reportagem, conforme analisaremos na seção 4.3.2 (Seleção lexical, avaliação e presunções valorativas). Dessa forma, há uma deslegitimação da voz dos/as professores/as e, possivelmente, dos sentidos das mobilizações.

Quando as vozes apresentadas são de pais, mães e alunos ou motoristas, todas trazem uma perspectiva negativa em relação à greve, tal como vimos nas micronarrativas das reportagens, na subseção 4.2.1.1, e dão suporte ao posicionamento do jornal, desfavorável à causa dos/as docentes, conforme ilustram alguns exemplos:

(42) "Eu acho que os grevistas só prejudicam os estudantes. Pelo menos os temporários darão aula. A greve atrapalha muito os alunos. Temos vestibular e PAS e não dá para ficar perdendo aula". (Yonka Johana Coelho, estudante, Texto 2, Correio

Braziliense)

(43) "Eu estou preocupada e os meus pais também. Vou estudar com base em que, se eu não tenho aula?" (Victória Lucena Cassimiro, estudante, Texto 16, Correio

Braziliense)

(44) "Os alunos já foram muito prejudicados. A reposição é bastante sacrificante e a maioria dos estudantes não comparece às escolas no sábado. É preciso um esforço muito grande de pais e professores". (pai, Texto 21, Correio Braziliense)

Podemos perceber, como ilustram os exemplos (42) e (43), que a voz das alunas serve de reforço ao discurso do jornal para descaracterizar as mobilizações e os/as docentes, uma vez que o foco são aspectos negativos. O uso de "prejudicados", em (44), estabelece um diálogo entre as vozes do pai e do governo, revelado pela recorrência do termo "prejuízo" nas falas deste último. A fala da aluna, em (43), está localizada em uma seção da reportagem intitulada "Apoio dos alunos". No entanto, em virtude do complemento "desabafou a jovem, que faz parte de um contingente de meio

milhão de estudantes da rede pública prejudicados com a greve", o apoio da aluna é

posto em dúvida.

Conforme Fairclough (2003), analisar gêneros é relevante porque eles estão ligados à (inter)ação em meio às práticas sociais. Da análise da intertextualidade, nos textos do corpus, foi possível identificar a legitimação da voz institucional do governo do DF. Nos cenários de negociação da diferença, houve formação do consenso em relação à voz do governo e acentuação da diferença em relação à voz dos/as docentes. A inclusão de outras vozes contribuiu para a formação do consenso, isto é, da aceitação das diferenças de poder. Além disso, foi possível identificar, em meio à cadeia intertextual, o modo de operação fragmentação, por meio da estratégia expurgo do

outro, a qual, conforme vimos na subseção anterior, contribui para a criação de um

inimigo simbólico. Portanto, nas reportagens, o discurso do jornal alinhou-se ao do governo e contestou o discurso dos/as docentes.