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Sem a sua arte não existo

Dividimos o mesmo espaço em outro tempo Chego quando você já se foi

Deixo pra você um detalhe no que você me deixou E feche o buraco, moça, disse o Sr. João, um caiçara que passava

Não fui eu quem o abriu, eu só o colori - respondi Feche o buraco mesmo assim, como mãe você deve saber destas coisas...

81 Fig. 45. Paula Tura. Buracos, 2013. Corante sobre areia e água salgada. Fotografia

Paula Tura. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP. Acervo da artista.

Fig. 46. Paula Tura. Gato, 2013. Contorno de desenho com corante. Fotografia Paula Tura. Praia da Lagoinha,

82 Fig. 47. Paula Tura. Monstro, 2013. Corante em escultura de areia.

83 Fig. 48. Paula Tura. Pé, 2013. Contorno de pegada em areia. Fotografia Paula

Tura. Praia da Lagoinha, Ubatuba-SP. Acervo da artista.

Como frequentadora assídua do litoral, a autora em sua pesquisa propôs-se a passear pela Praia da Lagoinha em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, em um dia de bastante movimento e assim postou-se a observar o que os frequentadores estavam criando durante as longas horas que por ali permaneciam entre banho de mar, banho de sol e brincadeiras na areia. Observou então as obras acima, anotou o local onde elas estavam sendo construídas e

antes do pôr do sol colocou as mãos à

obra interferindo com corante de roupas (o que sabe hoje que deveria ter feito com anilina comestível) nas obras destes autores anônimos.

Durante a interferência nas obras a autora lançou mão de muitos pensamentos tentando colocar-se no lugar dos autores imaginando quanto tempo eles levaram para desenvolver seus projetos, tentando imaginar sobre o que estavam conversando, se a ideia inicial havia dado certo ou se mudaram a proposta no meio do caminho, se eram adultos, crianças, jovens, se eram amigos ou parentes, se estavam ali pela primeira vez ou eram antigos frequentadores.

Com a intenção de deixar um rastro de comunicabilidade entre as obras a autora escolheu utilizar uma cor única para as intervenções. Salvo a obra Buracos (fig. 45) que conta com a cor roxo, rosa e amarelo, todas as outras obras sofreram intervenção apenas com a cor roxo. Aliás, a obra Buracos possui uma característica única: Sr. João, um caiçara que passava advertiu para que os buracos fossem fechados, pois segundo sua experiência muitas pessoas ao jogarem bola ou caminharem não enxergam os buracos e se acidentam.

84 Sr. João, aliás, um caiçara muito simpático, portando uma sacola nas mãos perguntou a autora se ela não gostaria de conhecer a Ubatuba de décadas atrás e com muita simpatia abriu um pacote que continha um álbum com fotografias da década de 60 e 70 inclusive com fotos de seus familiares. Nestas fotos, a orla que hoje conta com inúmeras casas e prédios era apenas uma extensa faixa de areia cheia de árvores. Sr. João saudoso contou que agora são mais prósperos, mas que a natureza abundante lhe faz falta.

A obra Pé (fig. 48) foi uma provocação à autora: como não registrar um pé diante de tantos pés descalços sobre a areia? Momento de liberdade para os dedos que por fim estão longe dos espaços confinados e da altura imposta pelos sapatos de salto. Pés que caminham longas distâncias, sentem a textura dos grãos de areia, a temperatura da água do mar, a carícia da espuma da água marinha. Pés que balançam quando as pernas estão cruzadas, que chutam bola com as crianças sem qualquer pretensão de competição. Pés que apoiados sobre pranchas deslizam nas ondas do mar. Pés que “têm a forma de uma semente (...) Os pés escutam a terra e nos enraízam na matéria” (LELOUP, 1998, p. 32). E com estes pés,

Na praia eu vou nadar, na praia eu vou ficar. Na praia eu vou deixar uma pessoa me encantar. Na praia vou encontrar motivos para sonhar. Na praia vou brincar, gritar e me apaixonar.

Se eu me apaixonar mais tarde, mais tarde vou casar. E no momento do casório na praia vou estar. Meus filhos vão crescer e também vão aprender. Sempre na praia aparecer.

E quando eu envelhecer na praia eu vou morrer. Na praia eu vou embora eu e minha história. Se minha mulher se angustiar na praia vai chorar. Para lembrar do nosso tempo de brincar e se encantar. (NOVAES, 2004, p. 23)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Somos em nossa história, heróis e vilões ao mesmo tempo. (MENDONÇA, 2005, p. 69)

A realização de uma pesquisa em arte cuja proposta consiste na análise de obras concebidas pela própria autora é de extrema dificuldade. Exige distanciamento, criticidade e foco. O distanciamento se fez necessário em todas as etapas do trabalho: na observação das obras desenvolvidas antes do início da pesquisa, embasamento teórico destas obras e concepção e produção das novas obras seguindo uma mesma linha de pesquisa e composição. A criticidade precisou ser pensada com cautela para que as obras não fossem criticadas ao extremo a ponto de serem eliminadas do projeto, no caso das obras concebidas anteriormente; para as obras subsequentes foi preciso elaboração sem preciosismo ou apego permitindo sugestões, reflexões e experimentações advindas de artistas muito mais experientes.

Por outro lado, um trabalho de arte realizado por uma artista que não está no mercado de arte comercializando suas peças ou realizando esta pesquisa voltada aos interesses econômicos faz de todo o trabalho algo um tanto curioso. Foram horas de leitura, visitas a exposições, centros culturais, acervos, viagens, produções e investimento financeiro para que esta pesquisa pudesse acontecer. Foi, no entanto, através desta pesquisa que a artista exercitou a expressão de suas inquietações sem que necessariamente precisasse recorrer a oralidade, a exemplo da palestra Corpo Natureza, na qual ao invés de utilizar os recursos audiovisuais tradicionais optou por mostrar parte do acervo contido nesta pesquisa e discutir com o público presente sobre os procedimentos, materiais utilizados e inquietações que levaram a artista à concepção daquelas obras. O interessante da palestra sobre o corpo foi partir de dois princípios: expor as obras e esperar que o público questionasse. Não seria isto o que se espera da arte? Não se espera que seja um processo reflexivo? Foi muito enriquecedor perceber a importância que o público colocou na possibilidade de experimentar pensar sobre as obras com a artista presente, de expor as dúvidas sobre a materialidade ao mesmo tempo que podiam falar sobre a quê ou ao quê aquelas obras lhes remetiam.

Percorrer os caminhos da Arte Contemporânea para compor este trabalho foi uma tarefa árdua. Há um distanciamento histórico e cultural, há a exigência da compreensão de conceitos, há a necessidade de compreender o momento histórico que levou à concepção dos movimentos e estabelecer um paralelo com a situação atual. Exige-se uma reflexão sobre o tempo real e isto é complexo, pois sempre se faz necessário um tempo para processar e entender o que está acontecendo socialmente, culturalmente, economicamente na atualidade para - quem sabe?- prever as possibilidades de desdobramento futuro.

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