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Intervenções e modernização urbana no Rio de Janeiro

3 PROJETOS DE INTERVENÇÃO E A RECOMPOSIÇÃO PAISAGÍSTICA: A

3.1 Intervenções e modernização urbana no Rio de Janeiro

As primeiras intervenções urbanas realizadas na Europa, entre os fins do século XIX e início do XX, influenciaram os métodos empregados na política urbana adotadas no Brasil no período em que se enunciava a modernização do país. Nesse contexto, na Europa, entre 1830 a 1950, a urbanística moderna vigorou com métodos de intervenção devido aos problemas decorrentes da industrialização e da onda migratória do campo para a cidade. Na “Paris de Haussmann”, sob o pretexto de criar avenidas e ruas modernas, foi adotada uma legislação urbanística para tratar, sanear, higienizar, embelezar e racionalizar os espaços urbanos.

Segundo Leonardo Benevolo (1989, p. 91), “as primeiras leis sanitárias são o modesto começo sobre o qual será construído, pouco a pouco, o complicado edifício da legislação urbanística contemporânea”. Os principais setores de ação foram difundidos de forma estratégica tencionando eliminar os problemas de infraestrutura urbana (insuficiência de esgotos, a falta de água potável e a difusão de epidemias). Foi nesse sentido que autoridades de diversas cidades europeias (Viena, Londres, Berlim etc.) anunciaram planos de reformas urbanas a fim de coordenar o progresso das cidades industriais, controlar e organizar os padrões de vida daquelas sociedades.

Apesar do desenvolvimento urbano, as reformas em conjunto não alteraram as especificidades da vida econômica e social. O ambiente era de efervescência e contestação, enquanto as dificuldades políticas e econômicas influenciadas pelo pensamento liberal abriram

espaço para a eclosão de movimentos socialistas após a Revolução de 1848, devido à falta de representação política dos Estados. Neste sentido, as reformas tornaram-se estrategicamente um dos mais importantes e eficazes instrumentos de poder contra os levantes populares promovidos pelos movimentos socialistas e pela classe operária. Refere Walter Benjamin (1997) que este modelo urbanístico tinha como objetivo evitar a formação de barricadas e trincheiras ao tempo que construía um novo panorama cenográfico de cidade, caso de Paris, cidade das luzes, capital do Século XIX.

A capital francesa foi redesenhada. O antigo traçado da cidade foi sobreposto com a demolição das antigas e estreitas ruas medievais e largas avenidas foram construídas com o propósito de evitar futuras conflagrações, tanto por parte dos motins revolucionários quanto por possíveis revoltas da classe operária. Nesse conjunto de obras, insurge a nova Paris, moderna e monumental, renovada pelas polêmicas obras executadas pelo prefeito Georges Eugène Haussmann, considerado o fundador do chamado planejamento estratégico73. O ideal político

de Haussmann orientava as reformas urbanas à tendência chamada por Walter Benjamin (1997) de “embelezamento estratégico”, que se seguiu ao longo do século XIX – higienização, embelezamento e racionalização dos espaços.

O plano de reforma dos espaços de circulação e sociabilidade de Paris se caracterizou por obras viárias de urbanização em terrenos periféricos. Desse modo, ruas e casebres antigos foram demolidos para dar lugar aos grandes boulevards da cidade, aos parques públicos (que atenderam também aos bairros populares), aos novos equipamentos públicos, às instalações elétricas que caracterizaram Paris como a “capital das luzes” (BENJAMIN, 1997). Essas obras têm seu impacto na cultura urbana e sociabilidade parisiense, a exemplo da construção dos famosos cafés a acentuar a separação dos espaços públicos e privados (BENEVOLO, 1989). O “embelezamento estratégico” de Paris pretendia adequar a capital francesa às necessidades de circulação do capital financeiro que a cidade industrial reclamava (LEITE, 2007). Portanto, as políticas de reformas urbanas são marcos que revelam a intenção modernizadora e abordam as principais características do período que marcaria a arquitetura na belle époque francesa, época que ocorreu aproximadamente de 1880 até o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918.

73 Foram executados novos traçados dos edifícios e abertura de novas ruas e avenidas para os velhos bairros; que

na prática, sobrepuseram o corpo da antiga cidade a nova malha de ruas largas e retilíneas, demolindo as antigas ruas medievais para facilitar o movimento das tropas. Também foram criados – em prol da modernização –os grandes Boulevards da cidade e os famosos parques públicos (que atenderam também os bairros populares); renovou-se as instalações da velha Paris, abrangendo as instalações hidráulicas, rede de esgotos, iluminação, transportes públicos etc.

No caso brasileiro, de acordo com N. Sevcenko (1998), o país viveu uma típica belle

époque de enriquecimento e estabilização entre produção e consumo. Neste período o país

passou por importantes transformações políticas e econômicas com o advento da república em 1889, seguindo as tendências modernizantes europeias da época. Após as primeiras mudanças, a partir da abolição da escravatura e o surto da grande imigração, “a idéia das novas elites era promover uma industrialização imediata e a modernização do país ‘a todo custo’ [...] era a entrada triunfal do Brasil na modernidade” (SEVCENKO, 1998, p. 15).

A belle époque brasileira, cuja duração abrange o período da guerra europeia, é resultado desta drástica, e ao mesmo tempo dinâmica transformação da sociedade nacional e da consolidação do novo regime. Estava em curso o projeto de desenvolvimento do país e, concomitantemente, sua inserção no contexto da expansão internacional do capitalismo com a abertura da economia brasileira aos capitais estrangeiros. Este período corresponde à “Regeneração”74 do país, ao passo que a cidade do Rio de Janeiro se tornava palco do primeiro

conjunto de reformas urbanas no início do século XX. Essa iniciativa tinha como objetivo central associar o Brasil à modernidade e ao cenário de progresso. As mudanças socioculturais e econômicas ocorrem em outras cidades como São Paulo, Salvador, Recife e Manaus, que também passaram por reformas urbanas neste período.

A reurbanização do Rio ocorreu durante o governo de Rodrigues Alves e na administração municipal do então prefeito Pereira Passos. O objetivo foi transformar a cidade no cartão-postal do país, com paisagens naturais e traços urbanos modernos, mas era preciso combater as “mazelas” herdadas do período colonial e da escravidão. Segundo Paulo César G. Marins (1998, p. 152), o poder público demonstrava sua real dimensão neste processo de intervenção: o embelezamento e a abertura de novas avenidas nos bairros ao sul da cidade serviu para “readequar os padrões habitacionais, sanear e zonear socialmente a nova capital redesenhada”. Paralelamente, emergiu o movimento da Regeneração que teve como marco inaugural o chamado “bota-abaixo” da área central do Rio de Janeiro. Para efetivar o programa segundo o modelo parisiense, adotaram-se medidas sanitárias no combate às doenças epidêmicas e endêmicas que assolavam a população de baixo poder aquisitivo devido às precárias condições sociais e habitacionais. Esta tendência se seguiu nas demais capitais brasileiras como Recife, Salvador, São Paulo e Porto Alegre.

74 Explica N.Sevcenko (1998) que a Regeneração correspondeu ao entusiasmo capitalista das elites de que o país

havia sido posto em harmonia com o processo civilizatório e do progresso. Patenteava a ideia de que a República viera para ficar e com ela o país romperia com a letargia de seu passado, alcançando novo patamar entre as nações modernas.

Além dos ideários de higienização, do embelezamento e de racionalização do espaço urbano, o método empregado para a construção de parques, praças, jardins e monumentais edifícios de arquitetura moderna, proporcionou a redefinição dos espaços públicos e privados das grandes cidades brasileiras (LEITE, 2007). O projeto implantado na capital carioca baseou- se nos mesmos princípios e processos de exclusão habitacional, que se fizeram presentes em Paris, ao elevar os preços dos terrenos circundantes em toda a cidade e a valorização do centro da cidade. Dessa forma, as intervenções realizadas no Brasil, por um lado partiam de uma perspectiva otimista e de confiança no crescimento econômico do país, mas por outro, os grupos populares nos sertões e nas capitais perdiam cada vez mais espaço e viam seu modo de vida e seus valores tradicionais ameaçados (NEEDELL, 1993).

As intervenções começam com as instalações portuárias, obsoletas, onerosas e pouco funcionais para atender as grandes embarcações e os modernos transatlânticos. No entanto, o Rio de Janeiro era “o principal porto de exportação e importação do país e o terceiro em importância no continente americano, depois de Nova York e Buenos Aires. Mais que isso, como capital da República ele era a vitrine do país” (SEVCENKO, 1998, p. 22), e economicamente precisava aliar as necessidades de atravessar por trem as mercadorias para as diversas zonas da cidade, assim como para outras regiões do país. A cidade colonial não comportava os padrões de habitação e as estruturas viárias de vielas tortuosas dificultavam o fluxo de pessoas e o tráfego de caminhões, principalmente porque havia intensa demanda por capitais, técnicos e imigrantes europeus. Era preciso criar condições para que a cidade operasse como um atrativo para os estrangeiros (SEVCENKO, 1998).

Como indica Lená M. Menezes (1999), foi no alvorecer do século XX que o Rio de Janeiro vivenciou grandes mudanças entre “o barulho e a poeira das demolições” que anunciavam o “progresso” e as novas representações para a cidade. Essas representações também significaram a condenação das tradições – as rodas de capoeiras, as festas populares e cultos religiosos de origem africana, as formas e os gêneros musicais que uniam o popular ao erudito, a exemplo do Samba (ZALUAR; ALVITO, 2006). As múltiplas ruelas do Rio de Janeiro e as dificuldades de expansão e mobilidade na cidade enquadraram-se em outro tempo, pois “a modernidade abria seu caminho numa voracidade sem limites. Vencendo a topografia acidentada, ela tragava morros, pântanos e lagoas, definindo mudanças sensíveis no ser, no ter, no fazer e no sentir (MENEZES, 1999, p.109). No entanto, a cidade permanecia em busca de articular a mudança paisagística às práticas da arquitetura e urbanismo modernos, embora os primeiros planos de reurbanização ocorressem por meio da engenharia civil.

As insatisfações populares, algo recorrente ao Rio de Janeiro na contemporaneidade, culminou na Revolta da Vacina, um dos exemplos mais significativo de levante popular contra as promessas das reformas urbanas modernizantes em 1904 e de revolta com o descaso do poder público. Este episódio consolidou uma tentativa da população em contrapor as intenções da brusca demolição de residências iniciadas em 1903 pelas autoridades, mas que não evitou a expulsão dos moradores antigos na operação que ficou conhecida para a população pobre, os diretamente atingidos, como “bota-abaixo” (SEVCENKO, 1998).

Não por menos, além da transformação social decorrente da desintegração da ordem escravista para a ascensão de novas relações sociais provenientes da “ordem burguesa” (MENEZES, 1999) no cotidiano carioca, modificam-se também os postos de trabalho, os setores de serviços e as formas de sociabilidade. Mas além de levantes populares, o mundo civilizado, moderno e focado nos modos de vida europeus, também convivia em embate com os resquícios da mentalidade escravista e fundiária, o que trazia dificuldades ao poder público de exercer algumas obras nos moldes impositivos do progresso. Isto se reflete nas desapropriações das antigas fazendas de café na Floresta da Tijuca para possibilitar o reflorestamento florestal e a criação de novas áreas.

Mas de algum modo, o ponto crucial na administração de Pereira Passos era a reforma da área central, com abertura da Avenida Central (atual Av. Rio Branco), a construção do Theatro Municipal, a arborização da praça XV de Novembro, os alargamentos e reformas de ruas para que garantissem os ares cosmopolitas que seriam enunciados nos passeios públicos, e com a construção da Av. Atlântica. Todos esses espaços tornavam-se vitrines de um novo cenário do Rio de Janeiro e adotou-se os chamados códigos de posturas (MENEZES, 1999), a partir dos quais diversas regras foram apresentadas para que se cumprisse o ideário de higienização e racionalização urbanística.

Imagem 17 - Teatro Municipal: um dos exemplares do elitismo na arquitetura carioca.

Fonte: Acervo particular do autor, 2014.

Imagem 18 - Cartão Postal do Rio de Janeiro. A Avenida Rio Branco na Belle Époque carioca

Fonte: Arquivo público.

O Rio de Janeiro foi a primeira cidade brasileira a sofrer um amplo projeto de reformas desde o início do período republicano brasileiro e tornou-se referência do modelo “civilizador”

da Paris haussmanniana. Com os códigos de posturas, a cidade “seria alvo das mais variadas tentativas de controle das moradias, no sentido de harmonizar as vizinhanças e estender à dimensão coletiva, pública, os padrões de privacidade controlada e estável” (MARINS, 1998, p. 137). Mesmo que tivesse a condição privilegiada de capital do país até 1960, o controle do Estado e a estabilidade projetada não foram suficientes para evitar a ineficiência dos procedimentos de fiscalização e as contrapartidas políticas acerca das políticas de planejamento urbano para a cidade, no decorrer do século XX, após a intervenções e reformas da administração Pereira Passos.

Após as intervenções, os atingidos do “bota-abaixo” foram despejados dos antigos cortiços, sobrados e ruas sem que houvessem indenizações e providências para realocar os habitantes.

Na inexistência de alternativas, essas multidões juntaram restos de madeira dos caixotes de mercadorias descartados no porto e se puseram a montar com eles toscos barracões nas encostas íngremes dos morros que cercam a cidade, cobrindo-os com folhas-de-flandres de latões de querosene desdobrados. Era a disseminação das favelas (SEVCENKO, 1998, p. 23).

Como reflexo desse período, as administrações seguintes insistiam na preservação da “cidade-vitrine” (MENEZES, 1999), capital federal até a transferência da capital para Brasília, e na designação de planos de contenção e erradicação das favelas. Como ressaltam Alba Zaluar e Marcos Alvito (2006), a história da favela se confunde com a história do Brasil desde a virada do século passado (resquícios da correlação entre a história política e social do Brasil e a do Rio de Janeiro, defendida por Freitag (2009)). A favela expressa particularmente os conflitos políticos (regionais e federais), assim como os conflitos identitários da cidade. No ímpeto para remodelar a paisagem da cidade, a favela enfrentava as formas de controle social e do uso do solo. Desde então, o Rio de Janeiro buscava proteger-se do que viria ser uma espécie de contrarreferência de sua própria narrativa moderna, uma contrapaisagem de sua paisagem moderna. Já estes autores entendem que as favelas se tornaram marcas na capital federal após os processos de reformas urbanas e recomposição paisagística de modo a torná-la uma cidade europeizada, portanto, para os autores, a favela, mesmo com as repercussões negativas de sua presença, é um espaço público que “venceu” as dificuldades em fazer parte da cidade modernista carioca75.

75 Para Machado da Silva (2002), apesar das favelas adquirirem certo reconhecimento institucional e simbólico,

Cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cortiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também se deveu à criatividade cultural e política, à capacidade de luta e de organização demonstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história. Mas a favela ficou também registrada oficialmente como a área de habitações irregularmente construídas, sem armamentos, sem plano urbano, sem esgotos, sem água, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que fizeram da favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias políticas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da cidade, o “outro”, distinto do morador civilizado da primeira metrópole que o Brasil teve (ZALUAR; ALVITO, 2006, p. 07- 08).

Para além dos problemas socioeconômicos que perpassa a caracterização das favelas, devemos registrar a espacialização das práticas culturais que viria diferenciar o Rio de Janeiro em diferentes Rios de Janeiro, ainda que continue sendo fortemente polarizada nas representações do senso comum, em discursos oficiais e até acadêmicos de “morro x asfalto”, cidade “forma x informal”, espaço “legal x ilegal”, “cidade x não-cidade” (ZALUAR; ALVITO, 2006; BARBOSA, 2012). Contra esta polarização, defende-se os princípios da pluralidade que na experiência contemporânea da cidade toma dimensões culturais hibridizadas, ao mesmo tempo que a cidade se enuncia fragmentada entre as diversas camadas sociais pelas próprias características de sua cultura material e imaterial que tornaram seus morros referências paisagísticas permeados de contra-paisagens “físicas e simbólicas”. Ou como indaga Barbosa (2012), na “paisagem bonita por natureza” são estes espaços, como representação das contradições da vida sociocultural e das desigualdades econômicas da cidade, os antissímbolos da paisagem carioca?

Nosso intuito não é debater as características e práticas culturais das favelas, no entanto remete-se à co-presença desses espaços no aspecto físico e simbólico para nos atermos ao debate sobre os conceitos de paisagem e o que é chamado de contrapaisagem, que precisamos evidenciar, como já dito em parágrafos que retomam nosso argumento introdutório. Até aqui desenvolvi um breve tópico sobre a espacialização da cidade do Rio de Janeiro em consequência dos processos de intervenção do início do século XX, que a tornaram um conceito de paisagem construída intencionalmente com traços modernos, voltados para o desafio de lidar com a construção do ambiente urbano quando se investia na produção imagética da “Cidade

vitória dos favelados que, entretanto, continuam a representar a parcela da reprodução da desigualdade econômica,

Maravilhosa” e de suas paisagens como cartão-postal do Brasil, de modernização das avenidas e ruas da cidade.

3.2 As políticas de proteção paisagística e a sustentabilidade do “ambiente cultural”