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1. INCURSÕES SOBRE OS CONCEITOS E CONFIGURAÇÕES SIMBÓLICAS

1.1. INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

O Corpus desta tese é constituído de um conjunto de narrativas que passo a classificar como pertencendo ao seguinte tipo: Narrativa Escrita Ficcional de Tema Popular (NEFTP). Acredito que este nome é apropriado para compreender a natureza da produção escrita do autor paraense Walcyr Monteiro.

Logo, dado o exposto, chamo a atenção primeiramente para o fato de que tais narrativas possuem um estatuto ficcional, o que se dá em razão de alguns princípios básicos vinculados por Reis e Lopes (1988), Moisés (1989) e Perber(2009), a saber:

i) são fruto da capacidade inventiva e/ou transformativa do autor de reconstruir personagens, fatos, eventos e situações contidos em histórias em circulação no universo popular amazônico, concedendo-lhes, acima de tudo, um estatuto simbólico particular e/ou específico a partir da ressignificação da realidade social e cultural amazônica;

ii) são produtos de um estilo criativo próprio, de uma forma específica por meio da qual o escritor reconstitui sentidos instalados nas construções lendárias, o que pode ser comprovado pelas diversas estratégias referenciais usadas por ele no processo de criação dessas histórias (Cf. Cap. 4);

iii) possuem um significado discursivo e metafórico diferenciados em relação a outras produções ficcionais ou ligadas ao ficcional, mais precisamente no que diz respeito ao modo de construção de personagens e eventos evocados do universo lendário;

iv) não se caracterizam por conterem elementos ligados estritamente à linguagem comum e/ou ordinária, cotidiana, mas constituem um universo metafórico sui genbris, singular, por meio do qual o autor (re)cria, em linguagem conotativa, uma espécie de microcosmo afiliado ao lendário;

v) possuem recursos textual-discursivos particulares de ressimbolização de elementos inscritos no lendário; neste caso, ligados a personagens e fatos simbólicos típicos de lendas tradicionais do Boto, Cobra Grande, Matintaperera e Curupira, contendo, em seu

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espaço textual-discursivo, a presença de personagens (e não só os personagens lendários) que são não aqueles existentes na realidade biossocial e/ou factual, mas que são fruto das construções e/ou elaborações ficcionais criativas do próprio escritor, colocada a efeito no processo de produção de suas histórias;

vi) encerram, em sua configuração narrativo-discursiva, relações espaciais e temporais que não são as do mundo factual e histórico, constituindo uma criação analógica do autor em relação a esse mundo, a partir do que consegue dar uma mobilidade e uma dinâmica às personagens e eventos por ele (re)criados e ressignificados;

vii) manifestam, em sua composição narrativo-discursiva, num conjunto heterogêneo de significados inscritos no universo do lendário, mas concede-lhes outras significações fruto de sua capacidade de transformar o que, a principio, parecia ter desaparecido ou ficado restrito a uma tradição lendária mais antiga;

viii) traduzem a capacidade do autor de reinventar, e isso de maneira muito singular, elementos típicos do lendário (como o significado simbólico de um dado personagem), sem desgarrar-se, devido à sua criatividade, dos nichos discursivos de onde tais elementos são provenientes..

Os 8 (oito) itens apresentam um conjunto de características por meio das quais a ficcionalidade vem manifesta nas narrativas escritas por Monteiro. Estas, devido à capacidade criativa do autor, passam a ter um simbolismo específico, constituindo uma maneira por meio da qual elementos situados no lendário adquirem uma espécie de “vida própria”, diferente de outras formas de manifestação do que se coloca como particularmente desse universo.

Assim, tendo em vista o estatuto do ficcional atribuído às narrativas em estudo, considero-as como possuindo uma natureza particular no que concerne à manifestação desse estatuto, a qual está ligada ao fato de que constituem, de acordo com Leite (1994), um discurso representativo/reconstrutivo, mimético, que convoca um universo de experiências, com predominância aí do estilo referencial, mas não correlato ou idêntico ao mundo puramente factual ou histórico.

Por outro lado, ao usar a nomenclatura NEFTP para designar as narrativas em questão, e, nesse caso, ao empregar a expressão de tema popular nessa designação, o faço no sentido de que os temas veiculados por tais histórias são bastante recorrentes entre as chamadas “camadas populares” e, não só isso, “surgem* do próprio povo” (Strinati, 1999). Essa acepção está muito bem colocada em Rentes da Silva (2000), quando postula que o termo “popular”**

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tem relação a tudo que é originário ou emana do próprio povo. Logo, nesse âmbito, afirma que:

o “popular” está relacionado a tudo aquilo que “surge do próprio povo”, tudo aquilo que pode ser caracterizado como “a expressão autônoma de seus interesses e de suas experiências” (Strinati, 1999:21). De qualquer maneira, os estudos sobre o “popular”, objeto este sempre fugido e de contornos pouco nítidos, parecem estar historicamente marcados por gestos que, por tentarem circunscrevê-lo, acabam por instituir a sua morte, já que o interesse por este objeto parece sempre se dar em função de um julgamento, o de que ele encontra-se em “vias de extinção”.

(Bentes da Silva, 2000, p. 153-154)

Assim, com base nas postulações de Bentes da Silva (op. cit), é possível dizer a atribuição atinente a narrativas de tema popular para as histórias aqui analisadas se deve ao fato de que os temas que veiculam estão ligados diretamente a todo um conjunto de temas já em circulação no universo popular amazônico, ou seja, as pessoas que moram na Amazônia conhecem e (re)contam quase que cotidianamente histórias de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira. Por conseguinte, a narração dessas histórias é parte integrante de suas experiências, de sua maneira de conceber ou entender a realidade social e cultural em que estão imersas. Nesse sentido, essas narrativas constituem um espaço discursivo por meio do qual podemos entender todo um conjunto de elementos construtivos da identidade enraizada no povo e na forma como este mobiliza, de diversas maneiras, o conteúdo veiculado por tais histórias.

Acrescente-se que no âmbito dessa característica relacionada ao popular, as histórias em análise evocam elementos populares que, de maneira direta e/ou indireta, consistem de reconstruções e/ou ressignificações de sentidos já inscritos nas formações lendárias. No entanto, ao convocar tais elementos, Monteiro empresta-lhes significados singulares, adequando-os aos seus propósitos, ao seu projeto sociocomunicativo, promovendo uma característica de heterogeneidade ou mesclagem em relação aos elementos lendários que resgata, reatualiza ou reconstitui, mas, por outro lado, não promovendo uma cisão radical com os nichos simbólicos dos quais são originários. É possível então afirmar-se que o lendário aí convocado e reconstituído pelo autor é um lendário de natureza popular, disseminado e/ou mobilizado pelas populações que habitam as várias cidades, vilas e lugarejos da Amazônia. Logo, como o escritor não está à parte desse universo, mas submerso nele, é válido afirmar também que não poderia, nem conseguiria desvincular-se dele, o reconstrua a partir de sua perspectiva, de seu modo de absorver o que está instalado nesse macrocosmo.

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Por conseguinte, tendo por base o fato de que os processos sociocognitivos e as atividades referenciais encampam, nesse âmbito, a evocação ou carreamento de elementos afiliados ao lendário, procedo, em primeira mão, neste capítulo, a nova incursão geral sobre conceitos relacionados às seguintes instâncias ou formas ligadas ao campo narrativos, a saber: mito, lenda e narrativa popular, já que o estudo dos conceitos relativos a tais configurações ou instâncias textual-discursivas podem servir como pressuposto para a questão central aqui posta: por que as narrativas de Monteiro evocam elementos do universo lendário? Ou, em outros termos, por que e de que forma Monteiro se utiliza de elementos afiliados ao lendário na construção de suas narrativas?

Para que as questões acima possam ser, mesmo que parcialmente, respondidas, é preciso compreender determinados contrapontos, diferenciações e também, interseções existentes entre as instâncias textual-discursivas supracitadas, tendo em vista o fato de que entre o mito e a lenda há um distanciamento considerável, mas também algumas ligações. Por esse viés, é válido dizer que a lenda ainda mantém ou conserva, embora de forma um tanto esmaecida ou apagada, elementos constitutivos das formações míticas. É o que acontece, de modo similar, entre a lenda e a narrativa oral popular, pois esta última não deixa de conter elementos ou resquícios da primeira, entendendo-se, no quadro dessas informações, que a narrativa popular reconstitui tipos de significados tributários do que já estava construído/instalado nas lendas tradicionais, considerando, no entanto, que o “reconhecimento”45 ou desvelamento de tais significados, construídos precedentemente não é uma tarefa fácil, mas possível, dado o fato de que podemos fazer algumas projeções e/ou generalizações nessa direção.

Dando prosseguimento ao que está sendo dito, e que se institui como um ponto crucial desta tese, discorro acerca do fato de que também as NEFTPs, de autoria de Walcyr Monteiro, evocam tanto elementos lendários propriamente ditos quanto aqueles inscritos na narrativa oral popular.

Entretanto, é importante dizer que os elementos evocados ou transmigrados das lendas e, posteriormente, presentes nas narrativas populares, não mais se constituem, aí, como originais46, integrais ou puros, mas historicamente transformados ou alterados, daí ser possível nomeá-los como lendários ou integrantes do universo lendário. O que se pode postular, nesse sentido, é que tais elementos podem ter percorrido uma espécie de “caminho”47, longo e “silencioso”48, que vai dos mitos ou das lendas, passando pelas narrativas populares e chegando até a Narrativa Escrita Ficcional de Tema Popular.

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Portanto, tendo em vista o exposto, pretendo aprofundar aqui o caráter ficcional e popular das narrativas em estudo; para isso, trato, no presente capítulo, das relações entre mito, lenda, narrativa popular e a NEFTP, levando em conta, nesse quadro, elementos de contraposição, divergência e interseção existentes entre essas instâncias discursivas.

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