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Atividades de referenciação em narrativas afiliadas ao universo do lendário da Amazônia : implicações sociocognitivas e culturais

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Academic year: 2021

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HELIUD LUIS MAIA MOURA

ATIVIDADES DE REFERENCIAÇÃO EM NARRATIVAS

AFILIADAS AO UNIVERSO DO LENDÁRIO DA AMAZÔNIA:

IMPLICAÇÕES SOCIOCOGNITIVAS E CULTURAIS

CAMPINAS,

(2)
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iii

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

HELIUD LUIS MAIA MOURA

ATIVIDADEs DE REFERENCIAÇÃO EM NARRATIVAS

AFILIADAS AO UNIVERSO DO LENDÁRIO DA AMAZÔNIA:

IMPLICAÇÕES SOCIOCOGNITIVAS E CULTURAIS Orientadora: Profª. Drª. Anna Christina Bentes da Silva

Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Doutor em Linguística.

CAMPINAS, 2013

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iv

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR

TERESINHA DE JESUS JACINTHO – CRB8/6879 - BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM - UNICAMP

M865a

Moura, Heliud Luis Maia, 1957-

Atividades de referenciação em narrativas afiliadas ao universo do lendário da Amazônia: implicações

sociocognitivas e culturais / Heliud Luis Maia Moura. -- Campinas, SP: [s.n.], 2013.

Orientador : Anna Christina Bentes da Silva.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Linguística textual. 2. Sociocognitivismo. 3. Estudos culturais. 4. Referenciação. I. Bentes, Anna Christina, 1963-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em inglês: Referential activities in narratives affiliated to legendary Amazon universe: sociocognitive and cultural implications.

Palavras-chave em inglês: Textual Linguistics

Sociocognitivism Cultural studies Referentiation

Área de concentração: Linguística. Titulação: Doutor em Linguística. Banca examinadora:

Anna Christina Bentes da Silva [Orientador] Renato Cabral Rezende

Sueli Cristina Marquesi Suzi Frankl Sperber

Sandra Amélia Luna Cirne de Azevedo Data da defesa: 22-02-2013.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

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vii

À minha mãe Maria Magnólia, por tanto amor e dedicação.

Ao meu pai Francisco Alexandre Moura (in memoriam).

À minha irmãzinha Jackeline (in memoriam), cuja sensibilidade e energia amorosa me envolve em todos os instantes.

À minha irmã Rita Cirene (in memoriam), pelo estímulo à minha carreira acadêmica.

À minha irmã Maria Lúcia (in memoriam), pela valorização e apoio aos meus projetos acadêmicos e de vida.

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AGRADECIMENTOS

A Deus por me permitir a realização deste trabalho, colocando em meu caminho as pessoas a quem agradeço a contribuição valiosa.

À minha Orientadora Profª. Drª. Anna Christina Bentes, pela competência e sabedoria, orientação segura e firme, acreditando sempre em minha capacidade de realizar um bom trabalho. Seu contributo foi de grande importância para produção desta tese, não somente em termos de orientação, mas, sobretudo, em nível epistemológico e de conhecimento, o que, indubitavelmente, foi decisivo para a construção do meu percurso no doutorado e no processo de construção deste trabalho.

Aos membros da Banca de Qualificação: Profª. Drª. Sueli Cristina Marquesi e Profª. Drª. Suzi Frankl Sperber, pelas orientações e sugestões referentes à construção desta tese.

Aos membros da Comissão julgadora dos trabalhos de defesa desta tese: Prof. Dr. Renato Cabral Rezende – UNIFESP;

Profª. Drª. Sueli Cristina Marquesi – PUC/SP, UNICSUL; Profª. Drª. Suzi Frankl Sperber – UNICAMP;

Profª. Drª. Sandra Amélia Luna Cirne de Azevedo – UFPB.

À Profª. Edwiges Morato, pela orientação referente ao meu trabalho de Qualificação de Área e contribuição intelectual em disciplinas nas quais fui seu aluno.

Aos professores do Instituto de Estudos da Linguagem, especialmente os que integram o Programa de Pós Graduação em Linguística.

À minha mãe Maria Magnólia, pelo estímulo e carinho.

Ao Mário Henrique, pela paciência, presença constante e estímulo, nos momentos de construção desta tese.

Ao Pe. Danilo Rodrigues, pelo apoio e atitude positiva durante minha formação acadêmica.

À Sílvia Maria Campos Bravo e Ismael Bravo, pelo acolhimento e por terem me dado condições de estadia aqui em Campinas durante os anos de doutorado.

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À Maria do Socorro Bergeron Lago e Jailson Bandeira de Oliveira por terem me acolhido em sua casa durante o processo final de construção desta tese.

A todas as pessoas que, direta e indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho.

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“Tudo posso Naquele que me fortalece” (Fl 4, 13).

“Mas, o que é a linguagem? Como é possível que a linguagem signifique, diga coisas, refira-se ao mundo?” (Wittgenstein).

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xiii RESUMO

O meu objetivo, nesta tese, é apresentar um estudo acerca da referenciação, tendo como cerne, das investigações realizadas, a mobilização de atividades de natureza referencial em narrativas afiliadas ao universo lendário da Amazônia, ligadas às entidades Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira. O corpus constitui-se de 17 (dezessete) narrativas escritas, de autoria do escritor paraense Walcyr Monteiro. Nos textos destas histórias, detectei as mencionadas atividades, em que estão envolvidos processos sociocognitivos, sociodiscursivos e cognitivo-culturais ligados a construção dos referidos personagens e a eventos ligados a eles. Por conseguinte, tais processos estão também conectados ao contexto sociocultural de produção desses artefatos simbólicos, que, por seu turno, reconstroem práticas sociais (re)correntes nesse lócus. Tomo, então, como base para este estudo as formulações teóricas da Linguística Textual, do Sociocognitivismo, Sociointeracionismo, da Semântica Cognitiva, Estudos Culturais e da Literatura precisamente no que concerne a gêneros relacionados ao universo das lendas, cujos teóricos mais representativos aqui apresentados são: Koch, Marcuschi, Mondada e Dubois, Conte, Fillmore, Goffman, Bauman, Eliade, Propp e Sperber, para os quais, sob diferentes prismas epistemológicos, as ações linguísticas reconstituem simbolicamente tipos de crenças e ações sociais situadas, inseridas em determinado universo biossocial e cultural.

Palavras-chave: Linguística Textual; Sociocognitivismo; Cognição Cultural; Referenciação; Narrativas afiliadas ao universo do lendário da Amazônia.

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xv ABSTRACT

My objective, in this thesis, is to present a study about the referral, with main issues, the investigations performed, the mobilization of activities of referential nature in narratives associated to the legendary universe from Amazon, linked to the entities Boto, Cobra, Mantitaperera, and Curupira. The corpus consists in seventeen narratives, written by the paranaense Walcyr Monteiro. In the texts of these stories I found the mentioned activities, in which are involved to the social cognitive, social discursive and cultural cognitive processes linked to the construction of the characters mentioned before and the events connected to them. Consequently, these processes are also connected to the sociocultural context of production of these symbolic artifacts, which, in turn, reconstruct social practices (re)currents in this locus. Then, I assume, as the basis for this study theoretical formulations of Textual Linguistics, of Social cognitive, Social interaction of Cognitive Semantics, Cultural Studies and Literature precisely concerning the genders related to the legends universe, whose most representative theorists are presented here: Koch, Marcuschi, Mondada and Dubois, Conte, Fillmore, Goffman, Bauman, Eliade, Propp and Sperber, for whom, under different epistemological prisms, linguistic actions reconstitute symbolical kinds of beliefs and social actions situated, inserted in a given biosocial and cultural universe.

Keywords: Textual Linguistics; Sociocognitivism; Cultural Cognition; Referentiation; Narratives Amazon affiliates legendary universe.

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Tabela relativa à publicação da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia... 3 Tabela 2 - Distribuição das narrativas em estudo nos números e edições da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia. ... 5 Tabela 3 - Estratégias de repredicação de referentes que contribuem para a progressão temática do texto. ... 171 Tabela 4 - Estratégias catafóricas que apontam para referentes temáticos a serem postos na cadeia textual. ... 179 Tabela 5 - Processos de recategorização de personagens afiliados ao universo lendário amazônico. ... 187 Tabela 6 - Estratégias de desfocalização/desativação de um referente e introdução de um novo. ... 195 Tabela 7 - Uso de anáforas indiretas. ... 206 Tabela 8 - Processos metonímicos/meronímicos ligados a construção de referentes. 211 Tabela 9 - Elementos contextualizadores/indicializadores que apontam para a

construção de referentes/personagens e eventos próprios da história a ser contada.... 218 Tabela 10 - Expressões nominais definidas e indefinidas. ... 229 Tabela 11 - Proposições referenciadoras/metaenunciativas que apontam para crenças ligadas aos personagens em estudo. ... 237 Tabela 12 - Presença de elementos sumarizadores/encapsuladores que encadeiam (retomam) segmentos textuais/factuais. ... 249 Tabela 13 - Costruções metadircursivas constituintes do processo de referenciação nas narrativas em estudo. ... 256 Tabela 14 - Formas reificadas de referenciação relativas a personagens de narrativas afiliadas ao lendário...267 Tabela 15 - Marcadores temporais que atuam nos processos de referenciação. ... 276 Tabela 16 - Elementos dêiticos-espaciais endofóricos e exofóricos que referem concomitantemente para dentro e para fora do cotexto. ... 288

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xix SUMÁRIO

PARTE 1: DAS RELAÇÕES ENTRE MITO, LENDA E NARRATIVA ORAL

POPULAR DA AMAZÔNIA...15

1. INCURSÕES SOBRE OS CONCEITOS E CONFIGURAÇÕES SIMBÓLICAS ACERCA DE MITO, LENDA, NARRATIVA POPULAR E LENDÁRIO: CONTRAPONTOS, DIFERENÇAS E INTERSEÇÕES ...17

1.1. INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO ...17

1.2. SOBRE O PROBLEMA DO MITO ...21

1.3.E O QUE DIZER DA LENDA? QUE TIPOS DE CONTRAPONTOS E INTERSEÇÕES SE PODE ESTABELECER ENTRE A LENDA E A NARRATIVA ORAL POPULAR?...33

1.4.COMO CONCLUSÃO DO CAPÍTULO...55

2. ASPECTOS DA CONFIGURAÇÃO NARRATIVO-DISCURSIVA DAS NARRATIVAS ESCRITAS POR WALCYR MONTEIRO: UM QUADRO EXEMPLIFICATIVO ACERCA DA EVOCAÇÃO DE ELEMENTOS AFILIADOS AO UNIVERSO DO LENDÁRIO...57

2.1.INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO...57

2.2.ASPECTOS DA CONFIGURAÇÃO NARRATIVO-DISCURSIVA DAS NARRATIVAS DE BOTO: ESTRATÉGIAS DE EVOCAÇÃO DE ELEMENTOS LENDÁRIOS...58

2.3.ASPECTOS DA CONFIGURAÇÃO NARRATIVO-DISCURSIVA DAS NARRATIVAS DE COBRA: ESTRATÉGIAS DE EVOCAÇÃO DE ELEMENTOS LENDÁRIOS...66

2.4.ASPECTOS DA CONFIGURAÇÃO NARRATIVO-DISCURSIVA DAS NARRATIVAS DE MATINTAPERERA: ESTRATÉGIAS DE EVOCAÇÃO DE ELEMENTOS LENDÁRIOS...85

2.5.ASPECTOS DA CONFIGURAÇÃO NARRATIVO-DISCURSIVA DAS NARRATIVAS DE CURUPIRA: ESTRATÉGIAS DE EVOCAÇÃO DE ELEMENTOS LENDÁRIOS...95

2.6.COMO CONCLUSÃO DO CAPÍTULO...109

PARTE II - A REFERENCIAÇÃO EM NARRATIVAS AFILIADAS AO LENDÁRIO AMAZÔNICO: BASES TEÓRICAS E ANÁLISE DE ESTRATÉGIAS REFERENCIAIS...113

3. REFERENCIAÇÃO E COGNIÇÃO: UMA VIA DE MÃO DUPLA...115

3.1.OBJETIVO DO CAPÍTULO...115

3.2.CONCEITOS E PRESSUPOSTOS...115

3.3.REFERENCIAÇÃO, FRAME E COGNIÇÃO CULTURAL...123

3.4.PROCESSOS REFERENCIAIS E A ATIVIDADE DE PRODUÇÃO TEXTUAL...132

3.5.REFENCIAÇÃO E NARRATIVIDADE...158

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xx

4. ANÁLISE DE DADOS RELATIVOS A ATIVIDADES REFERENCIAIS... 161

4.1.INTRODUÇÃO DO CAPÍTULO...161

4.2.1ª CATEGORIA: ESTRATÉGIAS DE REPREDICAÇÃO DE REFERENTES QUE CONTRIBUEM PARA A PROGRESSÃO TEMÁTICA DO TEXTO E PARA A CONSTRUÇÃO DO PROCESSO NARRATIVO...162

4.3.2ª CATEGORIA: ESTRATÉGIAS CATAFÓRICAS QUE APONTAM PARA REFERENTES TEMÁTICOS A SEREM POSTOS NA CADEIA TEXTUAL...172

4.4.3ª CATEGORIA: PROCESSOS DE RECATEGORIZAÇÃO DE PERSONAGENS AFILIADOS AO UNIVERSO LENDÁRIO AMAZÔNICO...179

4.5.4ª CATEGORIA: ESTRATÉGIAS DE DESFOCALIZAÇÃO/ DESATIVAÇÃO DE UM REFERENTE E INTRODUÇÃO DE UM NOVO...188

4.6.CATEGORIA: USO DE ANÁFORAS INDIRETAS...196

4.7.6ª CATEGORIA: PROCESSOS METONÍMICOS/MERONÍMICOS LIGADOS À CONSTRUÇÃO DE REFERENTES...206

4.8.7ª CATEGORIA: ELEMENTOS CONTEXTUALIZADORES/ INDICIALIZADORES QUE APONTAM PARA A CONSTRUÇÃO DE REFERENTES/PERSONAGENS E EVENTOS DA HISTÓRIA NARRADA...212

4.9.8ª CATEGORIA: USO DE EXPRESSÕES NOMINAIS DEFINIDAS E INDEFINIDAS QUE CARACTERIZAM PERSONAGENS E EVENTOS DAS NARRATIVAS EM FOCO...218

4.10. CATEGORIA: PROPOSIÇÕES REFERENCIADORAS/ METAENUNCIATIVAS QUE APONTAM PARA CRENÇAS LIGADAS AOS PERSONAGENS DAS NARRATIVAS EM ESTUDO...230

4.11. 10ª CATEGORIA: PRESENÇA DE ELEMENTOS SUMARIZADORES/ ENCAPSULADORES QUE ENCADEIAM (RETOMAM) SEGMENTOS TEXTUAIS/FACTUAIS...238

4.12. 11ª CATEGORIA: CONSTRUÇÕES METADISCURSIVAS CONSTITUINTES DO PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO NAS NARRATIVAS EM ESTUDO...249

4.13. 12ª CATEGORIA: FORMAS REIFICADAS DE REFERENCIAÇÃO RELATIVAS À PERSONAGENS DE NARRATIVAS AFILIADAS AO LENDÁRIO...257

4.14. 13ª CATEGORIA: MARCADORES TEMPORAIS QUE ATUAM NOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO...268

4.15. 14ª CATEGORIA: MARCADORES DÊITICO-ESPACIAIS ENDOFÓRICOS/EXOFÓRICOS PARTICIPANTES DO PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO...277

4.16. COMO CONCLUSÃO DO CAPÍTULO...289

CONSIDERAÇÕES FINAIS...291

REFERÊNCIAS...315

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1

INTRODUÇÃO

O fenômeno da narratividade integra o patrimônio das várias culturas. Para alguns estudiosos, trata-se de um patrimônio não-material e espiritual. No entanto, considero-o como um objeto cultural rico e dinâmico, já que tal fenômeno encampa diversas ações linguísticas, que se apresentam como típicas de uma comunidade. Assim, o ato de narrar deixa de ser uma simples construção do imaginário1 e passa a se constituir como uma instância por meio da qual uma coletividade age/pensa, “move-se” e garante a manutenção de sua identidade.

Dada a relevância do ato de narrar nas várias culturas, e por viver numa região, a Amazônia, onde as narrativas integram o cotidiano das pessoas, como é o caso dos lugarejos e cidades do interior, é que me interessei em estudar narrativas que envolvessem temas relacionados ao universo lendário dessa região. Como pude constatar mais acuradamente nesta pesquisa, essas histórias invocam valores socioculturais bem específicos das comunidades das quais emergem. E, ao escrever histórias relacionadas a tais temas, o escritor, aqui estudado - Walcyr Monteiro - acaba, em parte, por resgatar esses valores.

O meu interesse por essas narrativas desse tipo também se justifica pelo fato de que, desde criança, sempre as ouvi de minha mãe, de meus avós e de outras pessoas de minha família, assim como vizinhos, amigos, conhecidos e pessoas das comunidades interioranas nas quais morei e pelas quais passei no decorrer das minhas atividades profissionais e da minha existência.

Por outro lado, essas histórias são importantes para as próprias pessoas que as (re)contam, pois dizem respeito aos vários recortes de sua construção identitária, constituindo um recurso sociodiscursivo adequado à ressignificação de experiências culturais típicas de determinados contextos.

Acredito que as histórias de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira em estudo contêm significados associados a situações e episódios específicos da vida cotidiana amazônica, trazendo evidências e indícios das condições das pessoas nos vários lugares em

1

A palavra imaginário é aqui usada na acepção empregada por Sartre. Nesse sentido, segundo Abbagnano, distingue-se a percepção da imaginação, especificando-se “que a primeira é consciência ‘realizante’, porquanto dirigida por um objeto ‘real’, enquanto a segunda é consciência ‘desrealizante’, porquanto dirigida para um objeto ‘não real’. Essa capacidade de transcender o existente em direção ao ausente e de elaborar um mundo alternativo ao mundo concreto – prerrogativa que subtende a possibilidade de um ‘recuo’ em relação ao ser – está integrada no fenômeno da liberdade existencial” (ABBAGNANO, 2007, p. 622).

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2

que esses relatos são produzidos, observando-se, aí, uma visão de mundo um tanto particular: a que retrata a relação do homem com a natureza e a forma como essa relação se estabelece, tendo-se em conta, nessas produções, a presença de elementos afiliados às construções lendárias, mesmo que tais elementos constituam alterações ou transgressões em relação a essas construções.

As narrativas que integram o corpus em análise, relativas aos personagens lendários Boto, Cobra, Matinta e Curupira, constituem um conjunto ou acervo representativo dentro de uma ampla variedade de histórias que são contadas no interior da Amazônia. Essas narrativas são produções ficcionais escritas e manifestam uma maneira particular, do escritor Monteiro, de conceber elementos discursivos e simbólicos já situados nas lendas tradicionais, para os quais empresta significações diferentes, destoantes e, até mesmo, contrapostas.

As 17 (dezessete) narrativas, divididas em 04 (quatro) blocos, referentes aos 04 (quatro) personagens lendários acima referidos, possuem características temático-discursivas em comum. Dentre estas aponto algumas, como: (i) afiliação com elementos inscritos no universo lendário da Amazônia; (ii) inserção de elementos transgressivos e/ou diferenciados em relação aos elementos constitutivos das lendas tradicionais; (iii) desconstrução e/ou alteração de características simbólicas, discursivas ou semântico-discursivas dos personagens Boto, Cobra Grande, Matintaperera e Curupira e dos eventos ligados a eles, contidas tradicionalmente nas lendas, com agregação de características “inovadoras” e singulares quando processo de construção de tais personagens e seus eventos nessas narrativas; (iv) desfocalização dos temas lendários típicos, com o foco em temáticas estranhas ou desviantes dos significados constitutivos desses temas; (v) modificação no que se refere à construção da atividade ficcional, com a colocação de afirmações acerca da verdade e/ou da mentira em referência ao conteúdo das histórias narradas; (vi) simplificação acentuada do enredo e/ou da trama das histórias em análise, quando comparadas com esses mesmos elementos contidos na lenda e na Narrativa Oral Popular; (vii) simplificação relativa à construção dos personagens participantes dessas histórias e de suas ações no curso do mencionado enredo; (viii) adoção de estratégias discursivas típicas quando da implementação do processo narrativo, como, por exemplo, de um narrador civilmente identificado, que passa a narrar a história; (ix) conexão dos temas das narrativas em estudo com temas já veiculados em outras formas ou gêneros literários, como, por exemplo, o tema erótico-amoroso, próprio da Narrativa Trivial; (x) inserção de informações ou dados de natureza histórica, sociológica e/ou de âmbito erudito/

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3

“enciclopédico”, que fogem dos elementos constitutivos ou integrantes das construções lendárias.

Apresento, a seguir, uma tabela relativa à publicação da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia, cujos 13 (treze) números contêm as narrativas em análise:

Tabela 1 - Tabela relativa à publicação da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia. Ano Editorial Ano Corrente (civil) Número de Revistas Número de

Edições Anos correspondentes às Edições

Ano I 1997 a 1998 03 Revista nº 1: 03 Revista nº 2: 03 Revista nº 3: 02

1ª Ed.1997, 2ª Ed.1999, 3ª Ed.2000 1ª Ed.1998, 2ª Ed.2000, 3ª Ed.2000 1ª Ed.1998, 2ª Ed.2000 Ano II 1999 03 Revista nº 4: 02 Revista nº 5: 02 Revista nº 6: 02 1ª Ed.1999, 2ª Ed.2000 1ª Ed.1999, 2ª Ed.2000 1ª Ed.1999, 2ª Ed.2002 Ano III Ano IV Ano V Ano VI 2000 2001 a 2002 2003 2004 01 04 01 01 Revista nº 7: 02 Revista nº 8: 02 Revista nº 9: 01 Revista nº10: 02 Revista nº11:01 Revista nº12: 01 Revista nº13:01 1ª Ed.2000, 2ª Ed.2002 1ª Ed.2001, 2ª Ed.2007 1ª Ed.2001 1ª Ed.2001, 2ª Ed.2007 1ª Ed.2002 1ª Ed.2003 1ª Ed.2004

Fonte: Revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia.

De acordo com os dados apresentados na tabela, a revista tem um alcance significativo no que diz respeito à sua publicação e circulação. Assim, os 13 (treze) números publicados perfazem um total de 24 (vinte e quatro) edições, com uma média aproximada de 02 (duas) edições por número. Em termos de números publicados, só no ano editorial II, que corresponde ao ano corrente de 1999, temos a emissão de 03 (três). Já no ano editorial IV, que compreende os anos de 2001 a 2002, a emissão chega a 04 (quatro). Isto traz evidências de que a citada revista tem uma divulgação e abrangência bastante expressivas, o que vem a confirmar o fato de que as pessoas costumam fazer leituras voltadas para temáticas próprias

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desse tipo de periódico. Esse interesse pode se dar em razão dessas temáticas irem ao encontro das experiências das pessoas que moram no interior da Amazônia e, até mesmo, daquelas que vivem em grandes centros dessa Região, como é o caso da cidade de Belém, em que tais assuntos ainda são muito recorrentes. Isto equivale também a dizer que as pessoas ainda (re)contam e ouvem histórias relacionadas às entidades e aos temas lendários amazônicos. Portanto, ao lerem essas histórias, podem reafirmar valores e concepções de mundo ou de realidade que estão arraigados em sua vida cotidiana, recorrendo a elas como uma forma de explicar ou mesmo justificar suas crenças e ações, especificamente aquelas que integram o universo social em que se inserem.

Tendo em conta a inserção das narrativas estudadas nos números e edições da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia, observemos os dados expressos na tabela a seguir:

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5

Tabela 2 - Distribuição das narrativas em estudo nos números e edições da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia.

Narrativas Ano Editorial Número da Revista Ano de Edição Boto 1: Uma Mulher Muito Bonita

Boto 2: História de Beira de Rio Boto 3: Uma Namorada e Dois Irmãos Boto 4: Malinação de Boto

Ano I Ano II Ano II Ano III Revista nº 3 Revista nº 5 Revista nº 5 Revista nº 7 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2002 Cobra 1: O Mergulho

Cobra 2: O Encantado do Rio da Pedreira Cobra 3: A Rosa

Cobra 4: A Cobra Grande de Barreira do Tapará

Cobra 5: A Ilha Redonda

Ano I Ano I Ano I Ano III Ano V Revista nº 1 Revista nº 3 Revista nº 3 Revista nº 7 Revista nº 12 3ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2002 1ª Ed. 2003 Matinta 1: A Velha Belízia

Matinta 2: Uma História Muito Estranha Matinta 3: A Ladainha de São Benedito Matinta 4: A Tia Podó

Matinta 5: O Namorado da Filha da Matinta Perera Ano I Ano I Ano II Ano IV Ano VI Revista nº 2 Revista nº 3 Revista nº 5 Revista nº 8 Revista nº 13 3ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2000 2ª Ed. 2007 1ª Ed. 2004

Curupira 1: Encontro com o Curupira Curupira 2: Suzy e o Curupira Curupira 3: História de Amor

Ano I Ano III Ano IV Revista nº 2 Revista nº 7 Revista nº 9 3ª Ed. 2000 2ª Ed. 2002 1ª Ed. 2001 Fonte: Revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia.

Conforme os dados contidos na tabela, observamos que as várias narrativas – aí expressas por meio de seus títulos – estão inseridas em diferentes números da revista em foco. Mesmo que o autor coloque, nesta, narrativas referentes a outros temas, como, por exemplo, as que versam sobre assombrações e visagens, as relativas a Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira constam em quase todos dos 13 (treze) desse periódico. Isto denota uma recursividade no que diz respeito a histórias que envolvem as entidades supracitadas, trazendo

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6

também evidências da circulação social de narrativas dessa natureza em diversos lugares da Amazônia. Monteiro mesmo faz referência a esses diversos lugares e cidades quando da inserção de determinados comentários nos preâmbulos que introduzem essas narrativas.

Além disso, consoante a tabela, as histórias englobam todos os anos editoriais da revista em questão, referendando, mais uma vez, o alcance e relevância de temáticas voltadas para crenças e práticas populares oriundas no contexto amazônico. Acrescente-se que as revistas em que estão inseridas as narrativas estudadas têm uma média de 02 (duas) edições, o que indica também a valorização e destaque dados pelo autor no que se refere a esse tipo de publicação em seu trabalho como escritor.

Portanto, levando em conta o meu interesse relativo à referência cultural amazônica, fiz a escolha do corpus desta tese: 13 (treze) números da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia, de autoria do escritor paraense Walcyr Monteiro. Estes números foram escritos entre os anos de 1997 e 2004 e versam sobre diferentes histórias de Boto; outras têm como tema a Cobra; algumas falam sobre Matintaperera, uma parte tematiza o Curupira e uma boa quantidade se refere à assombrações e visagens propriamente ditas. Os citados números foram publicados pela Editora Smith – Produções Gráficas, na cidade de Belém-PA. Todas as histórias constantes, nessa revista, são (re)criações do mencionado autor, recriações estas ancoradas no universo sociodiscursivo e cultural amazônico.

Acrescente-se que o citado corpus constava inicialmente de 65 (sessenta e cinco) narrativas contidas nas 13 (treze) revistas supracitadas, adquiridas em lojas de artigos regionais, bancas de revistas situadas em vias públicas e shoppings de Belém e Santarém, já que todos os 13 (treze) números não estavam disponíveis em um só destes vários pontos ou estabelecimentos comerciais.

Dentre as 65 (sessenta e cinco) narrativas inicialmente cotadas para este estudo, operei uma seleção baseada nos seguintes critérios: (i) quantidade de narrativas, necessária à realização de uma pesquisa qualitativa; (ii) temas – os quais deveriam versar sobre itens mais importantes e recorrentes dentro do contexto de contação de histórias específicas da Amazônia; (iii) tamanho ou extensão das narrativas, o que poderia contribuir para uma maior ocorrência de fenômenos relacionados ao tema desta pesquisa.

Logo, com base nos itens apresentados, das 65 (sessenta e cinco) narrativas escritas mencionadas, restringi-me a estudar 25 (vinte e cinco). Deste total, 17 (dezessete)

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7

referem-se a entidades como Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira, o que vem a corresponder a 68% da totalidade acima expressa, e 08 (oito) são relativas a assombrações e visagens, correspondendo a 32% da mesma totalidade. No entanto, por entender que as histórias de assombrações e visagens destoavam, principalmente no que diz respeito às suas várias temáticas, das narrativas de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira, já que estas últimas tratam de temáticas referentes a personagens lendários típicos e que são bastante recorrentes no universo amazônico, resolvi delimitar ainda mais o corpus, ficando este restrito às 17 (dezessete) histórias das entidades lendárias supracitadas. Destas, 04 (quatro) são de Boto, 05 (cinco) de Cobra, 05 (cinco) referem-se à Matinta e 03 (três) são relativas à (o) Curupira.

A citada delimitação de 25 (vinte e cinto) para 17 (dezessete) refere-se ao fato de que estas últimas, concernentes aos personagens em questão, possuem um significado simbólico próprio, já que tais personagens se instituem como bastante reificados no contexto cultural em que essas narrativas são contadas2.

Levando em conta as 04 (quatro) entidades mencionadas, temos, portanto, 04 (quatro) temáticas gerais diferentes, concernentes a tais entidades, o que justifica a divisão em 04 (quatro) blocos distintos. Ressalto também a questão de que os temas gerais, relativos aos 04 (quatro) personagens em pauta, não são homogêneos ou uniformes, pois contêm significados ou subtemas específicos dentro de cada um deles, os quais se referem às características ou particularidades das narrativas que aí estão inseridas.

A observação mais atenta do corpus me fez detectar alguns fenômenos referenciais, que se constituíram como resposta às hipóteses levantadas durante o processo de investigação, a saber: (i) as atividades referenciais encontram formas específicas de se realizar nos textos das narrativas sob investigação, estando coadunadas com o projeto intercomunicativo do autor; (ii) as atividades referenciais em questão estão relacionadas às características textual-discursivas e sociocomunicativas das narrativas sob análise, estando aí implicados elementos afiliados ao universo do lendário da Amazônia. Portanto, diante dos fenômenos observados e das hipóteses levantadas acerca de tais fenômenos, optei por descrever 14 (quatorze) categorias, as quais dizem respeito a processos de referenciação, com a viabilização de determinadas estratégias relativas a esses processos, materializadas nos

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Ao afirmar que as narrativas de assombrações e visagens são de outro estatuto simbólico, com outra natureza e significado, estou, de fato, postulando que essas narrativas veiculam sentidos relacionados a outras práticas culturais, nas quais podem estar envolvidos elementos como: religiosidade, crenças ligadas ao sobrenatural, interferência de seres do “outro mundo”, perplexidade e incerteza diante da morte, ligações afetivas com pessoas que já morreram, etc.

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textos das narrativas em estudo. As categorias de análise são as seguintes: 1ª Categoria – Estratégias de repredicação de referentes, que contribuem para a progressão temática do texto e para a construção do processo narrativo; 2ª Categoria – Estratégias catafóricas que apontam para referentes temáticos a serem postos na cadeia textual; 3ª Categoria – Processos de recategorização de personagens afiliados ao universo lendário amazônico; 4ª Categoria – Estratégias de desfocalização/desativação de um referente e introdução de um novo; 5ª Categoria – Uso de anáforas indiretas; 6ª Categoria – Processos metonímicos/meronímicos ligados à construção de referentes; 7ª Categoria – Elementos contextualizadores/indicializadores que apontam para a construção de referentes/personagens e eventos da história narrada; 8ª Categoria – Uso de expressões nominais definidas e indefinidas que caracterizam personagens e eventos das narrativas em foco; 9ª Categoria – Proposições referenciadoras/metaenunciativas que apontam para crenças ligadas aos personagens das narrativas em estudo; 10ª Categoria – Presença de elementos sumarizadores/encapsuladores que encadeiam (retomam) segmentos textuais/factuais; 11ª Categoria – Construções metadiscursivas constituintes do processo de referenciação nas narrativas em estudo; 12ª Categoria – Formas reificadas de referenciação relativas a personagens de narrativas afiliadas ao lendário; 13ª Categoria – Marcadores temporais que atuam nos processos de referenciação; 14ª Categoria – Marcadores dêitico-espaciais endofóricos/exofóricos participantes do processo de referenciação.

Para estabelecer as categorias supracitadas, observei, a princípio, elementos, formas, construções, sequências ou expressões textuais que levavam à realização de processos referenciais. Feita esta tarefa, selecionei as estratégias mais recursivas, agrupando-as de acordo com as características que lhes eram similares e, por sua vez, descartando aquelas que não se enquadravam em atividades ligadas à referenciação.

Estabelecidas as categorias de análise, procedi à quantificação dos elementos, formas, construções e/ou expressões contidos em cada uma delas. Em seguida, com base nas teorias que dão suporte ao tema em estudo, descrevi as estratégias referenciais realizadas por esses elementos textuais, indo, em ordem crescente, da 1ª à 14ª categoria.

Ao proceder à interpretação dos elementos textual-discursivos relativos a cada categoria, procurei fazer a interseção destes com formas de construção das entidades e elementos afiliados ao universo lendário. Operando direta ou indiretamente, essas interseções

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contribuem para o entendimento de processos e estratégias de caráter sociocognitivo e cultural envolvidos na construção dos textos das narrativas em apreciação.

A partir da quantificação das formas ou expressões referenciais contidas no corpus, elaborei, para cada categoria, uma tabela, visando demonstrar a representatividade dessas formas no que concerne à construção de atividades ligadas à referenciação. A finalidade das tabelas é mostrar não só a quantidade de expressões, mas também a sua recursividade no processo de constituição das narrativas em estudo.

Considerando as características discursivas das narrativas que compõem o corpus desta tese, na Parte I, intitulada “Das relações entre mito, lenda e narrativa oral popular da Amazônia”, procedo, no capítulo 1 – “ Incursões sobre os conceitos e configurações simbólicas acerca de mito, lenda, narrativa popular e lendário: contrapontos, diferenças e interseções”, sobre os conceitos e teorizações referentes a tais instâncias discursivas, detendo-me, no capítulo 2, nomeado “Aspectos da configuração narrativo-discursiva das narrativas escritas por Walcyr Monteiro: um quadro exemplificativo acerca da evocação de elementos afiliados ao universo lendário”, em determinados elementos da mencionada configuração, a qual se apresenta como característica das narrativas em estudo.

No capítulo 1, levando sempre em conta os objetivos propostos nesta tese, em cuja base está a mobilização de estratégias relativas à evocação de elementos situados no universo lendário, especificamente quanto às narrativas em estudo e, sobretudo, no âmbito das atividades referenciais aí empreendidas, faço discussões também prévias sobre alguns conceitos e configurações simbólicas relativas a mito, lenda, narrativa popular e lendário, tendo em vista, nesse contexto, os contrapontos, diferenças e interseções existentes entre essas formas narrativas. No percurso teórico aqui realizado, constituem-se como significativas e basilares as concepções propostas por Jolles (1976), Sperber (2009, 2012), Propp (2002) e Eliade (2007, 2008), que se colocam como um importante fundamento epistemológico para as discussões subsequentes, relativas à construção discursiva das narrativas estudadas, entendendo-se, nesse bojo, elementos de interseção e um tipo de caminho que vai do mito, passa pela lenda e alcança a Narrativa Oral Popular, a partir do qual é possível se fazer projeções significativas acerca da afiliação ao lendário dos elementos discursivos presentes nas histórias analisadas.

Ainda no capítulo 1, procedo a considerações sobre elementos caracterizadores das construções lendárias referentes aos personagens Boto, Cobra Grande, Matintaperera e

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Curupira. É, portanto, a partir do que se pode compreender como constitutivo dessas construções, que também se pode entender tipos de configuração discursiva e de sentido inscritos na Narrativa Oral Popular e, por sua vez, os elementos que se colocam como configuradores das narrativas produzidas por Monteiro, construindo-se, então, generalizações que se apresentam, a meu ver, como relevantes e/ou coerentes para as finalidades pretendidas nesta tese. Para as discussões empreendidas nesta seção, recorro às concepções construídas e veiculadas por Bentes da Silva (2000) e Sperber (2012), as quais, indubitavelmente, nortearam e embasaram, de maneira bastante produtiva, os conceitos, noções e fundamentações aí expressos.

Concluo, então, o capítulo propondo que as narrativas em discussão são produtos de transmutações por que passaram elementos previamente inseridos nas construções lendárias ou em formas remanescentes destas, constatando-se, em tais narrativas, modos de apropriação indiretos e transgressivos do que estava estruturado em termos discursivos numa determinada tradição. Entendendo-se, por sua vez, que esses modos transgressivos de apropriação são consequências de processos sociocognitivos e culturais, consorciados a atividades referenciais também implicadas na produção das mencionadas narrativas em estudo.

No capítulo 2, faço análises mais detalhadas e exemplificadoras sobre a inserção de elementos afiliados ao lendário nas narrativas em questão. Para a implementação dessa tarefa, procedo à escolha de características e/ou aspectos que se apresentaram como mais recorrentes, considerando a configuração geral dos textos referentes a essas narrativas. Assim, para as análises relativas à caracterização da configuração narrativo-discursiva das narrativas em estudo, concernentes a cada um dos personagens, sigo a seguinte ordem: Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira. Divido, então, o capítulo, em 04 (quatro) seções, sendo cada uma delas relativa a cada um dos personagens citados. Esse procedimento se dá, sobretudo, em razão da própria organização do trabalho e, também, do fato de que existem configurações sociocognitivas e semântico-discursivas diferenciadas referente à construção dessas entidades, tendo em conta, nesse âmbito, o contexto lendário do qual são originárias e/ou afiliadas. Observam-se, por outro lado, alguns pontos de interseção relativos aos valores discursivo-simbólicos de que são detentoras, o que me leva à realização de projeções mais gerais acerca desses valores e/ou características.

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Considerando, portanto, as características das narrativas sob análise e de suas respectivas entidades ou personagens, escolho entre 03 (três) a 06 (seis) aspectos da configuração narrativo-discursiva de cada uma delas, discutindo as várias formas por meio das quais o autor subverte determinados significados já situados historicamente nas construções lendárias tradicionais, compreendendo-se, nessas estratégias usadas pelo mencionado autor, a intervenção de processos sociocognitivos de ancoragem em quadros de referência relativos ao universo das construções lendárias aqui apontadas, as quais, por seu turno, contêm uma configuração discursiva e simbólica típica, com a presença de elementos dotados de estabilidade e recorrência.

Faço a conclusão do capítulo, postulando que a configuração narrativo-discursiva das narrativas de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira se apresenta como característica e particular desse conjunto de histórias, manifestando-se numa série de estratégias utilizadas pelo autor no seu processo de construção. Tais estratégias são concernentes a formas de transgressão, manipulação e ruptura em relação a elementos constitutivos das construções lendárias. Nesse sentido, ao evocar elementos afiliados a essas construções, o autor empreende-lhes outras significações, anula alguns destes ou cria-lhes significações estranhas, algumas destas já bem distanciadas do que se compreende como integrante da estrutura discursivo-simbólica das versões referente às lendas tradicionais (Cf. BENTES DA SILVA, 2000).

Nessa conclusão, postulo também que as estratégias em questão se apresentam como recursos textuais e discursivos de que se vale o autor para atingir os seus objetivos literários ou ficcionais e que também constituem uma maneira particular por meio da qual constrói outros sentidos e outras formas de se conceber o lendário, precisamente o que considero como afiliado ao universo lendário amazônico, tendo em conta a questão de se manifestar como contraditório, reconstrutivo e subversivo em referência aos elementos que se colocam como constitutivos das lendas aqui tomadas como parâmetro.

Diante do que está veiculado no curso de todo o capítulo, os recursos ou estratégias discursivas usados pelo autor das narrativas estudadas constituem produtos de processos sociocognitivos, implicados na atividade de produção de tais narrativas, o que me leva a postular, nesta tese, a existência de dois subprocessos referenciais: um que se volta para macroestruturas de âmbito referencial e outro de natureza mais interna à arquitetura intradiscursiva dos textos, mas que também está atrelado ao primeiro, operando, no entanto,

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de forma mais “imediata” ou de “curto alcance” no nível da construção de um dado texto. Logo, dando ênfase, no capítulo 3, ao primeiro subprocesso, estou, na verdade, apontando para o fato de que essas macroestruturas referenciais se realizam de maneira mais direta nas várias atividades referenciais mobilizadas no processo de construção dos textos das narrativas em análise, conforme descrito no capítulo 5 deste trabalho.

No que tange à Parte II desta tese, cujo título é “A referenciação em narrativas afiliadas ao lendário amazônico: bases teóricas e análise de estratégias referenciais”, procedo, no capítulo 3, intitulado “Referenciação e cognição: uma via de mão dupla”, à colocação dos fundamentos teóricos que respaldam este trabalho e no capítulo 4, nomeado de “Análise de dados relativos a atividades referenciais”, faço a descrição e interpretação dos elementos ou fenômenos que mobilizam as mencionadas atividades nos textos das narrativas em estudo.

Assim, no caso específico do capítulo 3, após delinear os objetivos do citado capítulo, faço incursões acerca de conceitos e pressupostos relativos à referenciação, levando em conta sua conexão com o cognitivismo e com o sociointeracionismo. Tomo, então, como uma das bases teóricas as concepções de Tomasello (2003), as quais prestam-se ao estabelecimento de um importante suporte de natureza epistemológica para o que se constitui como objetivo central desta tese, a saber: o contributo de fatores cognitivos de âmbito cultural para a condução/construção de processos referenciais envolvidos na composição das narrativas sob análise. Valho-me também, nesta seção, das postulações de Marcuschi (2007), Koch (2006) e Mondada (2005). Estes autores encaram, de um modo geral, a referenciação como um fenômeno sociointerativo, situado e emergenciado pelo contexto em que se situa a ação verbal. Para Marcuschi (op.cit.), tal fenômeno vem sendo pensado, atualmente, numa nova roupagem teórica, o que implica reafirmar que as ações referenciais demandam efeitos advindos da reconstrução dos fatores biossociais em atividades simbólicas mediadas pelas interrelações humanas em seus variados contextos ou instâncias. Assim, colocados os conceitos e pressupostos básicos, procedo a considerações sobre a conexão entre referenciação, frame e cognição; para isto, embaso-me ainda em Marcuschi (2007), mas também nas proposições de Fillmore (1976, 1977, 1982a, 1982b, 1985), Feltes (2007), Goffman (1974, 1988), Tomasello (1988, 1992ª, 1995ª, 2003), Koch (2005) e Geertz (2008), tendo em vista o fato de que todos os autores, em suas diferentes bases epistemológicas, colaboram, em suas formulações, para a estruturação do quadro teórico aqui delineado, no qual postulo que os processos referenciais são reconstitutivos de frames e fatores cognitivos de natureza cultural. Nesse quadro, constituem-se como proeminentes as concepções

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formalizadas por Fillmore, Goffman e Tomasello, para os quais os conteúdos das interações estão conectados a sentidos culturalmente construídos, demandando, consequentemente, a mobilização de processos referenciais ligados a esses contextos de interação. Dando prosseguimento ao capítulo, realizo uma incursão teórica acerca dos processos referenciais, considerando, nesse bojo, as atividades de produção textual. Assim, discorro sobre diversas estratégias ou recursos de construção da atividade referencial, tomando principalmente como fundamento as proposições de Marcuschi (2005, 2007, 2008), Mondada e Dubois (2003), Koch (2004, 2006, 2008), Schwarz (2000), Van Dijk (1997), Morato (2005), Authier-Revuz (1998), Jubran (2005), Conte (1996, 2003), Koch e Elias (2010) e Benveniste (2006). Logo, ancorando-me nas concepções destes autores, proponho-me a construir um quadro teórico-epistemológico geral que vá ao encontro das formas de estabelecimento de processos referenciais nos textos das narrativas sob análise. Após esta tarefa, faço, ainda, uma incursão teórica acerca da relação entre referenciação e narratividade. Concluo o capítulo, postulando acerca da defesa de uma concepção teórica que considere a referenciação e os fatores que a envolvem como encampando um conjunto múltiplo e heterogêneo de propriedades, recursos e processos. Em vista desse entendimento, defendo também a ideia de que os processos referenciais, em suas múltiplas realizações, constituem modos de validação e/ou reafirmação de conteúdos culturais específicos, de crenças ou de formas de encará-las, assim como de diferenciadas maneiras de se compreender o mundo e agir sobre ele, das quais podem se apropriar os indivíduos em suas tarefas de produção/construção das ações verbais.

O capítulo 4 apresenta a descrição dos elementos específicos das 14 (quatorze) categorias propostas neste trabalho. Após fazer uma introdução, procedo à análise desses elementos. Ressalto o fato de as categorias em estudo se constituírem de diferentes estratégias por meio das quais a referenciação se realiza em textos de narrativas afiliadas ao universo lendário da Amazônia. Dado esse pressuposto, interpreto essas estratégias como recursos cognitivo-discursivos reconstrutores de ações ou interações culturais produzidas nos contextos em que as mencionadas narrativas são escritas ou (re)construídas. Nesse sentido, tais recursos atuam como instrumentos textual-discursivos de que se utiliza o autor para implementar determinadas alterações e/ou transgressões no que tange aos significados discursivos e simbólicos já inscritos nas construções lendárias tradicionais.

Diante dessas colocações, reafirmo, consoante as categorias em análise no capítulo em questão, que a referenciação constitui um fenômeno múltiplo, diverso e heterogêneo, o qual, estruturando os citados significados transgressivos, realiza-se em

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diferentes estratégias, mediante as quais determinados referentes são introduzidos, reintroduzidos, ativados, reconstruídos, modificados e recategorizados na estrutura textual das produções escritas em estudo. Por conseguinte, o corpus em análise não é um simples e acabado produto ficcional, nem constitui um conjunto de histórias que podem ser lidas em si mesmas, mas constitui uma espécie de microuniverso simbólico, com o qual podemos (inter)penetrar no universo sociocultural amazônico e em que o lendário se apresenta como um espaço discursivo importante no desvelamento/reconhecimento desse universo, entendendo-se, por outro lado, que ele não é estanque/estático na forma como pode se apresentar, mas passível de reformulações, transgressões e rupturas em relação à sua constitutividade mais “ancestral” ou antiga, conforme observado na forma como o escritor constrói semântico-discursivamente as narrativas estudadas e, consequentemente, com desdobramentos para as estratégias de referenciação aí expressas.

Concluo, então, o capítulo afirmando que as formas de construção das expressões referenciais não podem ser vistas como se a língua se constituísse num objeto estático e monolítico. Daí podermos dizer que as atividades referenciais mobilizadas nos textos das narrativas em estudo constituem processos dinâmicos e complexos, nos quais estratégias ligadas à reconstrução, recategorização, anaforização de referentes, dentre outras, se apresentam como instrumentos componentes dos significados e formas transgressivas dos elementos lendários evocados pelo autor das citadas produções, tendo em conta o fato de que essas produções conectam-se, de maneira e indireta, às práticas discursivo-simbólicas situadas no universo lendário referido neste trabalho.

Faço a conclusão desta tese, tendo como centro direcionador das discussões, aí viabilizadas, a concepção de que os processos referenciais são dinâmicos e primam pela instabilidade; no entanto, estão irremediavelmente marcados/expressos por tipos variados de estratégias, que, de uma forma ou de outra, reconfiguram o entorno sociodiscursivo no qual os textos das narrativas em discussão são produzidos. De maneira mais pontual, em se tratando deste estudo, quando tais textos carreiam estruturas linguísticas e/ou referenciais consorciadas com as experiências culturais tributárias de uma certa tradição discursiva, que, no caso específico, dizem respeito a narrativas produzidas por um escritor amazônico, veiculadoras de itens significacionais afiliados ao universo das construções lendárias. É possível, portanto, que a tradição discursiva típica do contexto em que o mencionado escritor produziu suas narrativas entre como um importante elemento de constrição no que tange à reconstrução de certos significados sociossimbólicos expressos nessas mesmas narrativas.

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PARTE I

DAS RELAÇÕES ENTRE MITO, LENDA E

NARRATIVA ORAL POPULAR DA AMAZÔNIA

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1. INCURSÕES SOBRE OS CONCEITOS E CONFIGURAÇÕES

SIMBÓLICAS ACERCA DE MITO, NARRATIVA POPULAR E LENDÁRIO: CONTRAPONTOS, DIFERENÇAS E INTERSEÇÕES.

1.1 INTRODUÇÃO AO CAPÍTULO

O Corpus desta tese é constituído de um conjunto de narrativas que passo a classificar como pertencendo ao seguinte tipo: Narrativa Escrita Ficcional de Tema Popular (NEFTP). Acredito que este nome é apropriado para compreender a natureza da produção escrita do autor paraense Walcyr Monteiro.

Logo, dado o exposto, chamo a atenção primeiramente para o fato de que tais narrativas possuem um estatuto ficcional, o que se dá em razão de alguns princípios básicos vinculados por Reis e Lopes (1988), Moisés (1989) e Perber(2009), a saber:

i) são fruto da capacidade inventiva e/ou transformativa do autor de reconstruir personagens, fatos, eventos e situações contidos em histórias em circulação no universo popular amazônico, concedendo-lhes, acima de tudo, um estatuto simbólico particular e/ou específico a partir da ressignificação da realidade social e cultural amazônica;

ii) são produtos de um estilo criativo próprio, de uma forma específica por meio da qual o escritor reconstitui sentidos instalados nas construções lendárias, o que pode ser comprovado pelas diversas estratégias referenciais usadas por ele no processo de criação dessas histórias (Cf. Cap. 4);

iii) possuem um significado discursivo e metafórico diferenciados em relação a outras produções ficcionais ou ligadas ao ficcional, mais precisamente no que diz respeito ao modo de construção de personagens e eventos evocados do universo lendário;

iv) não se caracterizam por conterem elementos ligados estritamente à linguagem comum e/ou ordinária, cotidiana, mas constituem um universo metafórico sui genbris, singular, por meio do qual o autor (re)cria, em linguagem conotativa, uma espécie de microcosmo afiliado ao lendário;

v) possuem recursos textual-discursivos particulares de ressimbolização de elementos inscritos no lendário; neste caso, ligados a personagens e fatos simbólicos típicos de lendas tradicionais do Boto, Cobra Grande, Matintaperera e Curupira, contendo, em seu

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espaço textual-discursivo, a presença de personagens (e não só os personagens lendários) que são não aqueles existentes na realidade biossocial e/ou factual, mas que são fruto das construções e/ou elaborações ficcionais criativas do próprio escritor, colocada a efeito no processo de produção de suas histórias;

vi) encerram, em sua configuração narrativo-discursiva, relações espaciais e temporais que não são as do mundo factual e histórico, constituindo uma criação analógica do autor em relação a esse mundo, a partir do que consegue dar uma mobilidade e uma dinâmica às personagens e eventos por ele (re)criados e ressignificados;

vii) manifestam, em sua composição narrativo-discursiva, num conjunto heterogêneo de significados inscritos no universo do lendário, mas concede-lhes outras significações fruto de sua capacidade de transformar o que, a principio, parecia ter desaparecido ou ficado restrito a uma tradição lendária mais antiga;

viii) traduzem a capacidade do autor de reinventar, e isso de maneira muito singular, elementos típicos do lendário (como o significado simbólico de um dado personagem), sem desgarrar-se, devido à sua criatividade, dos nichos discursivos de onde tais elementos são provenientes..

Os 8 (oito) itens apresentam um conjunto de características por meio das quais a ficcionalidade vem manifesta nas narrativas escritas por Monteiro. Estas, devido à capacidade criativa do autor, passam a ter um simbolismo específico, constituindo uma maneira por meio da qual elementos situados no lendário adquirem uma espécie de “vida própria”, diferente de outras formas de manifestação do que se coloca como particularmente desse universo.

Assim, tendo em vista o estatuto do ficcional atribuído às narrativas em estudo, considero-as como possuindo uma natureza particular no que concerne à manifestação desse estatuto, a qual está ligada ao fato de que constituem, de acordo com Leite (1994), um discurso representativo/reconstrutivo, mimético, que convoca um universo de experiências, com predominância aí do estilo referencial, mas não correlato ou idêntico ao mundo puramente factual ou histórico.

Por outro lado, ao usar a nomenclatura NEFTP para designar as narrativas em questão, e, nesse caso, ao empregar a expressão de tema popular nessa designação, o faço no sentido de que os temas veiculados por tais histórias são bastante recorrentes entre as chamadas “camadas populares” e, não só isso, “surgem* do próprio povo” (Strinati, 1999). Essa acepção está muito bem colocada em Rentes da Silva (2000), quando postula que o termo “popular”**

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tem relação a tudo que é originário ou emana do próprio povo. Logo, nesse âmbito, afirma que:

o “popular” está relacionado a tudo aquilo que “surge do próprio povo”, tudo aquilo que pode ser caracterizado como “a expressão autônoma de seus interesses e de suas experiências” (Strinati, 1999:21). De qualquer maneira, os estudos sobre o “popular”, objeto este sempre fugido e de contornos pouco nítidos, parecem estar historicamente marcados por gestos que, por tentarem circunscrevê-lo, acabam por instituir a sua morte, já que o interesse por este objeto parece sempre se dar em função de um julgamento, o de que ele encontra-se em “vias de extinção”.

(Bentes da Silva, 2000, p. 153-154)

Assim, com base nas postulações de Bentes da Silva (op. cit), é possível dizer a atribuição atinente a narrativas de tema popular para as histórias aqui analisadas se deve ao fato de que os temas que veiculam estão ligados diretamente a todo um conjunto de temas já em circulação no universo popular amazônico, ou seja, as pessoas que moram na Amazônia conhecem e (re)contam quase que cotidianamente histórias de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira. Por conseguinte, a narração dessas histórias é parte integrante de suas experiências, de sua maneira de conceber ou entender a realidade social e cultural em que estão imersas. Nesse sentido, essas narrativas constituem um espaço discursivo por meio do qual podemos entender todo um conjunto de elementos construtivos da identidade enraizada no povo e na forma como este mobiliza, de diversas maneiras, o conteúdo veiculado por tais histórias.

Acrescente-se que no âmbito dessa característica relacionada ao popular, as histórias em análise evocam elementos populares que, de maneira direta e/ou indireta, consistem de reconstruções e/ou ressignificações de sentidos já inscritos nas formações lendárias. No entanto, ao convocar tais elementos, Monteiro empresta-lhes significados singulares, adequando-os aos seus propósitos, ao seu projeto sociocomunicativo, promovendo uma característica de heterogeneidade ou mesclagem em relação aos elementos lendários que resgata, reatualiza ou reconstitui, mas, por outro lado, não promovendo uma cisão radical com os nichos simbólicos dos quais são originários. É possível então afirmar-se que o lendário aí convocado e reconstituído pelo autor é um lendário de natureza popular, disseminado e/ou mobilizado pelas populações que habitam as várias cidades, vilas e lugarejos da Amazônia. Logo, como o escritor não está à parte desse universo, mas submerso nele, é válido afirmar também que não poderia, nem conseguiria desvincular-se dele, o reconstrua a partir de sua perspectiva, de seu modo de absorver o que está instalado nesse macrocosmo.

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Por conseguinte, tendo por base o fato de que os processos sociocognitivos e as atividades referenciais encampam, nesse âmbito, a evocação ou carreamento de elementos afiliados ao lendário, procedo, em primeira mão, neste capítulo, a nova incursão geral sobre conceitos relacionados às seguintes instâncias ou formas ligadas ao campo narrativos, a saber: mito, lenda e narrativa popular, já que o estudo dos conceitos relativos a tais configurações ou instâncias textual-discursivas podem servir como pressuposto para a questão central aqui posta: por que as narrativas de Monteiro evocam elementos do universo lendário? Ou, em outros termos, por que e de que forma Monteiro se utiliza de elementos afiliados ao lendário na construção de suas narrativas?

Para que as questões acima possam ser, mesmo que parcialmente, respondidas, é preciso compreender determinados contrapontos, diferenciações e também, interseções existentes entre as instâncias textual-discursivas supracitadas, tendo em vista o fato de que entre o mito e a lenda há um distanciamento considerável, mas também algumas ligações. Por esse viés, é válido dizer que a lenda ainda mantém ou conserva, embora de forma um tanto esmaecida ou apagada, elementos constitutivos das formações míticas. É o que acontece, de modo similar, entre a lenda e a narrativa oral popular, pois esta última não deixa de conter elementos ou resquícios da primeira, entendendo-se, no quadro dessas informações, que a narrativa popular reconstitui tipos de significados tributários do que já estava construído/instalado nas lendas tradicionais, considerando, no entanto, que o “reconhecimento”45 ou desvelamento de tais significados, construídos precedentemente não é uma tarefa fácil, mas possível, dado o fato de que podemos fazer algumas projeções e/ou generalizações nessa direção.

Dando prosseguimento ao que está sendo dito, e que se institui como um ponto crucial desta tese, discorro acerca do fato de que também as NEFTPs, de autoria de Walcyr Monteiro, evocam tanto elementos lendários propriamente ditos quanto aqueles inscritos na narrativa oral popular.

Entretanto, é importante dizer que os elementos evocados ou transmigrados das lendas e, posteriormente, presentes nas narrativas populares, não mais se constituem, aí, como originais46, integrais ou puros, mas historicamente transformados ou alterados, daí ser possível nomeá-los como lendários ou integrantes do universo lendário. O que se pode postular, nesse sentido, é que tais elementos podem ter percorrido uma espécie de “caminho”47, longo e “silencioso”48, que vai dos mitos ou das lendas, passando pelas narrativas populares e chegando até a Narrativa Escrita Ficcional de Tema Popular.

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Portanto, tendo em vista o exposto, pretendo aprofundar aqui o caráter ficcional e popular das narrativas em estudo; para isso, trato, no presente capítulo, das relações entre mito, lenda, narrativa popular e a NEFTP, levando em conta, nesse quadro, elementos de contraposição, divergência e interseção existentes entre essas instâncias discursivas.

1.2. SOBRE O PROBLEMA DO MITO

Considerando, portanto, os propósitos desta tese e os objetivos delineados na presente seção, faço, aqui, incursões sobre o conceito de mito. Assim, de acordo com Sperber (2009), baseada nas concepções de Jolles (1976):

[...] o mito é uma interpretação da natureza, fase preliminar da filosofia na medida em que procura uma explicação - conhecimento - do mundo. Como o mito é a resposta a uma pergunta implícita, esta resposta apreende os elementos sobre os quais se interroga e os reúne em um acontecimento - que tem função alegórica. As personagens desse relato-resposta, sendo alegóricas, quer sejam seres humanos, quer animais, plantas, objetos, ou fenômenos da natureza, não representam nem caricaturas, nem aspectos de uma psique, mas representações de um terceiro fenômeno, que está sendo explicado. O salto dos eventos do relato-resposta para a explicação do fenômeno - em geral natural - dá-se por analogia, fazendo com que o próprio relato tenha função metafórica. A linguagem do mito é cifrada, sinalizando o mistério e sua revelação (saber). Por isso as palavras, no mito, têm função simbólica, cuja interpretação se dá também por analogias. O tempo mítico, aquele que existe nas narrativas míticas, não é histórico. Sua anistoricidade parece-se com a dos contos de fadas, mas não representa a psique humana. Representa o universo e as condições de existência e de sobrevivência do ser humano. Segundo Jolles, “o mito [...] designa [...] a crença numa divindade, crença essa que se enraíza, em graus infinitamente variáveis, em todos os povos”. Apesar dessa característica intemporal e atemporal, o mito - como por exemplo o mito grego - pode ter alguma referência histórica. O espaço mítico representa o espaço do conhecimento, ou, mais precisamente, do saber; é também ele alegórico, indiciando, através da generalização, relações, inter-relações, interseções, isto é, um espaço abstrato. Mesmo que o mito explique o nascimento de uma flor, ou de um pássaro, com descrições da natureza, esta não é geograficamente localizável, a não ser aquela flor ou aquele pássaro característicos de um clima, portanto de uma região, referidos também por analogia ao espaço externo. O foco narrativo está sempre na terceira pessoa, mas não tem características do foco personal - máscara do eu. É onisciente, unívoco, procurando, com isso, convencer o leitor-ouvinte acerca da verdade daquilo sobre o qual se fala.

Sua forma corresponderia à resposta fornecida pelo oráculo (portanto pela divindade) a uma pergunta formulada pelo homem. Essa resposta (com pergunta normalmente subentendida) tem um pressuposto: o de que, tendo como fonte o oráculo, corresponde a uma predição3 implícita. Trata-se, nessa perspectiva, de verdade inquestionável que relaciona o passado e o futuro, apontando para o sentido de destino, irremissível, da existência humana. (SPERBER, 2009, p. 266-267).

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A partir dos comentários de Sperber (op. cit.) e que têm por base as formulações de Jolles (1976), postulo a favor do entendimento de que o mito constitui uma metáfora50 reconstruidora dos modos de existência e das atividades humanas, no âmbito do que podemos chamar de cultura. Se este se constitui, conforme a autora supracitada, como uma “resposta a uma pergunta implícita” (Sperber, 2009, p.266), esta resposta não se coloca como algo racional, lógico e inteligível para o que se apresenta como uma crença e um comportamento numa comunidade, nem tem um significado estritamente moral e/ou moralizante para os membros desse grupo. Nesse sentido, deve-se “seguir” o mito não exatamente porque ele prescreve o certo ou o errado, mas porque o que ele está mostrando ou ensinando tem uma veiculação direta com os preceitos estabelecidos pelas divindades, e é somente de acordo com esses “mandamentos” que os indivíduos poderão alcançar um estado de felicidade, mesmo sendo essa felicidade um “porvir”.

Assim, ao tentar me aprofundar um pouco mais na dimensão mítica, na palavra mítica, no que ela tem de mais profundo em sua própria constitutividade, coloco como válido afirmar que se institui como “metáfora pura”4, espiritual e cosmológica; mais ainda, como transcendência e onipotência, que abarca a vida humana em toda sua amplitude.

Dado o que até aqui coloquei como caracterizante do mito, o que, para mim, torna-se difícil de ser caracterizado, postulo ser o mito uma maneira pela qual a verdade se “encarna”, verdade esta que se estrutura como absoluta e inquestionável no que tange do sentido da vida humana (Cf. Sperber, 2009). Logo, o mythos se manifesta como revelação da totalidade da vida humana; de acordo com Sperber (2009), como conhecimento acerca dessa totalidade imponderável e transcendente. Por outro lado, segundo Adorno e Lokerheimer (1980), o mito já é concebido como pensamento racional, já que concerne à necessidade humana de dar sentido à existência, entra então como uma espécie de justificação para aquilo que, do ponto de vista ontológico ou trans-humano, pareceria injustificável. É nesse sentido, de acordo com os autores mencionados, que o mito se institui como razão, com um modo por meio do qual é possível compreender a vida humana em sua dimensão concreta, plausível, imanente.

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Termo usado por Azevedo no âmbito das reformulações requeridas para esta tese (Banca de defesa) como uma construção simbólica que se define em si mesma e por si mesma, não prescindindo de uma explicação por meio da qual possa ser compreendida ou desvelada, já que se autodefine na sua dimensão mágico-religiosa (aqui entendida como re-ligação com o Eterno).

Referências

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