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5.   Metodologia: O desenvolvimento do corpus 133

5.1.   Introdução 133

As metodologias de pesquisa no campo da lingüística estão intimamente associadas aos tipos de dados privilegiados para análise. Chafe (1994) destaca, nesse sentido, duas oposições principais que podem servir de base para o início desta reflexão metodológica: entre dados públicos e privados (se os dados estão acessíveis a qualquer um que quiser observá-los, ou se estão restritos a um único observador-experienciador) e entre dados manipulados e naturais (se os dados são estimulados e arranjados pelo observador ou se ocorrem espontaneamente).

Várias das metodologias clássicas de análise lingüística estão associadas às diferentes combinações desses parâmetros, como mostra a tabela 1 abaixo, reproduzida de Chafe (1994: 18):

Dados Públicos Privados

Eliciação Experimentação Julgamento de gramaticalidade Julgamentos semânticos Etnografia da fala Análise de corpus Fluxo do pensamento Observação introspectiva

Tabela 1. Tipos de dados e principais metodologias de análise lingüística segundo Chafe.

Dados públicos e manipulados102 são resultado de experiências e eliciações lingüísticas levadas a cabo por pesquisadores junto a informantes bilíngües a fim de buscar evidências para as questões analíticas específicas que os ocupam. Tal metodologia traz a vantagem de oferecer dados diretamente relevantes à questão do pesquisador, mas traz também como desvantagem o fato de esses dados, afetados por determinadas condições experimentais, muitas vezes distorcerem ou não refletirem a produção lingüística genuína dos falantes da língua.

Dados públicos e naturais, em contrapartida, envolvem o registro da produção dos falantes em situações de uso espontâneo da língua, por meio de câmeras e

102 A palavra manipulado tem uma conotação pejorativa no português que não deve ser confundida com o

uso do termo “dados manipulados” nesta discussão, que pode ser mais bem compreendido em referência a dados fabricados, direcionados, controlados experimentalmente.

Manipulados Naturais

134 gravadores previamente dispostos. A vantagem, neste caso, é a de que a língua se apresenta em uma forma mais genuína, tal como os falantes a utilizam, e não como eles próprios ou o pesquisador acreditam que ela seja utilizada; a desvantagem, porém, é a de que questões de pesquisa de interesse mais direto do pesquisador deverão aparecer nos dados de maneira acidental, podendo inclusive não aparecer.

Dados privados e manipulados dizem respeito aos julgamentos semânticos e gramaticais feitos pelo pesquisador a partir de frases construídas, o que exige a evocação de contextos imaginados que dêem significação a essas frases a fim de que a sua adequação gramatical ou semântica possa ser avaliada. Aqui, novamente, a vantagem para o pesquisador é a de ter uma questão pontual de seu interesse imediato refletida nos dados produzidos, com a desvantagem da possível impertinência desses construtos em relação ao uso espontâneo da língua.

Por fim, dados privados e naturais são os mais difíceis de serem obtidos e analisados, uma vez que envolvem aquilo que se passa na mente de forma natural. Embora não haja metodologias específicas voltadas para o uso desse tipo de dado, é evidente que muitas questões de análise emergem inicialmente a partir de introspecções espontâneas, que podem ser, então, posteriormente verificadas em pesquisas com dados empíricos.

Ao romper com a dicotomia entre língua e discurso, ambas as abordagens teóricas que orientam o presente estudo privilegiam os dados públicos e naturais. Mais do que isso, dentre os diferentes tipos de uso espontâneo da língua, os pesquisadores da AC, em particular, têm conferido um estatuto privilegiado à conversação em relação a outras formas de fala-em-interação, tais como debates, palestras, sermões, etc – ver também Chafe (1994: 5) para proposta semelhante.

Como argumenta Schegloff (1996: 54), o cenário primordial da vida social é aquele em que dois seres da mesma espécie interagem face-a-face, isto é, em co- presença física. No caso específico dos humanos, a fala-em-interação parece ser uma das formas mais significativas deste elemento da vida social, e a conversa cotidiana a sua forma básica de organização (p. 54). Assim, apesar de novas tecnologias estarem constantemente gerando cenários sociais inéditos de interação, e conseqüentemente, novos tipos de fala-em-interação que adquirem um grau crescente de importância em sociedades complexas como a nossa, a conversa cotidiana é possivelmente o único

135 gênero de fala universal a todas as sociedades humanas, além de se constituir no berço para a aquisição da língua pelas crianças (Clark, 2000: 54).

Há razões fortes para crermos, portanto, que as características básicas das línguas naturais foram moldadas de acordo com esse ambiente primordial, como adaptações à, ou como parte da textura que constitui esse gênero de fala específico (Schegloff, 1989: 142-4).103 Essa ênfase na conversação, a meu ver, se justifica ainda mais no caso de comunidades como as dos surdos, que, por não possuírem uma escrita para as LSs, estabelecem as suas trocas sociais primordialmente em situações espontâneas próprias da (corp)oralidade (McCleary, 2003).

A presente pesquisa, portanto, privilegia não apenas a análise de dados públicos e naturais, mas, em particular, da conversação espontânea como um gênero de fala primordial. Apesar disso, obstáculos técnicos importantes se colocam para o registro de conversas espontâneas numa língua de natureza gestual-visual, como é o caso da libras. Como discutido no capítulo 2, são amplas as evidências de que as LSs se aproveitam de vários articuladores não-manuais para a realização de funções gramaticais e prosódicas. Isso exige – principalmente no estado incipiente de conhecimento em que ainda nos encontramos – cuidados específicos para garantir que as gravações captem esses diferentes articuladores com qualidade suficiente para serem descritos.

Por esse motivo, optou-se nesta pesquisa pela utilização de dados públicos que envolvessem tanto uma dimensão natural quanto manipulada, ainda que a ênfase esteja sobre o primeiro aspecto. Tal combinação, referida como dados de natureza “quase- espontânea” ou “semi-espontânea”, envolve basicamente duas circunstâncias distintas. Uma opção consiste no registro de situações de uso que, a despeito de serem altamente

103 Tem-se discutido muito, especialmente em abordagens voltadas para a aquisição de língua e para o

discurso, o papel primordial das narrativas na constituição dos seres humanos como indivíduos e/ou como povos. A meu ver, contudo, o ato de narrar pressupõe o estabelecimento prévio de uma relação interpessoal em que no mínimo dois participantes se ratificam como mantenedores de um mesmo foco de atenção cognitiva e social – uma conversação, ou nos termos de Goffman (1981), um encontro. De fato, como discutido no capítulo 3, as narrativas freqüentemente se manifestam imbricadas nas conversações, sendo licenciadas por meio de estratégias lingüísticas e interacionais específicas por meio das quais os participantes conseguem suspender a relevância dos possíveis pontos para transição entre falantes, a fim de alocar turnos maiores de participação em que a narrativa possa ser levada a cabo.

Vale ainda assinalar que ‘narrativa’, dentro da perspectiva aqui adotada, tem um sentido mais micro- analítico, de uma prática social estruturada para fins específicos numa dada conversação, e não no sentido mais macro-analítico, como um conjunto de textos que refletem, ou oficialmente visam a representar, a ‘cultura’, a ‘ideologia’ ou a ‘identidade’ de um indivíduo ou povo.

136 direcionadas para uma questão de análise particular, são estrategicamente inseridas em contextos cotidianos a fim de garantir a sua espontaneidade. É o caso, por exemplo, da narrativa elaborada por Moreira (2007) para levantar questões particulares de deixis na libras que, tendo sido previamente trabalhada junto a uma professora surda, foi então inserida numa aula de contação de histórias para crianças de uma escola de surdos (ver também, e.g. Duncan, 2005, para estratégia similar).

Outra opção é o registro de situações de uso da língua que, a despeito de serem eliciadas pelo pesquisador, são pouco ou nada direcionadas por questões particulares de pesquisa. É o caso da eliciação de narrativas e conversas entre surdos em estúdios de gravação, sem tópicos ou temas previamente definidos, que serviram de base para algumas análises em Liddell (2003a).104 No caso da presente pesquisa, então, optou-se por essa estratégia menos diretiva, isto é, pela gravação de conversas entre amigos surdos num estúdio previamente arranjado.

Privilegiar dados mais naturais (corpus espontâneo ou quase-espontâneo) em detrimento de dados mais manipulados (sentenças eliciadas ou construídas com fins de julgamentos de gramaticalidade) tem sido uma estratégia crescente entre vários lingüistas, em especial aqueles com orientação teórica voltada ao uso. Pesquisadores como Hopper (2001) chegam a especular que a revolução na natureza dos dados trazidos por tecnologias emergentes de registro e manipulação de dados espontâneos, principalmente a partir da década de 90, irá se constituir como o grande divisor de águas nos estudos lingüísticos. O que está em debate, mais do que uma questão de “preferência”, é o modo como o tipo de dado que serve de base para as pesquisas pode conduzir os lingüistas a análises bastante distintas sobre um mesmo fenômeno.

Em sua análise sobre as sentenças pseudo-clivadas a partir de um corpus de discurso espontâneo, por exemplo, Hopper (2001) questiona, com base em seus achados, o argumento de que os dados ao qual as crianças em fase de aquisição estariam expostas seriam uma “evidência degenerada” da língua:

Corpus studies suggest … that these “degenerate” data are the true substance of natural spoken language, and that what our descriptive and prescriptive grammars give us are normativized assemblies of these fragments that tend to impress themselves on us as mental prototypes because of their greater social prestige – their associations with

104 Apesar disso, Liddell (2003a) não explicita a sua metodologia de trabalho, e, em algumas partes do

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schooling, with literacy, and with complex discourse characterized by long periods and uninterrupted turns. This observation has significant consequences for both linguistic theory and applied linguistics.

Se esse alto grau normativo das construções gramaticais canônicas é um ponto crítico na análise de LOs, ainda mais crítica é sua utilização como ponto de partida para a análise de línguas sem escrita, como é o caso das LSs. Nesse contexto, o apoio sobre a “gramática” das línguas ocidentais – com todo o seu histórico de hegemonia da escrita – põe em risco ainda mais a possibilidade de identificação da “real substância” da língua. Como alerta Hopper (2001):

By the time a grammatical construction comes to the attention of linguists it is already highly normativized. Worse still, Westernized normative standards may be smuggled into descriptions of unwritten languages when linguists base their elicitations on English equivalents. To view the canonical constructions as prototypes and as the source of ‘deviant’ fragmentary instantiations in discourse is to put the cart before the horse (p. 126).

Tais considerações não implicam que estratégias de produção de dados manipulados não tenham valor nos estudos lingüísticos.105 O que se sugere é a necessidade de inverter a ordem de prioridades, partindo-se sempre da observação de dados naturais como principal fonte de levantamento e verificação de hipóteses, e utilizando-se de dados manipulados (i.e. experimentações, eliciações e julgamentos de gramaticalidade) como estratégias complementares para o aprofundamento de questões levantadas. Diante do estágio ainda incipiente do trabalho de descrição gramatical da libras, então, a formação do corpus e a análise desta pesquisa se restringiram aos dados naturais, reservando-se para um momento futuro a eventual necessidade/possibilidade de combinação com dados manipulados.

Nas seções a seguir, então, serão discutidos em maiores detalhes alguns aspectos metodológicos que cercaram a pesquisa como um todo, desde o processo de gravação das conversas, passando pela necessidade e/ou utilidade de manipulação dos vídeos, e chegando até os recursos e convenções adotados na transcrição dos dados e na produção de relatórios sobre as análises. Nessa reflexão, serão discutidas tanto as dificuldades quanto as soluções que foram encontradas ao longo da pesquisa. O caráter inicial deste

105 Nesse sentido, Labov (1996) oferece uma rica discussão sobre como, no desenvolvimento de

estratégias de manipulação de dados, o pesquisador pode evitar determinadas circunstâncias que conduzam a erros de intuição dos falantes e/ou dele próprio.

138 tipo de estudo no Brasil revela, porém, que soluções metodológicas mais robustas para essas questões somente serão alcançadas com o avanço dos trabalhos lingüísticos com base em corpus informatizado da libras.

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