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Capítulo I Pushpanjali: Uma Coreografia da Problematização

I.1 Introdução

Uma bailarina surge na semi-escuridão no palco. Sua presença imediatamente chama a atenção, deixando um ambiente agradável e sereno no auditório. Adornada com ornamentos e jóias da cabeça aos pés, vestida com um

saree 4 vermelho dourado, os longos cabelos enfeitados com jasmins, ela

representa a divindade feminina, espelhando imagens das deusas Lakshmi e

Saraswati5 encontradas em toda a Índia. Ela inicia seu espetáculo com a dança de

oferenda chamada Pushpanjali - com as mãos postas no peito, se dirige ao altar montado em um lado do palco, toma nas mãos as pétalas que estavam no altar e as espalha sobre a imagem de Shiva Nataraja, o Senhor dançarino da dança hindu (ANDRADE, 2003).

Logo em seguida, uma cantora, acompanhada pela percussão, inicia a recitação rítmica de algumas sílabas: “Ta ka dhi mi taka dhe”6. As luzes do palco vão se intensificando e nas laterais aparecem oito meninas, quatro de cada lado, acompanhando os movimentos corporais complexos acompanhados de gestos de mão, trabalhos dos pés e as expressões faciais. A bailarina do centro articula gestos diferentes dos das demais bailarinas e, de vez em quando, permanece imóvel por alguns segundos - como as imagens esculpidas nos templos indianos. Ela finaliza a dança assumindo uma bela postura de Shiva Nataraja: o pé esquerdo dobrado e estendido para o lado direito, assim como a mão esquerda; a mão direita formando o gesto Abhaya Mudrá, cujo significado é “não tenha medo”. Ao mesmo tempo, as demais dançarinas formam um círculo ao seu redor com o gesto de pedido de benção.

4 Saree é um tecido com cinco metros de comprimento, sem costura, com o qual as mulheres indianas

envolvem o corpo formando uma espécie de vestido longo. 5

Laksmi e Saraswati, segundo a tradição indiana, são consideradas deusas, a primeira sendo a deusa dos bens

materiais e a segunda, a da sabedoria.

6 Essas sílabas não têm significado próprio, são simplesmente recitadas para auxiliar o bailarino a manter o

O espetáculo acima descrito, organizado pela Embaixada da Índia no Brasil em comemoração ao 56º aniversário da Independência da Índia (15.08.2003), foi apresentado no Teatro Nacional de Brasília. O elenco era composto pela dançarina brasileira Patrícia Romano - diretora da Escola de Danças Clássicas Indianas Natyalaya, de São Paulo - e suas alunas. A qualidade artística das brasileiras impactou favoravelmente o público. No palco, não faltava nenhum dos elementos exigidos pela tradição indiana da dança: altar, flores, incenso e a imagem de Shiva Nataraja, o deus dançarino – a Índia “clássica”, enfim, foi muito bem representada. O ambiente criado pelo espetáculo apontou uma íntima relação entre Oriente e Ocidente, na qual as diferenças pareciam estar minimizadas e criava uma atmosfera de interação harmoniosa e pacífica. Era o Oriente que encontrava seu espaço e se manifestava no seio do Ocidente.

Já no início do século XX, o dramaturgo Gordon Craig profetizava que as diferenças entre Oriente e Ocidente seriam facilmente transpostas:

I know no separation such as “East is East and West is West and never the Twain shall meet”, for on the day that I choose to wander far afield, be it to the moon or the beds of Ocean, I may do so… and so also, I may go to the East and become of it any day I wish. (CRAIG, apud. BHARUCHA, 1993, p. 18)

Enquanto pesquisávamos a presença da dança hindu no Brasil, em muitos momentos tivemos a sensação de estar testemunhando a concretização dessa profecia7, embora para boa parte da população dos grandes centros urbanos brasileiros tal manifestação de cultura seja uma novidade.

A entrada da dança hindu no Brasil deve-se ao processo de contato entre Índia e Brasil no nível cultural que se estabeleceu de forma mais intensa durante a década de 1980. Embora já houvesse anteriormente um contato da sociedade brasileira com a cultura indiana, é a partir de 1985 que os dois países iniciam um intercâmbio cultural e comercial mais efetivo. A partir de então, filmes indianos são exibidos no Brasil com uma freqüência bem maior e são abertas muitas lojas

7 Rudyard Kipling, escritor britânico nascido na Índia, ao alertar seus compatriotas sobre as expectativas de

especializadas no comércio de produtos indianos, bem como se intensificam as traduções de livros de autores indianos. Um exemplo recente desse intercâmbio é o Espetáculo Samwaad - a Rua do Encontro, produzido pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo em 2003 -, que realiza uma fusão entres as danças hindu e brasileira e que é interpretado por pessoas que moram nas favelas de São Paulo.8

Atualmente, o Brasil conta com diversas academias e centros culturais que propagam a dança hindu nas grandes cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Porto Alegre). Entre 1989 e 2005, cerca de vinte bailarinos profissionais brasileiros estiveram na Índia e entraram em contato com a tradição da dança hindu em seus diversos estilos. Inicialmente, essas viagens eram motivadas por uma curiosidade que abrangia diversos campos de interesse: espiritualidade, Yoga, música, medicina e massagem.

Durante a estada na Índia, tiveram a oportunidade de assistir a apresentações de dança hindu, o que aumentou seu interesse por essa arte. Começaram a freqüentar escolas de dança em diversas regiões do país e se formaram em estilos específicos. Ao retornarem ao Brasil, os mais dedicados mantiveram o contato com seus mestres e com as escolas de dança, retornando freqüentemente à Índia. O resultado desse intercâmbio são as diversas academias e centros de ensino da dança hindu existentes hoje no Brasil.

Esses dançarinos brasileiros atuam na divulgação da dança hindu através de suas academias, onde adotam o modo tradicional indiano do ensino da dança.9 Nessas academias percebemos a presença de pelo menos 150 alunos. Percebemos também a variedade de motivos que levam os interessados a praticar a dança hindu. A grande maioria manifestava apenas amor à arte, alguns eram movidos pela curiosidade, outros pela busca espiritual e uma pequena porcentagem procurava a dança indiana apenas por lazer.

8 Ivaldo Bertazzo é coreógrafo, bailarino, fundou o Projeto Dança Comunidade, que organiza intercâmbios

entre diferentes países. Samwaad – a Rua do Encontro é seu primeiro trabalho com patrocínio de Petrobrás e contou com artistas indianos e brasileiros. Esse espetáculo foi apresentado em diversas cidades do Brasil e no Exterior. (Fonte: Ícaro, Revista de Bordo Varig 261 Maio 2006, p. 39).

9 No modo tradicional do ensino da dança na Índia há um pequeno ritual que é repetido no início e no final da

aula. Recita-se uma oração tradicional chamada Namaskar, uma forma de pedir a benção da mãe terra, e em seguida o aluno toca os pés do mestre.

Um mapeamento dos centros de dança hindu no Brasil desperta certos questionamentos fundamentais de problematização e análise. A primeira curiosidade é que a divulgação da dança hindu aconteceu no Brasil de modo diferente do que em outros países. De modo geral, a difusão e divulgação de uma manifestação cultural se dão quando pessoas oriundas do local de origem a trazem consigo e a difundem no novo ambiente cultural. Conforme verificamos, todos os estilos da dança hindu chegaram ao Brasil não através dos imigrantes indianos, mas importados pelos próprios brasileiros. Isso nos leva a investigar o caminho trilhado pela dança hindu até chegar Brasil e a sua forma de inserção na cultura local.

Para tal abordagem é necessário investigar o universo religioso dentro do qual nasce a dança hindu, as razões que propiciaram uma abertura e um direcionamento do Hinduísmo para fora do seu âmbito cultural e religioso originário. Na dança hindu, esse processo de abertura se reflete em um movimento que se deu inicialmente na passagem do templo ao teatro. Em um segundo momento, na Índia, essa arte começa a ser apropriada por pessoas de outras religiões e, finalmente, a dança começa a ser difundida no Ocidente. Todo esse movimento perfaz o longo processo da destradicionalização da dança hindu até sua chegada ao Brasil. Ele se divide em quatro etapas: do templo hindu para o teatro, do Hinduísmo para as outras religiões na Índia, da Índia para Ocidente e, finalmente, para o Brasil (país ocidental de inserção posterior da dança).