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Esta dissertação discute o papel da produção do espaço urbano, e suas dimensões, na construção, manutenção e ruptura das práticas racistas no Brasil em uma perspectiva histórica com destaque para seus reflexos na atualidade. A escolha desse tema surgiu por inúmeros motivos pessoais e profissionais. Primeiramente, toda minha trajetória de pesquisa na graduação1 me levou a compreender e a me interessar por uma arquitetura social, ou seja, me despertou uma inquietude em compreender a relação entre o espaço e as diversas dimensões sociais. Neste caminho, aprendi que o espaço apresenta uma materialidade complexa que é preenchida por inúmeros vetores sociais que se relacionam nele e com ele. Dessa forma, mais que espaços, a arquitetura, enquanto disciplina, produz e reproduz relações sociais, políticas, históricas, culturais, entre outras.

Essa relação, social-espacial, sempre me motivou a pesquisar, e os casos mais complexos de estruturação social aguçam ainda mais meu interesse. Seguindo essa linha, me interessei enormemente em trabalhar com a investigação do papel do espaço nas relações sociais e de poder, cristalizadas ao longo da história através de construções cotidianas de ideologias, teorias e determinismos. A segregação social, sua hierarquia e relações de poder, é um exemplo disso, e segundo Antônia Garcia (2009), cientista social, ela também está diretamente conectada com a segregação espacial2.

Dentre as diversas esferas que compõem a segregação social, o racismo constitui no tema que mais me inspirou a estudar, uma vez que não revela explicitamente, no contexto brasileiro, sua dimensão espacial. Em outras palavras, a ligação do racismo com o espaço muitas vezes não é muito clara. No caso do Brasil, o caráter racial do espaço se institui constantemente apagado em justificativas econômicas e através das desigualdades de classes, o que provoca, muitas vezes, o não reconhecimento deste (PACHECO, 2013).

1 Nos primeiros anos de curso, foquei as minhas pesquisas na relação entre a arquitetura e a política, e produzi a monografia: “O Nazismo e As Questões da Cultura, da Arte e da Arquitetura no Período Entre Guerras: A Estética como Libelo da Vontade de Poder”, projeto realizado em 2015 no Programa de Educação Tutorial (PET) Arquitetura. Esse estudo tinha como objetivo entender como a potencialidade da relação entre espaço e sociedade poderia ser explorada, e até instrumentalizada, para a conquista e a manutenção de relações de poder impositivas. Depois de um tempo, essa pesquisa me fez buscar uma nova perspectiva da relação entre o espaço e a sociedade/ política, ou seja, me aprofundar no estudo da possibilidade de o espaço também ser um instrumento de relações sociais democráticas e horizontais, e como isso se materializaria. Diante disto, ao final da minha graduação, realizei meu Trabalho de Conclusão de Curso, 2017, com o tema de: “Proposta de um Espaço de Governo Democrático: Repensando o Centro Administrativo de Belo Horizonte”.

2 Segregação social foi definida pela autora como um processo de separação, estratificação e distanciamento social.

Por isso, esta seria uma construção social associada a diversas instâncias, e principalmente, à segregação urbana, pois a segregação espacial promove a separação e o posicionamento de grupos sociais, e, consequentemente, o distanciamento das relações sociais entre eles.

Além dessas motivações, a escolha desse tema se deu pela sua relevância e urgência na sociedade brasileira contemporânea. Isso acontece, pois o racismo ainda se projeta, estruturalmente, nas diversas relações sociais no Brasil e envolve vários âmbitos da sociedade de maneira visceral, como os aspectos: político, cultural, econômico, social, e a camada espacial (GOMES, 2019). Mais ainda, este se configura em um sistema de práticas sociais que se renovam a cada dia nas experiências cotidianas. Por esses motivos, o tema se torna essencialmente importante, com destaque para a necessidade imediata de compreendermos nossa responsabilidade neste sistema como cidadãos e, no caso, como arquitetos, construtores de espaços e de relações sociais.

Esta última justificativa ressalta o principal foco desta dissertação: o papel do espaço nas práticas racistas no país. É importante compreender essa perspectiva, por dois motivos. O primeiro deles se vincula a minha formação em Arquitetura e Urbanismo, portanto, esse é o campo que tenho propriedade e recursos para trabalhar e construir uma análise crítica sobre.

Além disso, reconheço meu lugar como mulher, branca e de classe média, o qual me possibilita apropriar do tema do racismo até o limite de onde minhas experiências alcançam, como: no estudo do espaço; baseando-me na minha vivência cultural; e como crítica à minha posição estrutural, muitas vezes, como opressora e privilegiada dentro desse sistema. Reitero ainda, que não é minha intenção invadir um lugar de fala o qual eu não pertenço, e que devo total respeito pela dimensão histórica e de luta dos negros. Não pretendo, de maneira nenhuma, torna-los objetos de pesquisa e nem ao menos falar por eles, e me comprometo a buscar a todo tempo permanecer minha análise e meu discurso no meu lugar de arquiteta e pensadora social. Por isso, reforço que meu olhar sobre o racismo se concentra em uma análise espacial e em uma perspectiva crítica perante essa estrutura social, uma vez que sou participante dela como sujeita social, política, e muitas vezes, como alimentadora desse sistema tão impregnado nas nossas relações. Faço então, as palavras do jornalista Laurentino Gomes (2019, p. 39), as minhas: “Cabe-me, portanto, trabalhar com uma atitude atenta, de responsabilidade e respeito pelos agentes envolvidos nessa história, entre os quais eu me inscrevo, [...].”

Sem a pretensão de esgotar um assunto tão vasto e complexo, a dissertação tem como principal intenção: iluminar e descrever criticamente a atuação da produção do espaço como instrumento de construção ou de rompimento das ações que alimentam o racismo na realidade da sociedade brasileira. Neste sentido, propõe-se uma leitura epistemológica de conceitos e teorias associada a uma leitura cronológica do contexto do país, desde o sistema escravista do século XVI até os dias atuais. Em síntese, esta dissertação busca entender e responder, as seguintes questões centrais: os mecanismos de produção do espaço podem ser instrumentos de

estruturação e permanência das práticas racistas no Brasil? Quais seriam esses mecanismos? O espaço também tem potencialidade de se tornar instrumento de fissura dessas práticas? Como?

E quais seriam suas dimensões?

A fim de encontrar respostas para essas perguntas suporte e cumprir com o objetivo de análise, esta pesquisa inicia com algumas hipóteses chaves. Primeiramente, fundamenta-se na ideia que a produção do espaço, em seu caráter sistêmico e institucional, pode ser usada como instrumento combustível do racismo no Brasil, historicamente e nos dias atuais. Provavelmente, isso acontece porque o racismo se estrutura como um sistema de muitas camadas e engrenagens, sendo que muitas delas são profundamente silenciadas no país. Pressupõe-se também, que um outro sistema, e o possível responsável dessa ligação entre o racismo e a produção do espaço, tem influência direta sobre esses dois objetos: o Sistema Capitalista (LEFEBVRE, 2006). Essa ideia se estrutura no fato de que a produção do espaço provavelmente tem relação direta com o sistema de produção social em que esta se insere (no caso do Brasil, o Capitalismo) (LEFEBVRE, 2006). Nesse caso, relembro que uma das principais características do Sistema Capitalista se constitui a desigualdade de classes, que provavelmente, inclui a distância social ocasionada pelo racismo estrutural (CORRÊA, 2004). Desconfia-se, então que, os aspectos espaciais que constroem a segregação urbana têm ligação direta com o racismo, justamente por essas conexões entre o capitalismo-racismo; capitalismo-espaço; e racismo-espaço.

Com essa premissa estabelecida, entende-se que seria possível reconhecer e sublinhar dimensões espaciais que estabelecem relações diretas com a reprodução das práticas racistas, o que fortalece ainda mais a ideia do espaço como instrumento desse sistema social. Nessa lógica, suspeita-se também, que, provavelmente o uso e as experiências espaciais que fogem do seu ciclo padrão de reprodução, podem ser veículos eficazes de resistência ao racismo, capazes de construir brechas de ruptura. Logo, da mesma forma que o espaço apresenta dimensões segregadoras, ele também pode ser considerado um importante personagem para as lutas do Movimento Negro na história do Brasil. Acredita-se, então, que o espaço pode ser também instrumentalizado como objeto reprodutor ou denunciador das práticas racistas a depender de quem o manipula.

Isto posto, para desenvolver e iluminar essas premissas, a dissertação será dividida em seis capítulos, em que os objetos principais serão: o racismo e a produção do espaço urbano.

Ou seja, para que seja possível a construção da relação entre esses dois sistemas, será necessário o entendimento completo do racismo enquanto sistema social e prática, e do espaço, nas suas dimensões de produção e construção das relações sociais.

Primeiramente, no campo do espaço, objetiva-se compreender e criticar a sua produção sistêmica no país e examinar sua dimensão relacional com a sociedade. Nesse sentido, será feita uma conceituação sobre a produção do espaço3 e a contextualização desta na realidade urbana brasileira e do Sistema Capitalista de produção, a partir da perspectiva de Henri Lefebvre, em

“A Produção do Espaço” (2006), e de outros autores que ramificam e estudam suas pesquisas como José Cortés (2008) e Rita Velloso (2014).

Além disso, para entender a relação entre o espaço e o racismo, será preciso definir e aprofundar as diferentes camadas desse sistema de relações4 que permanece nas práticas e nas ações cotidianas dos brasileiros. Dessa forma, objetiva-se no campo do racismo: conceitua-lo e apresentar as ramificações e os vetores que o compõem; relatar suas diferentes roupagens ao longo das épocas; e sublinhar aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos e espaciais que o estrutura e o sustenta no Brasil. Assim, através de autores negros emblemáticos, Lélia Gonzales (2011), Bell Hooks (2014); e Ângela Davis (2016), e de historiadores, cientistas sociais e jornalistas importantes como: Carlos Hasenbalg (2005); Antônia Garcia (2009); Lilia Schwarcz (2012 e 2019) e Laurentino Gomes (2019); será trabalhado as dimensões complexas das práticas racistas a fim de reconhecer as esferas espaciais e sua relação direta com o Sistema Capitalista.

Após a compreensão desses objetos, produção do espaço urbano e racismo, as relações e seus pontos de congruência serão reconhecidos e iluminados ao longo da história do Brasil a ser apresentada nesta dissertação, com o objetivo de identificar e comprovar o espaço como instrumento de estruturação e manutenção das práticas racistas até hoje. Em outras palavras, serão apresentados neste trabalho fatos históricos que comprovem e expliquem a relação, a meu ver indissociável, entre segregação racial e segregação espacial, urbana.

Considerando, a construção do diálogo desses diversos autores e de análises profundas da história do racismo e da produção do espaço urbano no Brasil, pretende-se compreender e revelar uma outra dimensão de relação entre o racismo e o espaço: a relação de fissura. Portanto, também será estudado como a produção do espaço se realiza “por fora” do sistema de produção instituído, e, dessa forma, se instrumentaliza como a materialização de luta, resistência e quebra das relações racistas, ou seja, como um braço do Movimento Negro.

3 A produção do espaço pode ser entendida como um processo que nunca se esgota e dispõe de traços incertos e sincrônicos com o tempo, uma vez que se correlaciona diretamente com a produção das ações sociais (LEFEBVRE, 2006).

4 O racismo se institui em um sistema de estratégias e relações sociais que envolvem uma classificação e uma hierarquização social baseada na manipulação de conceitos biológicos, culturais e étnicos (LORDE, 1981).

Ao longo dos seis capítulos, essas discussões serão apresentadas com o intuito de identificar os mecanismos espaciais, de manutenção ou de questionamento, das práticas racistas no Brasil. Para isso, essa proposta de pesquisa está dividida em: um capítulo de introdução (Capítulo 1); um capítulo de conclusão (Capítulo 6); e quatro capítulos de desenvolvimento (Capítulos 2, 3, 4 e 5).

O Capítulo 2, Segregação: O Espaço Urbano como Fator de Exclusão e

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