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3 A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DAS PRÁTICAS RACISTAS NO

3.5 As primeiras transformações dos valores sociais racistas pós-abolição no Brasil:

3.5.2 Teoria do Branqueamento

A Política da Imigração no Brasil, que já foi conhecida nesta dissertação, foi além de uma iniciativa econômica e apresentou desdobramentos sociais e raciais. O incentivo da imigração europeia tinha como objetivo, a Eugenia, ou seja, a melhora na “qualidade” racial do Brasil a partir do povoamento e reprodução de uma população branca, considerada extremamente desenvolvida – fato “comprovado” cientificamente e culturalmente (SCHWARCZ, 2012). Para além dessa ideia, o principal argumento para que política fosse implantada, foi a necessidade de reduzir a população negra baseada na Teoria do Branqueamento e o seu principal mecanismo: a Mestiçagem. Logo, seria uma transição das teorias científicas para teorias sociais, que seriam absorvidas no cotidiano da população brasileira a partir de políticas públicas.

Figura 18– Tela: A Redenção de Cam – Pintura de Modesto Brocos de 1895, que ilustra o branqueamento da população. Demonstra gerações cada vez mais brancas e o nascimento de um bebê branco como algo positivo, a

ser agradecido.

Fonte: SITE ENCICLOPÉDIA DO ITAÚ CULTURAL, 2015.

De acordo com Ana Cláudia Pacheco (2013) essa teoria surgiu ao final do século XIX e se estendeu nos valores sociais dos brasileiros até 1950. Segundo as instituições públicas e privadas do Brasil na época, que se basearam nos princípios científicos e capitalistas aqui

apresentados, o não-desenvolvimento do país se dava pelo excesso de negros na sociedade.

Nessa lógica, se fazia necessário o aumento do número de brancos, ou certa “ascensão”

(controlada) dos negros socialmente, ou seja, um branqueamento da população. Mas como permitir essa “mobilidade social” sem ameaçar o domínio branco? A resposta foi a institucionalização uma categoria intermediária: os mulatos (PACHECO, 2013).

A Miscigenação era uma política pública do Estado brasileiro construída economicamente (Política da Imigração) e socialmente (Teoria do Branqueamento) que objetiva a formação de um grupo intermediário e “menos negro” da população brasileira (SOUZA, R. 2009). Segundo essa política, a teoria e a prática do branqueamento eram apenas um processo de institucionalização de uma experiência que já vinha acontecendo naturalmente na sociedade brasileira60. Porém, sabe-se que a miscigenação que começou desde o primeiro contato dos europeus com os povos nativos do Brasil e com os escravos africanos, se deu, principalmente, através da exploração sexual, das mulheres em sua maioria, o que de nada teve de espontâneo (HASENBALG, 2005). Entende-se então que a miscigenação foi sim uma continuidade natural de um pensamento antigo, mas, o pensamento que se renovou, de fato, foi:

a banalização da violência sexual e do controle das relações afetivas no cotidiano das pessoas, e não uma relação afetiva dita natural.

Essa teoria e política pública induzia e fomentava um hábito social (construído desde a escravidão) de violência e estupro da mulher negra pela “raça superior” como algo positivo para a sociedade, pois seria considerado um ato de branqueamento e de “desenvolvimento” da população. Além disso, segundo o pensamento da época, havia um número muito pequeno de mulheres brancas no Brasil, o que manipulou ser necessária uma relação “afetiva” e sexual entre homens brancos e mulheres negras (GARCIA, 2009). Nesse momento também teve início um controle das relações afetivas dos negros, já que a relação com uma pessoa branca chegava a ser quase que obrigatória através da imposição da ideia de que era a única forma de sobrevivência ou de melhoria de vida dentro dessa sociedade (HASENBALG, 2005).

Outra importante simbologia criada a partir da Miscigenação foi a noção de que dinheiro branqueia, logo, isso fez com que fosse concebido a ideia de que seria possível obter status e uma participação social que antes era inalcançável. Nas palavras de Schwarcz (2012, p. 34)

“[...] no Brasil, a raça se apresenta como uma situação passageira e volúvel, em que se pode empretecer ou embranquecer.” Esta condição representava uma ilusão do sistema, pois as

60 Essa justificativa se baseava nos diversos estudos científicos da época que demonstravam que a população já havia se miscigenado, e que a diversidade de cores e raças no Brasil era grande devido a “naturalidade” das relações entre as raças originárias: brancas, negras e indígenas.

possibilidades de atuação do negro na economia permaneceram mínimas e seu acesso a oportunidades ainda era limitado. Portanto, a única maneira do branqueamento ocorrer era em sua materialização de fato: relações entre brancos e negros, e o surgimento de uma nova camada social (de raças), os mulatos (HASENBALG, 2005).

Todo esse contexto era extremamente problemático, pois passou a praticar, de forma mascarada, a Eugenia, ou seja, a ideia de um clareamento evolutivo e a transferência da decisão do direito à vida a partir de critérios fenotípicos, morais e sexuais (PACHECO, 2013).

Identifica-se, nessa configuração, um retorno, ou uma não saída, muito clara da escravidão, pois, novamente, o negro está dentro de um sistema em que as práticas cotidianas eram manipuladas e induzidas para: o controle do seu corpo; a não liberdade de relações; e a estagnação social. A diferença seria que nesse momento a forma dessas práticas serem absorvidas até chegar a uma naturalidade cotidiana tinha relação com o seu silenciamento, ou seja, teorias e políticas públicas que negavam o objetivo de segregação racial, o que não acontecia na época da escravidão.

A Teoria do Branqueamento e a Miscigenação foram construídas sob uma justificativa econômica de desenvolvimento, e também perante uma justificativa social “aceitável” na sociedade. Mais do que isso, essa foi uma forma de silenciar os conflitos e os questionamentos desse grupo social, quase que como uma negociação em que há uma propaganda enganosa envolvida (PACHECO, 2013). Mesmo com toda essa falsa vestimenta, fica claro que os objetivos eram totalmente higienistas, e mais ainda, os instrumentos também (SOUZA, R.

2009).

Dentre as diversas consequências desses fundamentos, os desdobramentos políticos se destacaram, pois a Teoria do Branqueamento e sua prática foram também uma forma de enfraquecer o Movimento Negro. Isso aconteceu por dois motivos: a fragmentação desse grupo social; e a perda do orgulho racial (HASENBALG, 2005).

Segundo Carlos Hasenbalg (2005) com a institucionalização da classe social dos mulatos, esses “negros branqueados” tinham certa superioridade social em relação aos negros.

Isso causou uma divisão dos grupos explorados e, mais do que isso, o incentivo do preconceito entre mulatos e negros. Esse preconceito se originou da mesma relação projetada entre brancos e negros, em que uma raça se instituía superior à outra por uma série de motivos construídos socialmente, sendo que, nesse caso, a superioridade seria inerente aos “mais” brancos assim como a inferioridade aos “mais” negros. Essa possível abertura para uma camada intermediária racialmente, fez com que houvesse o estabelecimento de uma distância social dentro do próprio Movimento Negro, o que dificultou a sua organização.

O distanciamento também tinha ligação com a perda do orgulho racial. A falta de unidade e a noção de que os mulatos não pertenciam mais a mesma raça e grupo dos negros, fez com que a ideia de povo, coletividade, e muito dos costumes sobreviventes se perdessem (HASENBALG, 2005). Assim como estudado anteriormente, a força de uma comunidade, está justamente na potencialidade de sua coletividade, suas práticas comuns e suas relações. Com a separação e a ideia de não pertencimento, a identificação coletiva se esvai, o que apagou memórias e hábitos e não permitia encontrar pontos em comum.

Além disso, as organizações negras também se perderam e se distanciaram de suas origens e histórias, pois a ideia do branqueamento foi tão absorvida que transformou parte da luta negra em um processo de tentar alcançar, e até mesmo se tornar, o outro, no caso os brancos, e não mais de resgatar suas identidades (PARAISO, 1998). Mais ainda, segundo Schwarcz (2012), os mulatos trouxeram um paradoxo social, pois na prática havia uma dúvida na classificação social desse grupo que não seguia a gama taxonômica ou de cores da ciência, ou seja, para as pessoas no dia-a-dia: se não é branco, nem negro, o que seria? Essa dúvida com o tempo foi se traduzindo em uma perda na classificação pela cor, e certo apego às características físicas e comportamentais de cada raça (SCHWARCZ, 2012). O branqueamento, então, passou a ser relacionado com ações, status, comportamentos, cultura, cabelo, formato do nariz, etc.

O resultado da nossa indeterminação nas distinções raciais faz com que o fenótipo, ou melhor, certos traços físicos como formato do rosto, tipo de cabelo, e coloração de pele se transformem nas principais variáveis de discriminação. (SCHWARCZ, 2012.

p. 98).

A Teoria do Branqueamento, a Política de Imigração e de Miscigenação sintetizam estratégias claras de fortalecimento e a proposta de uma releitura do racismo no Brasil. Essas estratégias usavam de determinações sociais, mascaradas por incentivos econômicos e benefícios sociais para justificar o uso da violência, do controle dos corpos e relações, e do controle das vozes políticas como forma de manutenção da concentração de poder e do não-poder nos grupos respectivos. Mas, essa teoria precisava de outros respaldos para sua permanência durante tantos anos, e esse suporte vinha diretamente da lógica da segregação social – no qual, novamente, a economia se manifestava como uma barreira da real visualização da guerra racial.

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