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Investigação, concepção e elaboração de um trabalho de escultura inédito

O antropólogo Jorge Dias empreendeu um vasto projeto de registo etnográfico de cultura do povo Makonde5 que vive no norte de Moçambique, essa investigação levou-o ao território em várias viagens de trabalho. Margot Dias integrava a equipa de pesquisa durante estas viagens e ocupou-se de fazer a documentação visual dos povos estudados, quer em fotografia quer em filme de formato 16 mm. Este projeto

etnográfico exaustivo foi financiado pela Junta de Investigação do Ultramar e produziu resultados reconhecidos que foram publicados nos quatro tomos do livro Os Macondes

de Moçambique I, II, III e IV, da autoria de Jorge Dias. A Junta de Investigação do

Ultramar (hoje Junta de Investigação Científica e Tropical) fazia parte do então Ministério do Ultramar (Figs. 79 e 80, Anexo D), com sede situada no grande edifício de gaveto que hoje alberga o Ministério da Defesa Nacional, localizado no outro lado da rua do Museu Nacional de Etnologia (Fig. 81, Anexo D).

5 Todos os documentos de Jorge Dias e da sua época referem-se ao povo Makonde usando a grafia

aportuguesada do nome, “Maconde”. Por razões de atualidade politica e porque se escreve em 2014, optou-se pela diferenciação, utilizando em todo o texto, exceto nos títulos de obras citadas, a grafia ”correta” do nome, “Makonde”.

Posteriormente ao conhecimento da existência desta história e do seu material visual foi possível ter acesso aos Diários de Margot Dias (Figs. 73 e 74, Anexo C), escritos durante as suas viagens pelo norte de Moçambique e da Tanzânia e que revelam um testemunho pessoal e direto da sua participação no projeto de investigação

etnográfica liderada pelo seu marido Jorge Dias. Ao descreverem a geografia e os detalhes do território e ao abordarem os problemas das vivências em “trabalho de campo”, estes “diários” não só permitiram dar corpo a um entendimento mais íntimo dos autores desse empreendimento, como acabaram por revelar de uma forma muito mais complexa e vivida a autêntica “aventura” experienciada pelos protagonistas, algo que o testamento da publicação científica obviamente não transmite. Os diários da Margot Dias, por exemplo, não omitem a complexidade sociopolítica da situação com que se confrontavam todos os dias, atestam a relação que o casal de investigadores portugueses tinha com o regime colonial ou de como dependiam das infraestruturas governamentais para prosseguir nas suas viagens e concretizar as suas ambições científicas, assim como por vezes testemunham o seu horror pelo projeto colonial.

Contudo, só após a leitura de um artigo de Harry G. West traduzido do inglês para integrar o livro de Manuela Ribeiro Sanches Portugal Não É Um País Pequeno (2006), intitulado “Invertendo a Bossa do Camelo. Jorge Dias, a sua Mulher, o seu Intérprete e Eu” (West, 2004) é que se tornaram evidentes as complexidades deste projeto investigativo do casal Dias, o que, por sua vez, o transformaram num tema com potencial para ser um ponto de partida para um trabalho escultórico.

Harry G. West é professor de antropologia na School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres. Desenvolveu pesquisa em Moçambique desde 1991 e numa das suas pesquisas focou-se precisamente sobre a mesma área geográfica que o casal Dias tinha estudado. Como tal, acabou por retraçar os passos dados por Jorge e Margot Dias no terreno. Com o tempo passado no local, travando conhecimento com algumas das pessoas que teriam tido contacto com o casal Dias, nomeadamente o seu intérprete Rafael Mwakala, e também através de entrevistas feitas com a própria Margot Dias, em Lisboa, West apresenta uma história de investigação que, do seu ponto de vista, estava completa e sinistramente emaranhada com a política colonial

portuguesa. West demonstra que o financiamento do Ministério do Ultramar a este projeto implicava que Jorge Dias fizesse relatórios confidenciais para o Governo português e aponta igualmente que estes relatórios continham informação secreta sobre o início da criação da Frelimo e o crescimento do número dos seus quadros no local.

Mwakala, por exemplo, teria sido um dos membros iniciais do movimento de libertação quando este iniciou as suas atividades em terreno da então Tanganika (agora Tanzânia), que faz fronteira com o território do norte de Moçambique onde Jorge Dias concentrava a sua atenção. O grupo de pesquisa podia, portanto, ser interpretado com sendo

simultaneamente um grupo de espionagem política. É certo que West deixa bem claro que a equipa de Dias teria sido pouco eficaz ou, no mínimo, medíocre nos seus esforços de espionagem, assim como também sublinha que, por outro lado, terá investido

bastante na crítica aos colonos e ao governo português. Harry G. West apresenta, assim, de uma forma complexa e subtil a colaboração entre a política e a ciência. O próprio Jorge Dias, citado nesse artigo, afirma: “Embora não sejamos políticos, e tenhamos relutância em fazer incursões em domínios alheios aos nossos interesses profissionais, somos obrigados a fazê-lo dadas as íntimas relações entre o político e o social” (Dias, citado em West, 2004, p. 169).

O interesse desta história situa-se precisamente neste “casamento” invisível da etnografia com a política, que continua relativamente apagado do legado científico de Jorge e Margot Dias. Deste ponto de vista, este é um caso que ilustra muito bem os hábitos de esquecimento ou apagamento histórico que resultam na pobreza ou quase ausência de um discurso crítico pós-colonial na história portuguesa. Jorge Dias foi com certeza um investigador de qualidade, um etnógrafo inovador e valioso para Portugal, mas se a opinião de Harry G. West tem algum valor, a forma como este projeto estava invisivelmente politizado convida a uma análise que, no nosso caso, estimula a vontade de criar um trabalho artístico capaz de revelar e questionar estas cumplicidades sem esquecer a subtileza e a complexidade do tema.

A completar este cenário, é de sublinhar que o povo Makonde é produtor de uma das mais ricas tradições escultóricas da costa leste de África, pelo que a combinação de material escultórico, científico, político, e cultural relacionado com este tema o torna aliciante e com potencial para espoletar o conteúdo artístico na área da escultura.

Finalmente é de sublinhar não ser intenção da autora desta tese e da obra artística a ela associada fazer um trabalho de denúncia do projeto científico de Jorge e Margot Dias, mas sim analisar as interceções conceptuais para alcançar um melhor entendimento das falhas do discurso crítico pós-colonial no contexto nacional. Adicionamos ainda que, de início, os filmes de Margot não se mostravam apelativos para desenvolver uma obra de arte, o seu interesse provinha antes do facto de se

filmes de Jean Rouch produzidos em Moçambique. Os filmes de Margot Dias

antecipam, assim, os filmes de Jean Rouch, cujo projeto etnográfico pós-independência já era amplamente conhecido, nomeadamente pela sua inclusão em trabalhos nossos – ver For Mozambique (2008) (Figs. 25, 26 e 27, Anexo A), e Political Cameras (from

the Mozambique series) (2012) (Fig. 46, Anexo B).