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Tentativa e Erro: Escultura Makonde e Arquitetura Informal

3.3 Trabalho laboratorial em atelier A tentativa e o erro Material útil e caminhos

3.3.1 Tentativa e Erro: Escultura Makonde e Arquitetura Informal

O primeiro passo após a decisão de avançar com este tema para a nossa tese consistiu na procura de um “contentor” escultórico e conceptual para o projeto. Sabendo do interesse tanto de Margot como de Jorge Dias pela escultura Makonde, uma tradição artística que o seu trabalho ajudou a promover, optou-se por eleger e contemplar este campo escultórico. Considerou-se então uma primeira abordagem que poderia incluir um comentário escultórico capaz de permitir o cruzamento de pensamentos e

conhecimentos das áreas da Arte Contemporânea e da Etnografia. Para além deste potencial, a produção escultórica em pau-preto da zona do Niassa, comumente designada por Escultura Makonde, é reconhecida histórica e internacionalmente pela sua inventividade, pelo seu enfâse na imagética da cultura da magia na sociedade africana e também pelos seus méritos técnicos, formais e expressivos. Embora todos estes temas estivessem distantes da nossa prática, havia disponibilidade para avaliar a sua capacidade potenciadora no âmbito da nossa própria escultura e discurso artístico. Com o intuito de desenvolver um conhecimento mais profundo da escultura Makonde da região do Niassa deu-se início a um processo de recolha de imagens de esculturas existentes e dos seus registos fotográficos, recorrendo a outros escritos académicos que se ocuparam da análise e definição deste grupo de esculturas e escultores. De acordo com Ricardo Teixeira Duarte, na sua tese intitulada Escultura Makonde (Universidade Eduardo Mondlane), esta prática ou tradição escultórica é variada e contém diferentes correntes:

1- Grupo “Shetani”, que significa “demónio”, são esculturas de figuras humanoides ou animais muito estilizadas;

2- Grupo “Ujamaa”, que significa família ou união, e são formadas por uma

quantidade de pessoas, seus instrumentos de trabalho e, por vezes animais domésticos, artisticamente unidos;

3- Grupo figurativo, incluindo imagens humanas ou de animais ou ainda, por

influência da colonização, de imagens religiosas, como crucifixos e imagens de Cristo ou de Nossa Senhora. (Teixeira Duarte, 1987, p. 142)

A partir da observação das esculturas fizeram-se uma série de desenhos

investigativos iniciais (ver Anexo E). Este é um procedimento comum no nosso trabalho que visa “traduzir” para desenho as imagens encontradas com o intuito de as explorar como potenciais contentores conceptuais. O tempo do desenho permite “pensar” subliminarmente e compreender intuitivamente a empatia com a forma que se está a estudar. Em geral este processo metodológico dura algum tempo e nele se produzem largas séries de desenhos que até podem não se relacionar diretamente com a obra de arte e o projeto finais, mas acabam sempre por influenciar subconscientemente a sua linha de pensamento, o conceito e a forma (Figs. 92, 93, 94, 95, 96, 97 e 98, Anexo E).

No entanto, tal como já se tinha constatado desde o início da nossa prática artística e sempre que se chega à fase de resolver alguns assuntos de fundo sobre a metodologia e produção de arte contemporânea, a ideia de referenciar uma obra

escultórica existente, da autoria de outro, para produzir uma nova obra de arte apresenta alguns problemas senão mesmo ciladas metodológicas. Por princípio, na nossa

perspetiva, este processo deve ser regido por critérios de avaliação de efetiva

necessidade bastante cautelosos, por forma a evitar que este recurso se torne uma muleta maneirista, um exercício de mero plágio ou um empréstimo/apropriação da qualidade de outros autores.

Neste caso concreto houve vários fatores que influenciaram negativamente o prosseguimento deste caminho. Em primeiro lugar, a referenciação aqui explorada estava a ser feita quase exclusivamente por um entendimento formal e técnico das obras baseado nas imagens fotográficas, o que nitidamente não parecia suficiente. Em

segundo lugar este procedimento prometia ser eticamente conflituoso, já que o alvo da crítica conceptual do nosso projeto de doutoramento não era a tradição escultórica

Makonde, mas sim o trabalho científico do casal de etnógrafos – o estudo aprofundado da escultura Makonde só por si mereceria ser objeto de uma outra tese de doutoramento. Por outro lado, cedo se percebeu que o material de observação que teria sido útil para Margot e Jorge Dias poderia não servir automaticamente para este projeto, pois o nosso objetivo seria criticar o “olhar” dos etnógrafos e não necessariamente aquilo para que estavam a olhar. Finalmente, criar sobre o trabalho artístico de outrem quando muitas vezes esse outrem é anónimo e utilizar esta metodologia para criticar um terceiro interveniente pareceu muito pouco inventivo e, como já se referiu, eticamente perigoso, no sentido de poder levar aos mesmos erros que se tentam criticar. A verdade é que a nossa experiência passada já se havia confrontado com processos semelhantes, nomeadamente quando da longa investigação e referenciação à obra de Donald Judd, mas esse era um artista específico, claramente documentado e identificado com um projeto muito definido, o que permitiu fazer comentários mais abrangentes. Neste caso, contudo, percebeu-se que referenciar obras de arte cuja autoria é indefinida originaria um posicionamento voyeurista insolúvel para a nossa postura crítica, na medida em que o ponto de partida seria demasiado semelhante ao daqueles que se pretende criticar.

Um último aspeto negativo deste procedimento de referenciação tem a ver com o facto do universo imagético da grande maioria da escultura Makonde ser figurativo ou mágico-figurativo, o que do ponto de vista escultórico se distancia da nossa linguagem pessoal. A dissociação da linguagem formal figurativa no nosso trabalho – com a exceção da performance – fez perceber que a utilização deste referente externo imponha o risco de trabalhar num registo imagético demasiado novo, algo que seria preferível evitar num trabalho de tanta responsabilidade ética, política, social, histórica e académica.

Todas estas razões acabaram por conduzir ao abandono deste caminho, que se mostrou não ser o mais adequado para desenvolver uma obra de arte crítica. No entanto, esta componente do nosso estudo foi muito útil para confrontar e apreender, de forma plástica, o espaço simbólico e artístico habitado por Jorge e Margot Dias, num processo algo paralelo ao que o etnógrafo Harry G. West se viu obrigado a percorrer, de forma ensaística, no início da sua investigação no Niassa, quando teve de enfrentar a presença subliminar permanente do seu antecessor.

Na fase laboratorial que se seguiu analisaram-se algumas imagens de

documentação fotográfica das várias campanhas de investigação científica feitas por Margot Dias no terreno e a nossa atenção focou-se nas estruturas arquitectónicas

informais de pau a pique reveladas nas fotografias e desenhos disponíveis (Figs. 78, 85, 86, 87, 88 e 89, Anexo D).

Nesta etapa da investigação prática está subjacente a necessidade artística de dar continuidade a algumas experimentações feitas nos últimos anos com novos materiais que permitissem revelar novos modelos de expressividade e potencial evocativo. São materiais mais “pobres” que muitas vezes se aproximam fisicamente das referências de arquitetura mais informal aqui encontradas. Veja-se o exemplo do longo projeto Cape

Sonnets, iniciado em 2010 com o convite de Steirischer Herbst para participar no

festival Monument und Utopia II com uma escultura pública temporária para o Volks Park, na cidade austríaca de Graz (Figs. 55, 56 e 58, Anexo B), e terminado em 2014 no Museu Tamayo, na Cidade do México. O ponto de partida do trabalho criativo deste projeto teve origem na descoberta da imagem de uma torre de transmissão de rádio pública numa aldeia rural em Moçambique (Figs. 47 e 48, Anexo B).

Este objeto, evidentemente construído pelos cidadãos de forma muito artesanal e intuitiva, mostrava grande poder escultórico. Utilizando esta estrutura como inspiração, procurou-se criar uma escultura pública que, sendo sonora, necessitava de material áudio que pudesse ser transmitido. Pela sua pertinência, a escolha do som da escultura recaiu na leitura de sonetos escritos pelo poeta – sul-africano de origem austríaca, Peter Blum, descrevendo a cidade onde vivia – a Cidade do Cabo. A família judia do poeta teria fugido da Áustria para a África do Sul aquando do anschluss alemão por Adolf Hitler, pelo que a escultura e a sua emissão sonora devolviam à Áustria um dos seus cidadãos através da descrição que fazia da cidade que adotou, lembrando um detalhe político complexo da história dos dois países.

Durante a construção das várias versões da escultura-torre procedeu-se a uma variadíssima experimentação de materiais e linguagens formais, procurando em cada uma delas a forma evocativa, poética e política mais eficiente (Figs. 49, 50, 53, 54, 56, 57 e 61, Anexo B).

Com as suas variadas manifestações, o projeto Cape Sonnets transformou-se num verdadeiro laboratório de ensaio para caminhos experimentais a adotar ou a abandonar e, inclusive, a aplicar, mais tarde, neste projeto de doutoramento. Quando se fez o balanço da eficácia das diferentes esculturas produzidas ao longo desta série de experimentações chegou-se à conclusão de que a versão do Museu Tamayo era a mais eficiente, pois as suas linhas construtivas acentuadamente minimais permitiam uma melhor leitura enquanto objeto artístico sonoro. Além disso, a sua escala era adequada

ao espaço e como que ampliava o seu papel de escultura pública, apesar de estar

instalada num espaço interior. Foram estes fatores, associados ao facto desta linguagem formal geométrica, com referencialidade ao Construtivismo, estar mais próxima dos moldes de manufatura da escultura característicos do nosso trabalho, que chamaram a atenção e impulsionaram a possibilidade de explorar este caminho no presente projeto, agora, como adiante se explicitará, numa versão formal mais simplificada, mais minimal e com claras referências ao Surrealismo (particularmente expressão de ambiguidade espacial) e à herança Makonde.

Existe ainda um segundo projeto artístico, desenvolvido em simultâneo com o projeto de doutoramento, cujo processo foi crucial para as decisões plásticas e

conceptuais tomadas em relação à obra desta tese, A Tendency to Forget que por isso também se podem considerar fazer parte desta experimentação e dos respetivos testes de materialidade e expressividade. Trata-se da série de três pequenas esculturas

denominadas Study for Monument to Jean Rouch in Mozambique #1,#2 e #3 (2010- 2012) (Figs. 66, 67 e 68, Anexo B), resolvidas como possíveis maquetes para um monumento público em homenagem ao importante papel do etnógrafo e cineasta

francês Jean Rouch em Moçambique. Esta premissa de trabalho, também utilizada em A

Tendency to Forget, define um âmbito de produção de esculturas que, retendo sempre o

seu estatuto de potenciais objetos de arte pública, permite produzir objetos

experimentais de acabamento impressivo e despreocupado, que afinal não passam de “propostas” – daí o uso da palavra “estudos” no título – sem qualquer veleidade de se tornarem objetos acabados e permanentes. Além de também serem elaboradas sobre a ideia de filmes, filmagens e projeções de imagens, a liberdade destas experimentações tem a vantagem de possibilitar um entendimento plástico profundo do funcionamento escultórico que, por sua vez, permite abordar o presente projeto com alguma confiança e clareza.

No contexto do nosso trabalho, esta pequena sequência de esculturas prolonga o desafio escultórico das torres e das estruturas que se elevam no espaço iniciado em 2008 com a série For Mozambique e continuado em Cape Sonnets. Os desenhos (Figs. 54, 62, 63 e 64, Anexo B) que acabaram por ser dispositivos de arranque para as respetivas esculturas, constatam isso mesmo.

É importante reafirmar que este projeto não se limitou a ser um terreno

experimental formal, com ele iniciaram-se e testaram-se as premissas conceptuais para a nova obra A Tendency to Forget, produzida para este doutoramento.

O texto que se segue, extraído de um dos vídeos da nossa obra Political

Cameras (For Mozambique series) de 2010 (Fig. 46, Anexo B), expõe de forma clara o

contexto histórico e político do trabalho de Jean Rouch que, como já se mencionou, constituiu a nossa introdução ao Filme Etnográfico, ao mesmo tempo que auxilia a compreender as investigações feitas em torno das várias abordagens de filmes etnográficos feitos em Moçambique em momentos distintos do século XX:

A number of projects aiming to put into practice various left wing ideas on education and nation building took root in Mozambique after the declaration of independence in 1975. In the context of a protocol between the University Eduardo Mondlane

(Mozambique) and the University of Nanterre (France), Jean Rouch and a team of ethnographic filmmakers responded to a call for collaborations with the Centre for Communication Studies (CEC) to establish links between the rural and urban areas. They arrived in Maputo in 1976 to run a series of Super 8 workshops at the University Eduardo Mondlane and various rural communities, where Rouch tested his ideas of using Super 8 film as a tool for development.

The trainees attending the workshop came from various state ministries. The first 15 days consisted of hands-on training in Maputo; making quick films and developing them. Later the group of trainees was broken down into four smaller groups, each of which produced a larger film – an example of which is Mbomgolo Iyakoka” (The donkey Pulls), filmed in the Bairro do Aeroporto in Maputo. In the last stage of the workshop the films made in Maputo were taken to the rural areas and projected in communal villages. The films were screened at night, using generators which the team had brought with them. During the day trainees filmed life in the villages; this footage was later edited in Maputo and shown in the city. After Rouch’s departure from Mozambique, this group continued to work extensively in Niassa (Mavago, Lichinga).

(Ferreira, 2010, in vídeo Political Cameras)

É evidente que Jean Rouch filma e produz filmes em Moçambique anos depois das campanhas no terreno do casal Dias, assim como trás consigo uma bagagem política bem mais progressista: ao contrário dos Dias, Rouch vai a Moçambique para celebrar o fim do colonialismo, para documentar com entusiasmo e um olhar etnográfico mais libertador as novas experiências políticas de esquerda. Todavia, note-se, o olhar de Rouch por vezes também é criticado pelo seu lado voyeurista, mas isso não impede que se reconheça como este cineasta revolucionou os termos e os parâmetros do Filme

Etnográfico precisamente por tentar libertar a Etnografia do seu olhar superior e colonizador, algo de que o casal Dias nunca se mostrou crítico ou consciente.