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A gestão das cidades pode e deve investir na redução de fatores de risco para a violência, com ações, projetos e programas de prevenção em diferentes áreas:

assistência social, comunicação, cultura, educação, esporte, habitação, lazer, meio

ambiente, mobilidade, profissionalização, saúde e urbanismo.

O CONTEXTO DE VIOLÊNCIA no Ceará se agravou

bastante nos últimos 20 anos. A insegurança por todo o estado não é mais só uma sensação. Um problema que afetava principalmente as cidades de médio e grande porte se expandiu para os pequenos municípios, atingindo as áreas urbanas e também os distritos. A exemplo de outros estados do Nordeste, embora de forma ainda mais intensa, o Ceará passa por um processo de interiorização da violência no Brasil, que se acentuou desde o início dos anos 2000 no país e ganhou contornos mais graves no estado a partir de 2015, com a presença acintosa de facções criminosas disputando o mercado de drogas e armas em várias regiões, impondo temor, gerando conflitos e provocando mortes.

O fenômeno da interiorização da violência no Brasil chamou a atenção do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz logo na entrada do novo milênio, quando da elaboração da quarta edição do Mapa da Violência, divulgada em 2004. “Se, até 1999, os polos dinâmicos da violência loca- lizavam-se nas grandes capitais e regiões metropolitanas, a partir dessa data, observou-se certa estagnação nessas áreas e o deslocamento da dinâmica para o interior dos estados, cuja violência continuava crescendo a um ritmo maior que o anterior”, apontava o pesquisador.

Após a publicação do Mapa da Violência de São Paulo, em 2005, e do Mapa da Violência: os jovens do Brasil, em 2006, o sociólogo estava convencido de que essa

estagnação do crescimento da violência nas grandes metrópoles e a continuidade do crescimento da violência nos municípios do interior não se tratava de um fenômeno pontual, meramente conjuntural. O convencimento fez o coordenador da série de estudos publicada desde 1998 se debruçar sobre uma nova pesquisa, divulgada em 2007, abrangendo as 5.560 cidades do país, o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros.

A principal constatação: entre 1994 e 1999, as taxas de homicídios das capitais e regiões metropolitanas cresceram 6,1% ao ano, enquanto no interior o aumento foi de 4,5%. Mas no período de 1999 a 2004, o quadro se inverteu. “O crescimento foi de 0,8% ao ano nas capi- tais e regiões metropolitanas. E, no interior, o aumento foi de 5,3% ao ano. Dos 48.374 assassinatos ocorridos no Brasil em 2004, 40% foram no interior”, pontuava Julio Jacobo.

O pesquisador atribuía a inversão às mudanças socioeconômicas em curso desde a década anterior. “Desde o início dos anos 90, a economia no Brasil está sendo descentralizada. Indústrias e investimentos começaram a ser deslocados para o interior por causa de facilidades fiscais e da mão de obra mais barata. O interior se tornou polo atrativo para a população e, em consequência, para a criminalidade. Por outro lado, as grandes cidades receberam mais investimentos do Fundo Nacional de Segurança Pública para combater a violência”.

Sem a estrutura de repressão adotada nos municípios de grande porte, as médias e pequenas cidades passaram a ser o destino de agentes da criminalidade, num processo de migração que contribuiu significativamente para a inte- riorização da violência. A partir dos anos 2010, principal- mente, esse fenômeno se reconfigurou, tornando-se mais complexo. As grandes facções do Sudeste se ramificaram por outras regiões do país e alguns estados criaram seus próprios coletivos a serviço do crime. Delitos e conflitos, antes perpetrados “apenas” individualmente, passaram a ser planejados e executados também por organizações. Além da falta de aparato policial repressor para coibir as ações criminosas e prender os autores, o desenvolvi- mento econômico que algumas cidades de pequeno e médio porte passaram a ter, entre o fim do século passado e o início do atual, foi um chamariz para os grupos crimi- nosos. O crescimento incluiu a instalação de agências bancárias, a abertura de empresas e lojas comerciais e a disponibilização de novos serviços aos moradores.

Com uma relativa “saturação” do mercado de drogas e armas nos grandes centros urbanos, as organizações criminosas viram nas pequenas e médias cidades terri- tórios com potencial para ampliação e exploração das atividades ilegais. E como o progresso econômico não resultou em amplo e profundo desenvolvimento social, as desigualdades entre ricos e pobres se mantiveram, e adolescentes e jovens das periferias, notadamente, passaram a ser recrutados pelos coletivos criminais.

Doze anos depois da publicação do Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, outro documento de referên- cia para compreensão do fenômeno da violência locali- zada nas cidades veio atualizar a leitura sobre o processo de interiorização do problema. Em 2019, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançaram o Atlas da Violência: Retrato dos Municípios Brasileiros, que analisa a situação, parti- cularmente dos homicídios, nas 310 cidades com mais de 100 mil habitantes.

É gritante o aumento da violência letal nas pequenas cidades ao longo de 20 anos, entre 1997 e 2017. “Nas últimas duas décadas, os municípios menores tiveram crescimento acentuado das taxas de homicídio, ao passo que os maiores lograram redução nos índices de homicídio, fazendo com que esses grupos ficassem mais parecidos. Enquanto houve crescimento de 113,0% na taxa dos municípios pequenos entre 1997 e 2017, os médios sofreram relativamente pouco aumento na taxa de letalidade, e os grandes lograram uma redução de 4,5%”, aponta o relatório.

Com o avanço da violência pelo interior do país, o desafio para os gestores dos municípios aumentou, mas poucos assumem a responsabilidade pela superação do problema. Segurança é uma competência também municipal. A política pública de segurança não é uma atribuição exclusiva dos governos estaduais e federal. Poder público e sociedade precisam alargar a compre- ensão de que as ações nessa área devem incluir muito

Segurança é mais do que só um caso de polícia. Políticas públicas em diferentes áreas são fundamentais para atacar as causas da violência, contribuindo para a prevenção e a redução de homicídios

mais do que repressão à criminalidade e à violência, mas também promoção de uma cultura de paz para prevenção de delitos e conflitos. É preciso agir por antecipação para atacar as causas da violência.

A visão de uma segurança atrelada essencialmente a ações repressivas tem levado a gestão pública a valorizar o trabalho focado em policiamento ostensivo e encarceramento, funções desempenhadas pelos governos estaduais, por meio das polícias Civil e Militar, e pelo governo federal, por meio da Polícia Federal, além do sistema de Justiça, que envolve a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Judiciário. Como os governos municipais não dispõem de força policial, a maioria das prefeituras se esquiva da responsabili- dade pela segurança ou procura equipar e treinar a guarda civil municipal para que atue à semelhança da polícia. E como a polícia tem agido cada vez mais na base do confronto, a violência só aumenta, como demonstra o número alarmante de cidadãos mortos por intervenção policial, além dos próprios agentes de segurança que têm a vida interrompida em meio a essa lógica de conflitos.

Aos governos estaduais cabe, entre outras tarefas, estruturar e organizar o sistema policial, com uma Polícia Militar para prevenir ações criminosas e uma Polícia Civil para investigar os delitos. Ao governo federal, por meio

da Polícia Federal, compete desempenhar tais funções quando os crimes extrapolam as divisas das unidades da federação. Aos governos municipais resta a importante tarefa de investir em prevenção da criminalidade e da violência, função que ganha ainda mais relevância frente à lacuna deixada pelos outros dois entes federados, haja vista o trabalho eminentemente ostensivo e repressivo, que não tem repercutido para diminuir o problema.

A criação, a ampliação e o fortalecimento de programas sociais constituem parte fundamental de uma política pública de segurança e devem ser consi- derados pelos gestores nos diferentes níveis de poder. A prevenção da criminalidade e da violência envolve investimentos em assistência social, comunicação, cultura, educação, esporte, habitação, lazer, mobili- dade, profissionalização, saúde e urbanismo.

O que não falta é possibilidade de viabilizar cidades mais seguras, como veremos nas próximas páginas. As prefeituras podem – e devem – fazer uma grande diferença para promover o bem-estar dos cidadãos, a convivência harmoniosa entre os moradores. Com o devido planejamento e em parceria com o governo estadual, o governo federal e a própria população local, o poder público municipal tem como desenvolver uma série de ações e projetos que constituam uma política pública de segurança para a cidade.

COM A MELHOR