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2.4 A ironia versus a tirada espirituosa: o problema do referente

2.4.3 A ironia da esquizofrenia

Miller (1996) propõe em seu artigo, uma perspectiva irônica da linguagem quando realça que, definitivamente, todos os discursos são defesas do real, são semblantes edificados pelos seres de linguagem, o parletre. Apesar de primordial e fundamental, essa desordem original que não é só da linguagem, mas também do ser, só pode ser vista, alcançada, em seu sentido mais estrito na esquizofrenia. O esquizofrênico seria, então, definido como alguém que se distingue por não ser apreendido em nenhum discurso, por muitas vezes viver esta desordem inaugural na falta de uma suplência, por estar fora do laço social (se entendemos, no Seminário XVII ‘O Avesso da Psicanálise’ (LACAN, 1967), que o discurso é o laço

social). O que isto quer dizer afinal?

A perspectiva irônica da linguagem na esquizofrenia aponta, nitidamente, para a falta de referente na linguagem. A ironia é justamente reconhecer que o Outro, enquanto garantia da linguagem não existe, ou melhor, é uma suposição neurótica que o inscreve em um discurso, que o faz existir enquanto lugar de ordenamento simbólico.

Interessante salientar que também Frege reconhece este caráter de suposição quando determina que o referente de uma assertiva seja o seu valor de verdade e que este valor é pré- suposto:

Idealistas ou céticos terão, talvez, objetado há longo tempo: “você fala da lua como objeto, mas como sabe que o nome ‘lua’ tem uma referência?” Respondo que não é nossa intenção falar de nossa representação de lua, nem nos contentamos apenas com o sentido quando dizemos ‘a lua’; pelo contrário, pressupomos uma

referência”.42 (FREGE, 1892 [1978], p. 67).

Não é incomum, nas instituições onde se dispõem a atender pacientes esquizofrênicos, escutarmos histórias de falas ou comportamentos por eles adotados, que nos parecem completamente nonsense, para não usar termo preconceituoso, às vezes, alguns profissionais, dizem que estão “inadequados”, ou dizem coisas “inadequadas”, vestem-se, na maioria das vezes, de forma “bizarra”.

Por estas e outras, podemos notar que estão fora do limite da ordem do Outro que estrutura o laço social. Além disto, reconhecemos desde a psiquiatria clássica o ‘pensamento desagregado’ que chega ao ponto de uma fala ininteligível, ou ainda, a ‘glossolalia’ que permite ao enfermo, por fim, inventar uma própria língua completamente sem referente43 – se entendemos aqui que o discurso sem referente se desorganiza – e especialmente não compartilhável. Aqui também, mais uma vez, os neologismos e vários outros “fenômenos”. Esta coleção de sinais, se bem escutada, pode nos apontar justamente para a falta de referente que organiza o pensamento, mantém, mesmo que de forma, diria, elástica, o significado das palavras, permitimno uma comunicação em seu sentido estrito.

A ironia44, especificamente, deve ser entendida como o desmascaramento dos

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Grifo nosso.

43 Falamos aqui de pacientes já muito desorganizados que, ao que parece, não há nenhum ordenador de sua fala.

Vale ressaltar porém, que normalmente nos deparamos, na clínica, com pacientes que conseguem se comunicar – apesar de fazerem uso de uma fala particular – na medida em que, de alguma forma, forjaram um referente que não o NP.

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Como ilustração, poderemos lembrar um ilustre irônico que escreveu suas ‘Máximas e Reflexões’ no século XVII. Trata-se do Duque La Rochefoucauld que elegantemente derrubava os valores ao desmentir a boa intenção das virtudes dos homens – aqui chamados semblantes – de sua época. Entre muitas, veremos algumas que valem aqui reproduzir:

semblantes, com a certeza apontada para o fato de que a verdade é uma ficção e que estamos enganados quando pensamos que nos comunicamos, que somos capazes de “falar a mesma língua”, no senso comum.

Segundo Teixeira (2005) 45, o referente é uma suposição produzida por uma imposição de que há um sentido único, pois se assim não fosse, seria impossível compartilhar qualquer coisa socialmente. A existência de um referente na linguagem depende do ser que fala consentir, pela via do amor, na autoridade do mestre, ou seja, depende dele crer que há um sentido, há algo que possibilite a linguagem. Aqui o referente é o S1 que agencia o discurso do mestre, tal como Lacan o elucidou. 46

O S1, como vimos no capítulo anterior, é um significante isolado do enxame de significantes no infans que é fixado em posição extima à linguagem e, é um significante, enfim, chamado a fazer signo para alguém e, por tal posição, é capaz de ordenar, associar e possibilitar sentido. Ele surge como referente na ausência de um referente primordial, no sentido de natural, e se instala a fim de garantir uma verdade que terá sempre estatuto de ficção e o destino de só poder ser meio-dita. Neste sentido, o valor de verdade é pressuposto pelo “estatuto de referente” (GENEROSO, s/d).

Fabiano também me traz um uso particular da linguagem que não faz laço social. Ele faz piadas que não têm graça para ninguém, a não ser ele. Um dia me conta que andava tirando fotos no celular das colegas de sala sem permissão. Uma delas se ofendeu e o reprovou. Ele faz uma piada irônica: “Ah! Então você é daquelas pessoas que pensam que podem ser engolidas por uma câmera?”. Ou, como sempre me pergunta quando não entendeu algo: “Me chacina uma dúvida?”, substituindo o matar por chacinar pensando que é engraçado.

Podemos, enfim, reconhecer que há uma diferença entre a tirada espirituosa na neurose e a ironia psicótica. Se na tirada espirituosa o que é visado é justamente o Outro, enquanto quem garante a linguagem, o entendimento e a comunicação. Na ironia, o Outro é destituído, ou melhor, é escancarada sua ausência, sua inexistência. Na tirada espirituosa encontramos

 “Se há homens cujo ridículo não aparece é que não o procuraram bem”.

 “A virtude não iria muito longe, não lhe fizesse companhia a vaidade”.

 “Arrependimento é menos remorso do mal que fizemos que temor do que nos possam fazer”

 “A honestidade das mulheres é muitas vezes amor da reputação e do repouso”. (ROCHEFOUCALD, 1994)

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Anotações de aula na disciplina ‘Psicanálise e Linguagem’ ministrada pelo professor Antônio Teixeira como cadeira do mestrado em Psicologia da UFMG.

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uma produção de sentido na medida em que é possível brincar com as palavras e lhes arrancar um sentido novo. Na ironia, definitivamente, não é disto que se trata. Trata-se, afinal, de um apontamento para inexistência do Outro, denunciando a artificialidade dos laços, a estrutura ficcional deste laço com Outro a que tanto se agarra a neurose.

O discurso como saída simbólica para a ausência deste Outro garante da verdade e do código não funciona na esquizofrenia que denuncia a ausência de referente e nos indica, nos escancara mesmo, a vertente do delírio generalizado, como o veremos. A ironia aponta para uma desrealização causada, afinal, pela queda do semblante e da inexistência da verdade, pelo reconhecimento, enfim, de uma única certeza: a existência da Coisa.