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2.4 A ironia versus a tirada espirituosa: o problema do referente

2.4.2 Notas sobre o referente em psicanálise

Considerando e mantendo em suspenso o acima exposto sobre a questão do referente na lógica de Frege, é o momento de nos aventurarmos na mesma questão, desta vez sob o ponto de vista psicanalítico. Para tanto, seguiremos usando como referência o artigo ‘Clínica Irônica’ (1996) de Jaques-Allain Miller visto que seria trabalho extenso perseguir este conceito na obra de Lacan – que, no entanto, será também evocada.

Um primeiro ponto a ser destacado: o referente existe justamente porque a palavra não cria a coisa, mas se refere em um arranjo simbólico – donde podemos inferir seu caráter de exterioridade à linguagem. Para a psicanálise também haverá um referente na linguagem, mas certamente o referente não é o que se diz no enunciado: ao contrário, ele se encontra alhures visto a própria estrutura da linguagem conforme estamos apreendendo. Assim, a pergunta sobre a o quê se refere uma frase se complica.

Para Freud a descoberta do inconsciente remete diretamente a esta questão e torna-se possível a análise das formações do inconsciente. Comparado à psiquiatria, a psicanálise se diferencia por reconhecer em uma alucinação, por exemplo, a referência – de caráter interno, certamente e, para Freud, interpretável – enquanto a psiquiatria conclui que a alucinação é

referente, são suspensos em nome da arte e sua linguagem própria. Vale ressaltar ainda que Fregue está falando do referente nas sentenças assertivas – ponto de interesse neste trabalho como veremos no próximo capítulo – e que a referencia em outras sentenças – como sentenças subordinadas (cujo referente é o próprio pensamento), as substantivas e as adverbiais, as interrogações e pedidos. Para esta discussão, remeto o leitor interessado ao texto do próprio Fregue “Sobre o Sentido e a Referência” (Ibidem; 61-86).

uma percepção sem objeto e, portanto, sem referente. Podemos recordar com Miller (1996) que, desde Freud, a clínica psicanalítica reconhecia a referência do discurso em um ponto vazio: o pênis da mãe. Isto quer dizer que a neurose se instala neste ponto onde reconhece a falta deste referente, em outras palavras, aqui reconhecemos a castração do Outro e teremos, tal como um destino, a imposição de dizer sempre outra coisa.

No começo do ensino de Lacan encontramos a “referência fálica” como um ordenador do sujeito. Vimos que, nesta época, Lacan trabalhava em uma clínica do Simbólico e devemos nos lembrar que, aqui o sujeito é o sujeito barrado definido como o que é representado por um significante para outro significante.

Em ‘A Significação do Falo’ (1958), Lacan destaca como condição humana a “paixão pelo significante” – entendida como em que a natureza do homem é submetida à estrutura da linguagem, onde o significante, por poder ser significantizável, pode alcançar o estatuto de significado. Ressalta o falo como significante privilegiado na medida em que enquanto tal, o falo dá a proporção, a medida do desejo e lugar do sujeito frente ao sexo. O falo, enquanto significante da falta do Outro, vai ser responsável por designar os efeitos de significado e, de certa forma, atuará como referência.

No entanto, a noção de referente tal como trabalhamos aqui, ou seja, incluindo na linguagem sua face de real, aponta para o Lacan que se firmou depois de conceituar seu objeto: o objeto a. O objeto cuja consistência lógica vem no lugar que se instaura com a falta do falo, o objeto como recurso último da aparição do gozo na fantasia neurótica. O objeto como resto e como causa. 41 No seminário XVII, ‘O Avesso da Psicanálise’, em posse deste conceito, ele formula – literalmente – os quatro discursos onde o objeto a se articula com o S1, com o saber (S2) e o sujeito barrado. Desta articulação nasce o laço social – tal como o abordamos no primeiro capítulo na perspectiva do Seminário XX – na medida em que o discurso inventa a comunicação bem como a linguagem enquanto aparelho: “O ser humano que sem dúvida é assim chamado porque nada mais é do que o húmus da linguagem, só tem que se emparelhar, digo, se apalavrar com esse aparelho [de gozo]” (LACAN, 1969-70 [1992], p. 48). Os discursos são a resposta do sujeito ao desalinho da língua, instaurando uma ordem que introduz na linguagem, a partir de um referente, a dimensão de laço social entre os sujeitos.

A partir daí, o discurso sempre será do semblante, pois que, como trata Lacan em 1972, o significante é sempre aquilo que tem efeito de significado contando que haja um

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terceiro elemento nesta relação, qual seja, um referente. O significante tem por propriedade não se referir a nada, só pode então se referir a um discurso, um discurso enquanto liame social. Assim, Lacan é enfático: “a linguagem, em seu efeito de significado, não é jamais senão lateral ao seu referente” (LACAN, 1972-73 [1985], p. 61), tornando-se impossível dizer a verdade. Portanto, o referente é representado pelo significante sendo impossível qualquer designação da coisa restando a possibilidade de se enlaçar pelo semblante.

No final das contas, há apenas isto, o liame social. Eu o designo com o termo discurso, porque não há outro meio de designá-lo, uma vez que se percebeu que o liame social pode ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante (Ibidem, p. 74).

Assim, Miller (1996) ressalta com Lacan que na clínica psicanalítica os modos de defesa de suas estruturas não passam de defesas contra o real. Frente ao impossível o sujeito responde da forma que puder. O neurótico, frente ao furo do Outro que o faz sujeito barrado, trata de significantizar o gozo, “atravessá-lo” com o simbólico – no lugar do trauma teremos, via metáfora, um sintoma analítico, por exemplo. Para o perverso, a castração uma vez reconhecida trata de ser desmentida e o pênis da mãe se substancializa na imagem, no fetiche. E quanto à psicose? A resposta de Lacan é a forclusão e, na paranóia especificamente, não aceitar a castração, a falta do Outro, implica em um Outro consistente e gozador. Para o esquizofrênico resta saber que o Outro não existe e, ainda com ele, aquilo que as demais estruturas tratam de velar – a hiância da linguagem, em última instância – são reveladas.