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ISLAMISMO CAPITALISTA E ISLAMISMO MULTICULTURALISTA

CAPÍTULO I: CHECKS AND BALANCES NA IDEOLOGIA ISLAMISTA 1.1 CONCEITOS TEMÁTICOS 1.1 CONCEITOS TEMÁTICOS

1.6. DA DAWAH À JIHAD: HETEROGENEIDADE ISLAMISTA

1.6.2. ISLAMISMO CAPITALISTA E ISLAMISMO MULTICULTURALISTA

Continuadamente, diversos académicos têm alertado para o perigo que as facetas menos visíveis do Islamismo radical poderão colocar às sociedades “abertas ocidentais”78

e ao “Islão aberto”79. Assim, é nossa convicção, que uma visão integral da ameaça na

Europa e, mais particularmente na Península Ibérica, enfrenta a inclusão do estudo destas variantes, o que se torna fundamental.

O conceito de “islamista contrariado” de Haenni (2005) está na base da construção dos termos Islamismo capitalista e Islamismo multiculturalista. Segundo o autor, o descontentamento de alguns islamistas radicais levou a uma reconfiguração do seu plano de ação. Não abandonando as organizações, estes islamistas continuam profundamente religiosos, mas empenhados não num projeto islâmico global, mas antes numa islamização de vários elementos das sociedades ocidentais (Haenni, 2005).

A Turquia figura como caso único no panorama muçulmano. Cidades como Kayseri na Anatólia Central tornaram-se nas últimas três décadas modelo-padrão em termos de vitalidade económica. Num estudo do European Stability Initiative (ESI)80, o enriquecimento

destas urbes turcas foi explicado pelo empreendedorismo do que Knaus intitulou de “calvinistas islâmicos”81 (Knaus, 2005). Ironicamente, a população turca, tal como a maioria

dos muçulmanos, desconhece por completo Max Weber. Aliás, o mundo muçulmano não conheceu os valores do Humanismo, Iluminismo, ou sequer do individualismo e do autonomismo europeu (Langman e Morris, 2002). De resto, o Renascimento Árabe por comparação à Renascença Europeia, nunca teve lugar.

A explicação mais lógica seria o facto da criação da república turca moldada ao estilo europeu, com a religião subordinada ao Estado, ter obrigado islamistas a

76

Vide Anexo V.

77 Tradução da nossa responsabilidade. 78

Para a definição do conceito de sociedade aberta, consulte-se Karl Popper (2012), A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, Volume I: O Sortilégio de Platão.

79

Vide Daniel Pipes (2009), “Islamismo 2.0” ou Bassam Tibi (1997), The challenge of Fundamentalism: Political Islam and the New World Disorder.

80

Vide Gerald Knaus (2005) “Islamic Calvinists: Change and conservatism in Central Anatolia”.

81

Em referência ao ensaio de 1905 de Max Weber onde o autor alemão associa a ascensão do modelo capitalista à ética protestante.

24 encontrarem espaço de progressão nas atividades económico-empresariais (anteriormente profissão dos dhimmi)82, em virtude de terem os empregos públicos vedados. Outra explicação lógica seria a tentativa de imposição de uma economia de base religiosa através do chamado “dinheiro verde”83 pelo governo do Partido da Justiça e

Desenvolvimento (AKP)84 (Fernandes, 2006).

Apesar desta explicação poder ser considerada excessiva, se atentarmos no passado político de líderes do APK como Recep Tayyip Erdoğan (primeiro-ministro), Abdullah Gül85 ou Bülent Arinç86 verificamos que todos eram membros do Refah Partisi

(Partido do Bem-Estar ou Prosperidade) de Necmettin Erbakan, o primeiro partido islamista a liderar um governo na história da República Turca (1996-1997). Atualmente, a estratégia do AKP é mais eficiente e cautelosa do que a seguida pelo Refah Partisi de Erbakan. Recep Erdoğan continua a estratégia de islamização da sociedade e do Estado laico turco, mas sem cair na tentação de atacar o establishment demasiado cedo87.

A estratégia política do AKP é resultado da influência preconizada por Fethullah Gülen88 na década de noventa e início do século XXI, um defensor do capitalismo e da

democracia europeia. A política turca do século XXI é assim o resultado da influência dos islamistas reformadores encabeçados pelo AKP, dos seguidores do Movimento Gülen e dos homens de negócio turcos mais conservadores. A convergência destes três atores culmina na “Terceira via”, o “Islão de Mercado” de Haenni89 (Maigre, 2007) ou por outro

lado no “Islão civil” (Yilmaz, 2011).

A doutrina fethullahista, à semelhança da política seguida pelo AKP, deixa dúvidas quanto à veracidade das suas iniciativas. Krespin (2009) acusa o fundador do maior movimento muçulmano sunita na Turquia de controlar os meios de comunicação, a polícia, o poder judicial e o sistema educacional, naquilo que caracteriza como um retrocesso dos valores liberais do Ocidente e, uma maior aproximação à ideologia islamista e organizações terroristas como o Hamas e Hezbollah (Krespin, 2009).

82

Vide glossário.

83 Vide

Michael Rubin (2005), “Green Money, Islamist Politics in Turquey”. Middle East Quarterly.

84

Em turco, Adalet ve Kalkınma Partisi. O AKP é o sucessor do antigo grupo islamista radical Milli Görüs e, do Refah Partisi. Neste contexto, vide J.M.A.H. Maessen (2012), “Reassessing Turkish National Memory: the AKP and the Nation. An analysis of the representation of Turkish national memory and identity by the AKP.

85

Atualmente presidente da República Turca.

86 A desempenhar funções de vice primeiro-ministro turco. 87

Ao contrário do seu percussor, Erdoğan procurou cuidadosamente alastrar a sua influência junto dos principais atores sociais: do poder judicial aos tecnocratas turcos, do controlo sob os media, universidades e restante sistema educativo e, finalmente, ao exército turco.

88 O Movimento Gülen caracterizava-se pelo seu pragmatismo. Defendia a adaptação da Turquia aos tempos

atuais e utilização do poder da globalização para difundir os fundamentos islâmicos. A oposição secularista da Turquia acusa o Movimento Gülen e o AKP de afastarem a Tuquia dos valores democráticos europeus (Lopes, 2010).

89

Segundo o autor, o conceito consiste na cultura nascida na época da globalização, fruto da aliança entre o poderio económico/financeiro do capitalismo ocidental com os princípios islâmicos (Haenni, 2005).

25 Por outro lado, Koç contrapõe a falta de rigor científico da acusação de Rachel Krespin, justificando o facto com uma tentativa grosseira por parte da autora de denegrir as ações e políticas seguidas pelo Movimento Gülen e pelo AKP (Koç, 2010). Se nos demorarmos nas críticas de Koç, verificamos que existem claramente incongruências entre os dados apresentados por Krespin (2009), mas a dúvida quanto às verdadeiras intenções do Movimento Gülen e do AKP permanecem90.

Em síntese, o Islamismo capitalista resulta numa conjugação da vontade de enriquecimento através do capitalismo europeu e da islamização de normas sociais e políticas. Revela uma maior sofisticação em relação ao radicalismo islamista e prossegue objetivos menos onerosos possibilitados pelo enriquecimento burguês do mercado e pelo capitalismo.

A versão multiculturalista da ideologia islamista conta com a particularidade de ter surgido com a segunda e terceira gerações das comunidades islâmicas presentes na Europa. Tal como o Islamismo capitalista, ou mesmo o Islamismo radical jihadista, as suas verdadeiras intenções nem sempre são perfeitamente tangíveis. Ainda assim, esforça-se por apresentar uma posição próxima dos ideais europeus. Por conseguinte, a sua ação tem garantido uma aproximação às fontes de poder europeu, reservando um lugar de destaque a nível político/religioso e ganho avanço aos seus adversários históricos, os muçulmanos laicos.

Funcionando como ponte entre os partidos políticos europeus e os milhões de eleitores muçulmanos europeus, o Islamismo multiculturalista fica em posição de reivindicar medidas ao poder político para colocar em marcha os seus planos naquela que poderia ser intitulada de “terceira invasão muçulmana”91 (Fourest, 2005). Se alguém

eventualmente considerar este título como sendo exagerado, aconselha-se a leitura atenta de textos e declarações de alguns dos representantes do movimento92. Como exemplo,

atente-se nestas declarações de Yusuf al-Qaradawi93:

O Islão entrou por duas vezes na Europa e duas vezes a deixou (...). Talvez a próxima conquista, com a vontade de Alá, se faça pela predicação e pela ideologia (Qaradawi, 2002 in MEMRI).

90

Vide Dogan Koç (2010). “Fethullah Gülen's Grand Ambition: A Biased, Selective, Misleading, Misrepresentative and Miscalculated Article”.

91

Os muçulmanos já invadiram a Europa por duas vezes. A primeira foi travada nos campos francos entre Poitiers e Tours, em 732, por Charles Martel. Leia-se que se não tivessem sido travados pelos francos, a história teria tomado outros contornos. Aliás, não é por acaso que esta batalha é considerada uma das quinze mais importantes da história (Creasy, 2008). A segunda invasão deu-se por duas vezes, isto é, em 1529 e 1683, os Otomanos estiveram às portas de Viena, tendo sido sempre derrotados, quer pela doença, quer por reforços do império polaco-lituano (David, 2012; Huntington, 1993: 31).

92

Vide Anexo V.

93

Presidente da União Mundial de Sábios Islâmicos (UMSI), do Conselho Europeu para a Fatwa e Pesquisa (CEFP), preponderante na IM, e em vários sites e programas televisivos onde apresenta as suas fatwas.

26 Aproveitando-se da sua influência, instituições como a Fundação Islâmica de Leicester (IFL), a Muslim Educational Trust (MET) e indivíduos como Tariq Ramadan esforçam-se por criar uma cidadania muçulmana europeia em que os valores dos países de acolhimento são preteridos aos valores islâmicos, numa lógica de “cidadania diferenciada” (Fernandes, 2006: 73). Ironicamente, o Islamismo, ideologia teocrática e totalitária, alimenta-se das facilidades e liberdades concedidas por uma ideologia europeia, o Multiculturalismo.

Na Europa, estes grupos salafistas, que partilham a hegemonia com a IM e o

Tablighi, pregadores das vicissitudes da sociedade ocidental, defendem a necessidade das

diásporas islâmicas se afastarem da sociedade e se reunirem na Umma. São os principais desestabilizadores da “integração cultural e política das populações muçulmanas nas sociedades europeias nas quais se estabeleceram” (ICG, 2005: 13).

Concluindo, desta forma são-nos mais percetíveis as causas e as bases em que assentam a ideologia islamista. O primeiro passo para um completo entendimento da realidade do terrorismo doméstico islamista em solo europeu está terminado. Importa agora estudar o sistema al-Qaeda, estrutura e suas formas de atuação. Apesar de exaustivo, este conhecimento da ideologia islamista, dos seus desenvolvimentos e características é fulcral para uma correta e completa aceção do Jihadismo global, não fossem estes grupos meros resultados do desenvolvimento islamista do século XX.

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