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O DESAFIO DA IDEOLOGIA ISLAMISTA AO MUNDO MODERNO

CAPÍTULO I: CHECKS AND BALANCES NA IDEOLOGIA ISLAMISTA 1.1 CONCEITOS TEMÁTICOS 1.1 CONCEITOS TEMÁTICOS

1.5. O DESAFIO DA IDEOLOGIA ISLAMISTA AO MUNDO MODERNO

Porventura mais importante do que estudar fatores económicos ou sociais que possam patrocinar o terrorismo, importa compreender a essência da sua ideologia, garante e mote de legitimidade. Como se depreende pela etimologia do próprio vocábulo, o Islamismo é construído por características próprias da religião (Islão) e da ideologia (sufixo –ismo).

O Islão é uma religião antiga, com um percurso vagamente delineado, com constantes diferenças no Corão. O texto sagrado é dividido em dois períodos muito

49 Na opinião de El Sherif (2006) e Bayat (2005) uma prematura atribuição de “sentença de morte” à ideologia

islamista deve ser condenada. Para além da inconsistência científica desta tese, os autores atribuem o pós- Islamismo a uma mera transformação ou adaptação dos ideais islamistas às realidades sociais num mundo globalizado, pelo que o Islamismo se tornou sinónimo de democratização, direito e liberdades. Constitui, na sua visão, uma aproximação da doutrina islamista aos ideais das sociedades livres do mundo ocidental (Sherif, 2006; Bayat, 2005).

50 A camuflagem ou taqiyah, é uma prática ancestral islâmica de dissimulação, historicamente religiosa, que

16 distintos: o período de Meca (610-622): “A ti a tua religião, e a mim a minha religião” (Corão, 109: 6); e o período de Medina (622-632): “E matem-nos onde quer que os encontrem, e expulsem-nos dos lugares de onde vos expulsaram, porque a perseguição é pior que a chacina” (Corão, 2: 191). Enquanto o primeiro período é mais moderado e tolerante, o período de Medina pode ser encarado como o período radical do Islão. A maioria dos muçulmanos diz-se seguidora de ambos os períodos, porquanto os muçulmanos culturais51 se dizem seguidores do período de Meca. Já os islamistas são

seguidores veementes do período de Medina (Mozaffari, 2007).

Relativamente à ideologia, esta tem provado ser um valioso utensílio ao serviço dos sistemas totalitários no que concerne à mobilização das massas e seu controlo pelos governantes. O Islamismo recorre à sacralização da ideologia, reunindo elementos religiosos, principalmente do período de Medina, para a legitimação das suas ações. Assim sendo, qualquer islamista deve obediência tanto ao seu líder como a Allah. Mas o Islamismo foi mais longe. Mais do que se legitimar nos textos islâmicos, subverte-os, transformando-os conforme as necessidades próprias.

Desta forma, o Islamismo deve ser incluído no rol de ideologias totalitárias, uma vez que o seu âmbito se expande a todas as particularidades da vida em sociedade (Clemente, 2008). Dado que a sua influência não se esgota no plano religioso, mas se transfere para todos os campos sociais, desde a alimentação, ao casamento, ao estatuto da mulher, às diversões sociais e à família, o Islão, nas palavras de Samir (2001), é apelidado por din

wa-dunya wa-dawla, isto é, religião, sociedade e Estado” (Samir, 2001 [2003] in

Fernandes, 2006: 26).

Outra característica vincada do Islamismo é a sua universalidade. Ressalvando-nos nos escritos de um já referido percursor do movimento, Mawdudi52 declara que o Islão não

se esgota no território muçulmano mas que as suas pretensões são globais53, “o Islão

reclama a terra – não apenas uma porção mas todo o planeta”54 (Mawdudi, 1973: 66-69).

Para isso, proclama a aplicação literalista da lei islâmica. A Shariah deve ser seguida na sua totalidade, com rigor e sem qualquer desvio das normas prescritas.

51

Este conceito foi criado por Ruthven (2000), referindo-se a todo o crente muçulmano. Baseia-se numa separação lógica entre fiéis muçulmanos e islamistas, numa dialética omissa de uma categoria moderada num modelo-tipo paradigmático do Islamismo.

52 Vide Anexo III. 53

Aliás, o termo pan-Islamismo, por via da adição dos conceitos de jihad e Umma, tem norteado a ação e evolução islâmica ao longo dos tempos.

54

17

1.5.1. A JIHAD NA DISTORÇÃO ISLAMISTA DO ISLÃO

Na Idade Moderna, o Islão tem perdido espaço perante uma ideologia totalitária que faz interpretações seletivas conforme os seus fins. Uma religião prolífera na aquisição de conhecimento encontra-se em risco de se ver suplantada por projetos de pensadores radicais, que mais não têm feito do que tornar o Islão num dogma de intolerância e ódio.

Enquanto Direito holístico que é, o Islão tem quatro fontes diretas de direito. Por ordem crescente de importância será o Corão, o texto religioso por excelência; a Sunnah que contém a coletânea de ditos e feitos de Maomé (Hadith) vistos como exemplo; a Ijma traduz-se no consenso da comunidade muçulmana e serve para reforçar a Sunnah; e por último, a Qiyas, uma decisão pessoal por analogia (Cardoso, 2012). Outra fonte importante será o Ijtihad, entendido como a interpretação pessoal, independente das normas legais islâmicas. Esta última constitui-se enquanto fonte indireta do direito islâmico (Silva, 2011). Ora, tradicionalmente o Corão foi sempre encarado como uma “constituição divina” mas as suas lacunas eram ocupadas por legislação subsidiária criada para suprimir determinado problema em determinada altura, ou seja, existia uma coerência temporal lógica e prática. Na verdade, para além da inexistente procura pelo conhecimento presente no discurso e pensamento islamista, toda e qualquer legislação que não emanada pelo Corão foi posta de lado por não cumprir os requisitos islamistas. Ao longo das últimas décadas, o lado pacifista do Corão tem vindo a ser colocado de lado.

Um exemplo claro desta “aberração” do texto sagrado contempla-se no recurso à

jihad para a conversão forçada dos descrentes. O Corão refere explicitamente que só

deverá ser utilizada a força quando um muçulmano se vir atacado em razão da sua religião ou para efeitos de expulsão da sua terra natal (Corão: 5: 33).

De uma forma mais sistematizada, Mahmoud e Ahmad Sadri (2000) separam aquilo que denominam por Islão da verdade do Islão de identidade55. Enquanto o primeiro é

compatível com outras existências e identidades, o último é por natureza bélico e agressivo. É o “Islão da paz” em oposição ao “Islão da guerra” (Mahmoud e Ahmad Sadri, 2000: 24). As declarações públicas de um dos mais proeminentes rostos da ideologia islamista, Osama bin Laden, são demonstrativas56. O seu discurso é o resultado da

convergência de ideias radicais com escritos corânicos antigos, em desuso e construídos para realidades concretas. “Ele sequestra o Islão, usando doutrina islâmica e lei para legitimar o terrorismo”57 (Esposito, 2002: 22).

55

Tradução da nossa responsabilidade.

56 Vide Anexo V. 57

18 Uma forma de procedermos automaticamente à distinção entre um moderado e um extremista é através da sua conceção de jihad58. Ao contrário da comum tradução de “jihad” enquanto “guerra santa”, a palavra tem o significado de exortação missionária. Era dever dos muçulmanos expandir a sua fé, espalhando a mensagem de Allah pelo mundo, encetando esforços na construção de uma Dar al-Salam59 à escala global. A simples resistência dos povos à submissão a Deus60 tornaria legítimo empregar não a guerra, mas

a jihad como forma de estabilizar a dawah islâmica (Tibi, 1997).

Na idealização islâmica, a jihad contém não só objetivos religiosos como políticos. A jihad é utilizada como instrumento para o estabelecimento do domínio islâmico, isto é, a criação de uma ordem política e social islâmica para além da supressão de outras fés. Conforme a altura e a necessidade, o conceito de jihad tende a variar. Na religião islâmica existem quatro principais tipos de jihad.

Tabela I: Principais variantes da jihad islâmica

Jihad al-akbar Traduzida enquanto jihad maior, jihad interior ou social.

Consiste num incessante esforço individual de aprimoramento.

Jihad ash-Shaitan Jihad religiosa. Luta contra o Diabo e as tentações (pecados). Jihad al-Kuffar wal-

Munafiqeen

Jihad económica. Consiste num espírito de solidariedade e caridade com os pobres e subjugados da sociedade.

Jihad al-ashgar

Jihad física ou menor. Empregada contra todos os que impeçam muçulmanos de servirem Deus, pessoas de conhecerem o Islão, ataquem países islâmicos ou que oprimam islamitas.

Fonte: Manzoor Elahi (2013).

Na tradição islâmica, este não era um dever individual (fard al-ayn) mas um dever comunitário (fard al-kifayah). Só em situações de invasão ao território islâmico, se tornaria um dever de cada muçulmano (Knapp, 2003).

Enquanto guerra, é na jihad menor que as comunidades islâmicas se têm influenciado ao longo da sua história, desde a batalha de Badr61, travada em 624 d.C., até

às lutas de independência de inícios e meados do século XX. Durante os califados islâmicos, este tipo de jihad assumia uma postura externa (jihad ofensiva), na medida em que era conduzida não para defesa dos territórios islâmicos (jihad defensiva), mas para expansão territorial, sob o direto comando do Califa (Wiktorowicz, 2005). Ainda que fosse

58 Tal como na guerra, conhecer o nosso inimigo, saber como ele pensa e quais são os seus objetivos, torna-

se vital para uma política de defesa e prevenção eficaz, de forma a conseguirmos proteger os cidadãos em particular e a sociedade em geral.

59

Sinónimo de Dar al Islam, “Casa do Islão” ou “Casa da Paz”.

60 O Islão significa submissão a Deus. 61

Batalha que marca o início da expansão islâmica, depois de vencida a oposição em Meca. A vitória das forças de Maomé e seguidores de Medina contra o exército de Meca, comandado por Abu Jahl, foi atribuída à intervenção divina. Vide Anexo I, p. 94.

19 possível encetar a guerra em nome da jihad islâmica, esta teria de ser justa, proporcional e de acordo com as regras islâmicas. Mais tarde, a ideologia islamista iria proceder a uma total reconfiguração das especificidades do conceito de jihad.

Conhecidos teólogos e doutrinários islâmicos, como Ibn Taymiyya e al-Wahhab62

cedo começaram a demonstrar a sua aversão e descontentamento com o que entendiam ser uma aberração do modus vivendi islâmico. Para estes ideólogos, era necessário regressar aos moldes do “Islão puro”, dos tempos do Profeta e dos Rashidun63.

Nas décadas de sessenta e setenta do século XX assistiu-se a uma radicalização do movimento islamista, cada vez mais intolerante para o que diziam ser uma invasão ocidental e corrupção dos valores islâmicos64. Para estes, a jihad deixava de consistir

numa luta individual pelo aprimorar da alma e guerra defensiva do povo muçulmano para

vestir o papel de luta armada contra o governo de apóstatas e controlo ocidental65. Mais

tarde, grupos islamistas radicais como a al-Qaeda iriam suportar-se na visão maniqueísta do mundo, sobretudo como forma de suporte às suas ações terroristas contra os inimigos do Islão66. O conceito de origem islâmica vai ser adulterado no seu significado. De

obrigação coletiva, torna-se uma obrigação individual (Mawdudi, 1973; Azzam, 2001; Kepel e Milelli, 2008).

Atualmente, a obrigação da jihad mantém-se enquanto dever individual até à libertação do último pedaço de território que esteve sob poder muçulmano mas que foi ocupado pelos descrentes67 (Azzam68, 2001:

25).

Com a declaração da Frente Mundial Islâmica para a Jihad contra os Judeus e

Cruzados em 1998, a jihad tomava a forma de esforço armado contra americanos e seus

aliados. Era o prelúdio de uma luta transnacional, a jihad global.

62 Vide Anexo III. 63

Sobre os Rashidun, em português “antepassados pios”, vide glossário.

64

Vide Anexo IV.

65 Segundo Lewis (2001), dos quatro inimigos legais do Islão (infiéis, bandidos, rebeldes e apóstatas), os

infiéis e os apóstatas serão os supremos inimigos.

66 O egípcio Muhammad al-Faraj (1986), membro e conhecido doutrinário da jihad islamista, refere na sua

obra-prima – al-Faridah al-Ghaiba66

- a necessidade de recuperar a verdadeira essência do conceito, incorporá-lo nos pilares islâmicos e, dessa forma, edificar a guerra contra os governantes apóstatas (Faraj, 1986; McGregor, 2003).

67 Recorde-se que a Península Ibérica foi território islâmico (exceto Astúrias, e perdendo gradualmente ao

longo da Reconquista Cristã) desde o ano 711 d.C. até 1492 d.C., na queda do reino de Granada às mãos dos reis Católicos Fernando e Isabel (Padgens, 2009: 183-216). O al-Ândalus faz parte da agenda islamista (Kepel, 2005).

68 Abdullah Azzam foi fundador do Hamas, professor de bin Laden na faculdade rei Abdulaziz, membro da IM

20

Matar americanos e os seus aliados, civis e militares, é um dever individual de todo o muçulmano capaz, em todos os países em que seja possível, até que a mesquita de Al-Aqsa (Jerusalém) e a mesquita de Masjid al-Haram (Meca) sejam libertadas do seu domínio (Bin

Laden et al., 1998).