• Nenhum resultado encontrado

4.5. O BSERVAÇÃO DO DISCURSO SOB UMA DETERMINADA LUZ CONCEITUAL

4.5.1. D ISPUTA DE HEGEMONIA E GUERRA CULTURAL EM TEMPO DE INTERREGNO

Em nossa percepção, as eleições brasileiras de 2018 são parte de um contexto sociopolítico de recomposição de blocos de poder na sociedade brasileira, onde grupos de extrema-direita, aqui representados na candidatura de Jair Bolsonaro ( como já debatido no capítulo 3 desta dissertação), a partir da invulgar mescla de uma agenda económica liberal com pautas antiliberais relacionadas aos modos de vida e liberdade individuais e políticas – bem como no negacionismo dos valores progressistas e das esquerdas –, assim como da disputa do aparato coercitivo de Estado, buscam se conformar como setor dirigente do bloco hegemônico da sociedade civil.

Entramos, portanto, em dois pontos presentes na tradição gramsciana, que nos parecem elucidativos na interpretação do significado do sujeito político Jair Bolsonaro e de sua prática discursiva: o conceito de disputa de hegemonia, aplicado a partir da realidade brasileira, e a compreensão de que se vive no Brasil um período de interregno.

O filósofo marxista Antônio Gramsci propõe em suas teses o conceito de hegemonia, o qual podemos sintetizar como sendo “a conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras” (Moraes, 2010:54). Esta construção de consenso envolve, além de bases económicas, entrechoques de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política, como aponta Moraes (2010).

Para Paiva, “a ideia de hegemonia, a partir de Gramsci, permite vislumbrar a coexistência de outras determinantes como a cultura, a produção da fantasia, a arte, a religião, a filosofia e a ciência que se articulam junto à política e à economia para a produção de um pensamento determinante e dominante” (Paiva, 2001:02). Podemos então apontar que a ideia de disputa de hegemonia, por Gramsci, extrapola a perspectiva do controle do aparato estatal (ou esfera da sociedade política), mas está também nos valores culturais que se estabelecem a partir da esfera da sociedade civil.

Em Gramsci, o terreno prioritário da luta por hegemonia é a própria sociedade civil, determinante para estabelecer domínio de um bloco sobre o outro, a partir de consensos. Como descreve Rita Ciotta:

A hegemonia é, assim, a capacidade de criar consenso e alianças durante o processo revolucionário e durante a governação dum Estado. E o território em que se desenvolve a luta por hegemonia é o terreno da ‘sociedade civil’, elemento fundamental onde vivem e se produzem as superestruturas

82 ideológicas, morais, religiosas e dos costumes. É nesse território que se deve trabalhar, já que o

Estado é composto pela união entre a sociedade política e a civil, formando uma ‘hegemonia couraçada de coerção’. (Ciotta, 2017: 17).

Já o interregno é classificado por Gramsci (2017) como um momento histórico onde a classe dominante não mais consegue exercer o consenso da sociedade civil, não sendo mais “dirigente”, tornando- se apenas “dominadora”, restando-lhe o apenas o controle do aparato coercitivo.

Gramsci descreve este momento como uma configuração onde “o velho morre e o novo não consegue nascer” (Gramsci, 2017: 18), quando a disputa por hegemonia no interior da sociedade civil se intensifica, deslocando o consenso como fundamento principal desta disputa para a tentativa de materialização de um polo que sustente a velha ideologia, ainda que arbitrária28, e que seja capaz de garantir a sustentação de um novo bloco dirigente, responsável por assegurar os privilégios da mesma classe dominante, ou de uma fração desta, acentuando os aspectos mais regressivos das ideologias dominantes, em contraposição aos valores progressistas que, em alguma medida, possam estabelecer uma nova cultura e um novo bloco dirigente.

No capítulo 2 desta dissertação observamos que a entrada do PT como partido dirigente do Estado brasileiro não representou um marco de ruptura da velha ordem, mas sim uma mediação ou conciliação de interesses de classes diferentes, estabelecendo um novo consenso, a partir de concessões aos setores historicamente mais penalizados da sociedade, sem que isto afetasse privilégios da classe dominante, e até lhes garantindo novos ganhos.

Quando se estabelece o ciclo de crises que culminaram no fim dos governos do PT, há uma ruptura deste consenso na sociedade civil, conflitando-o com setores importantes da classe dominante, que veem a sua própria estabilidade em risco, o que desabona a continuidade do partido exercendo a direção do bloco dirigente.

Nota-se que – como vimos no capítulo 3 deste trabalho –, com a reorganização da extrema-direita, há uma reconfiguração da sua perspectiva de atuação: no Brasil, percebemos que esta busca estender sua influência social através da disputa de valores culturais, em contraofensiva a uma suposta “guerra cultural” construída pela esquerda, permanente e invisível, a partir da concepção Gramsciana, que pretende derrotar o capitalismo através da destruição da cultura e dos valores da sociedade judaico-cristã ocidental.

28 Gramsci distingue ideologias historicamente orgânicas das arbitrárias, considerando: “ideologias historicamente orgânicas, que são necessárias para uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalistas, “voluntárias”. Enquanto historicamente necessárias, elas têm uma validade que é “validade psicológica”, “organizam” as massas humanas, formam territórios em que os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc. Enquanto “arbitrárias”, só criam “movimentos” individuais, polémicas, etc” (Gramsci 2017:84).

83 É desta forma que o ideólogo de extrema-direita brasileiro, Olavo de Carvalho, descreve o efeito do que seria esta guerra cultural:

Todos sofrem o seu impacto e são profundamente alterados no curso do processo, inclusive nas suas reações mais íntimas e pessoais, mas geralmente atribuem esse efeito à espontaneidade do processo histórico ou a uma fatalidade inerente à natureza das coisas, sem ter a menor ideia de que até mesmo essa reação foi calculada e produzida de antemão por planejadores estratégicos. (Carvalho, 2013:140)

Para Carvalho (2013) este estratagema seria constituído por uma camada de intelectuais, estudiosos e artistas e que se alimentaria do medo da ridicularização imposta ao discordante.

Já Gallego et al (2017) destacam que, para alguns autores, a gênese que marcaria esta guerra cultural seria a reação ao questionamento político das normas sociais pela contracultura dos anos 1970, ou a fratura das identidades coletivas, proposta pelos novos movimentos sociais e pelo discurso pós-moderno; no entanto, independente da origem, a reorganização do discurso político se deu pelos conservadores, devendo ainda o campo progressista se adaptar ao novo terreno de disputa narrativa.

No estudo desenvolvido pelos pesquisadores sobre “guerras culturais” e “populismo anti-petista”, a partir da percepção dos participantes da manifestação em apoio à operação Lava Jato (com perfil mais identificado com a direita conservadora) e dos participantes da manifestação contra a reforma da previdência (identificados com a esquerda progressista), realizadas respectivamente nos dias 31 de março e 25 de março de 2017, Gallego et al (2017) demonstram que a polarização clássica entre a direita liberal, que defende a meritocracia baseada no livre comércio, e uma esquerda que defende intervenções políticas para promoção de justiça social, passa a ser subordinada ao antagonismo, por um lado, de um conservadorismo punitivo e, por outro, um progressismo compreensivo.

O mesmo estudo também conclui que:

Os manifestantes, que se identificam como progressistas ou de esquerda têm um padrão muito coeso de posições sobre questões morais referentes a mulheres, LGBT, drogas, população negra ou políticas de mobilidade social.[...] Os manifestantes que se definem como conservadores ou de direita, porém, não apresentam esse grau de homogeneidade como grupo e têm uma disparidade muito maior nas respostas referentes a questões morais. As caraterísticas comuns são o punitivismo, a rejeição às políticas públicas de mobilidade social e, fundamentalmente, o antipetismo, que é o fator que oferece maior coerência interna e identidade ao grupo (Gallego et

al, 2017: 6).

Como visto no capítulo 3, a nova direita, como indicado em Griffin (2007), teria promovido um revisionismo da sua estratégia de ação indicando a primazia da hegemonia cultural em relação à hegemonia política, tendo como prioridade a disputa da hegemonia da sociedade civil, a partir de movimentos populistas com peso eleitoral. A guerra cultural alardeada em Carvalho (2013) como uma estratégia da esquerda para

84 a conquista do poder de forma silenciosa e sem reação, torna-se a própria estratégia de nova extrema-direita brasileira, justificada pela contraofensiva desta tal guerra.

A questão é que a compreensão da disputa de hegemonia a partir da lógica de uma guerra passa pela ideia da aniquilação de um inimigo, independente das “armas” necessárias para avançar no “campo de batalha”. Como vimos no capítulo 4 deste trabalho, é possível notar no discurso de Jair Bolsonaro, ao longo de suas publicações no Twitter, uma busca permanente do conflito, que entre outros elementos se materializa também na construção de um inimigo interno que precisa ser derrotado:

“A questão ideológica é tão, ou mais grave, que a corrupção no Brasil. São dois males a ser combatido. O desaparelhamento do Estado, e o fim das indicações políticas, é o remédio que temos para salvar o Brasil” (publicada no dia 02/10/2018 às 11h:38min

http://twitter.com/jairbolsonaro/status/1047073236591235074)

Teles (2018) considera que a ideologia do inimigo interno é o pano de fundo da militarização na história recente brasileira, tendo sida elaborada na ditadura civil-militar e potencializada nas últimas décadas, a partir de uma concepção de segurança pública que se pauta na guerra ao inimigo, variando este inimigo desde o “bandido”, passando pelos militantes de movimentos sociais, jovens negro e pobres, loucos, e indo até pessoas LGBTs, indígenas e etc. Ou seja, trata-se também de uma guerra de subjetivação, “contra as subjetividades das experimentações práticas, dos habitantes dos morros e periferias, dos afetos proibidos e das anormalidades” (Teles, 2018: 83-85)

Para Teles (2018), a militarização vai além da presença de forças de segurança na esfera pública, refere-se também aos discursos, estratégias, instituições, arquiteturas, performances, entre outros artefatos que sejam capazes de estabelecer técnicas e tecnologias de condução das subjetividades.

Neste discurso militarizado, pautado pela guerra contra o inimigo interno, estabelecem-se dois lados opostos em conflito, em um dualismo entre bom e mau, criando-se “de um lado o ‘cidadão de bem’, trabalhador (ou proprietário) e ordeiro e, de outro, o vagabundo, vândalo, drogado, arruaceiro, o indivíduo fora das bordas do possível autorizado pela ordem. Por meio da combinação do medo com a percepção de uma força acima das leis, legitima-se a violência” (Teles, 2018:83-85).

O discurso de Jair Bolsonaro, na sua busca pelo conflito permanente, utiliza-se justamente desta violência legitimada, na imposição da normalidade, através da força e apoiada nas leis, para derrotar o que se construiu como sendo patológico para a sociedade, em sua “missão” de curar ou eliminar o que estorva o “povo”, como podemos observar no exemplo que segue:

“Meu adversário falou que vai combater o encarceramento e soltar criminosos da cadeia. Nossa preocupação e prioridade são as pessoas de bem. Falo desde sempre, prefiro uma cadeia lotada de criminosos do que um cemitério lotado de inocentes. Se faltar espaço, a gente constrói mais!”

(publicada no dia 09/10/2018 às 18h:13min

85 Assim podemos dizer que o discurso de Jair Bolsonaro, expresso nas publicações realizadas na sua conta no Twitter, é pautado por uma ideia de guerra cultural, tendo como norte estratégico a disputa de hegemonia na sociedade civil, para além da direção do aparato estatal (ou da esfera da sociedade política). No entanto, esta disputa de hegemonia se faz no contexto do interregno, quando o consenso já não é mais o fundamento principal dela, conduzindo-a pelo confronto entre os aspectos mais regressivos das ideologias dominantes e os valores progressivos que possam semear uma nova cultura e um novo bloco dirigente.