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1 SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA – PROJETO MEDIATO E

1.1 Projeto Mediato

1.1.1 Da Janela

O espetáculo foi concebido para o Projeto com foco em um público de jovens estudantes entre 14 e 18 anos. Não houve indicação de tema ou estética para a sua construção, apenas de faixa etária. Tendo em vista esse caráter de encomenda pude acompanhar parte do processo de criação, como forma de alimentar a pesquisa durante a concepção do treinamento e principalmente do caderno de mediação.

Inspirada na farsa Morte acidental de um anarquista, escrita em 1970 pelo dramaturgo italiano Dario Fo, o espetáculo, Da janela, criado pelo coletivo Calcanhar de Aquiles buscou construir um diálogo com acontecimentos de nosso país: a Ditadura Militar e as manifestações de junho de 2013. Estas se iniciaram com protestos contra o aumento da tarifa do transporte público nas principais capitais, os quais tiveram inicialmente a convocatória do Movimento Passe Livre (MPL) com a frase “Se a tarifa aumentar, São Paulo vai parar!” 13

O texto de Dario Fo faz referência a um fato que ocorreu em 1969 na Itália, quando uma bomba explodiu na Piazza Fontana, em Milão, provocando a morte de várias pessoas. Nesta circunstância, um anarquista, o ferroviário Giuseppe Pinelli, foi levado à delegacia, acusado pelo atentado, e lá supostamente cometeu suicídio, pulando pela janela. Constatou- se que ele já estava morto antes de “pular”, mas a versão do suicídio prevaleceu.

O ator e a atriz criaram, com o mesmo humor irônico e ácido do dramaturgo italiano, a peça Da janela. Esta se iniciava com a cena de um telejornal chamado “Sensacionalismo Geral”, no qual apresentador e repórter discutiam, com opiniões divergentes, sobre uma manifestação que acontecia nas ruas da capital naquele instante. Um segundo momento se deu com a adaptação do texto de Dario Fo para dois personagens: uma delegada e um louco. Este, em determinado momento, passou-se por juiz invertendo a situação em que ele era o inquirido para ser o inquiridor. Com isso o louco-juiz julgou o processo de um motorista de

transporte coletivo anarquista que supostamente ateou fogo em um ônibus e acabou tendo o mesmo destino do ferroviário Pinelli: o “suicídio”.

Ao término os artistas propuseram um bate-papo. Este momento consistia basicamente na revelação das especificidades do fazer teatral, em especial da peça Da janela, e no compartilhamento de percepções sobre a obra. Segundo um estudante “foi bem interessante o bate-papo depois do espetáculo, porque todo mundo estava curioso sobre como é que eles tinham feito, e sobre o que tinha acontecido”. E justifica: geralmente “acabou a peça, os atores saem, vai se trocar, a gente vai embora; e ai a gente não tem a curiosidade de saber como é que foi a preparação deles, como é que surgiu aquela peça, quem fez, como fez, como foi os ensaios, essas coisas assim.”14

A peça conquistou unanimemente os estudantes-espectadores, que responderam com risos, aplausos calorosos e comentários variados ao final. Embora fosse marcado pelo exagero, com situações absurdas, o espetáculo mantinha uma narrativa de fácil apreensão. Havia apresentação de um conflito, desenvolvimento e fechamento com solução; além de lugares reconhecíveis, como uma delegacia, um estúdio de televisão e uma rua (o que não significa a existência de cenário naturalista). Apresentava ainda elementos próximos ao cotidiano dos estudantes, o que permitiu certa empatia, pela via do reconhecimento. A familiaridade, portanto, já estava dada; o que levou os processos de mediação a se ocuparem com outras questões que não o preparar para o estranhamento. Essa constatação é importante para entender a partir de onde penso a mediação proposta neste trabalho. Pois a peça, e a relação que o público estabeleceu com ela, contribuiu para que eu concentrasse minha atenção no pós espetáculo.

No caso de obras que apresentam narrativa não linear, caracterizadas pela desconstrução, com cenas que funcionam isoladamente, mas que podem dialogar (ou não); nas quais a abstração é predominante, ou que não há personagens e locais reconhecíveis; neste caso a mediação atua de forma diferenciada. Ela deve se ocupar antecipadamente para que o estranhamento seja proveitoso, e não motivo de distanciamento. Pode ainda provocar posteriormente certa aproximação, muitas vezes pela via interpretativa; e também incentivar a criação, por parte do público, como desdobramento da apropriação anterior.

Essa foi, em muitos casos, minha prática como mediadora ao longo de alguns anos no CCBB Brasília, dentro do universo das Artes Visuais: primeiramente “contendo o

14 Trecho de entrevista realizada e São Sebastião-DF, em abril de 2015. Transcrição e original disponíveis

abandono”. Uso aqui uma expressão de Glauber de Abreu (2015) que considera que há situações em que o espectador pode abandonar a possibilidade de experiência com a obra; e a partir disso investiga tipos de abandono e cria princípios para contê-lo, colocando a mediação como espaço favorável para tal. Dessa forma, como mediadora no referido centro cultural, buscava provocar uma aproximação do que antes poderia parecer estranho, distante, diferente, feio, ou desinteressante; e posteriormente dilatar uma possível experiência, por meio de criações poéticas. Quando havia exposições de arte contemporânea o primeiro movimento (de contenção do abandono) era frequente, pois o choque com a obra gerava um alto índice de desistência, sobretudo com visitantes de primeira viagem.

Havia ainda outro tipo de distanciamento, além daquele do estranhamento, a ser contornado no espaço da galeria: era o da idolatria, quando o visitante colocava a obra em uma redoma simbólica15 chamada Obra de Arte e independentemente dos materiais, do

artista, do que conversássemos ali, e do que ele (público) sentisse, aquela obra ia continuar sendo intocável, pois ela já havia sido nomeada por alguém (importante) e por isso estava naquele lugar, o que provocava um imediato distanciamento, atrapalhando, muitas vezes, a experiência estética.

No CCBB observei também que a preocupação com o estranhamento era recorrente com determinada faixa etária. As exposições de arte contemporânea geralmente encontravam mais resistência com jovens e adultos, do que com crianças. Estas dificilmente apresentavam dificuldade em entender aqueles objetos como arte, ou demonstravam expectativas com suportes tradicionais. Em contraposição muitos jovens e adultos esperavam encontrar tinta sobre tela e/ou escultura naquele local, além de apresentar resistência (em alguns casos indignação), sobretudo com a arte conceitual, minimalista ou com objetos de arte que utilizavam materiais do nosso cotidiano (como linha, agulha, talheres, etc). Nestes casos, a mediação se dedicava, antes de qualquer coisa, a familiarizar. A abertura desse público infantil me fazia refletir sobre a perda de algo que nos era próprio: a capacidade de se relacionar com as complexidades do abstrato e do simbólico. O que me leva a pensar na necessidade de incentivar o contato com as artes como parte da rotina escolar desde a educação infantil, especialmente as artes pertencentes a esse regime estético, e inevitavelmente, penso a mediação como um caminho possível.

15 Sobre esse assunto ver Maria Beatriz de Medeiros (2005) em seu livro Aisthesis: estética, educação e

Enfim, seja um distanciamento por estranhamento ou por idolatria, não me preocupei com ele durante a execução e atual análise do Projeto Mediato porque a obra, como foi dito, aproximou o espectador imediatamente, a meu ver, pela via do cômico e do reconhecível. Se houve um distanciamento, foi de outra natureza, o que tratarei ao final do segundo capítulo, acerca da empatia ou da antipatia à mensagem política atrelada ao espetáculo e à fala da mediação.

Por isso, a análise do Projeto me levou a refletir o seguinte lugar para a mediação: o pré-espetáculo como dilatação dos sentidos para a experiência – sem uma preocupação de conter o abandono, justamente em função da relação do público com o espetáculo Da janela (o que não exclui a possibilidade de conter o abandono e dilatar os sentidos concomitantemente) – e o pós como dilatação de uma possível experiência com o espetáculo. Para afastar uma hipótese que poderia parecer decorrer das análises anteriores afirmo que a experiência não está posta, não é aferível, nem controlável, por isso mesmo, falo da dilatação (e da experiência) estritamente como possibilidade. De tal modo, pressupondo, no pós, que se houve uma experiência ela pode ser dilatada – mesmo sendo ela uma experiência de negação, de aversão, de desprazer.