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2 A MEDIAÇÃO COMO (DILATAÇÃO DA) EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

2.4 Possibilidades para a dilatação

2.4.2 Produção de Semelhança

Como vimos, a narrativa foi a primeira possibilidade elencada com capacidade dilatadora na mediação. A segunda, que pode vir dentro daquela, é a produção de semelhança. A ideia de “semelhança” como possibilidade de dilatar a experiência surgiu de uma prática recorrente dentro das galerias de arte. Enquanto mediadora costumava estimular o público a estabelecer relações entre as obras de uma mesma exposição, sendo elas de um único artista ou não. Sei que o trabalho curatorial já fez esse exercício cujo resultado estava ali reunido a nossa volta; mas o que intencionava era justamente propor que o espectador também fizesse o seu caminho de junção das obras, criando talvez um fio que as unisse, seja este fio marcado pela tensão das diferenças ou pelo consenso das semelhanças; aproximando obras de países, época ou artistas distintos. Esse exercício contribuía, inclusive, para a compreensão de um tempo-história que podia ser abordado de outra forma que não fosse pela sequencialidade cronológica.

Certa vez uma criança ao entrar na galeria do CCBB exclamou: “Nossa, isso parece Lygia Clark!”. O episódio, rememorado várias vezes pela equipe, nos chamou a atenção porque a criança conhecia as obras de Lygia Clark e também por ter criado espontaneamente

a relação a partir das obras de outra artista. Este exemplo, poderia dizer, se constitui como uma produção de semelhança.

De forma escorregadia a memória me trouxe à percepção a imagem da personagem G.H. enquanto lia O que vemos o que nos olha de Didi-Huberman para a escrita desta dissertação. Ou seja, fui presenteada com a literatura de Lispector (e compreendamos presenteada como regalada, mas também enquanto memória resgatada e tornada presente). Em um processo de síntese capturei essa imagem, rememorei a paixão de G.H., e a coloquei lado a lado com a experiência do olhar do autor. Acrescentei ainda lembranças de exposições de arte já experienciadas. A partir disso, passei a explorar, e diria até dilatar, o que havia de relação entre elas: me aproximando ora do que lia, ora do que rememorava, ora de ambos. Esse exercício que é da memória, e que é intelectual, digo se tratar de uma produção de semelhança.

Embora use a palavra “produção” o exercício não é de todo intencional e controlado. Pois é justamente a espontaneidade do surgimento da lembrança que propicia a relação. As semelhanças nos são dadas pela via da memória. Nossa experiência com a arte, de forma geral, se torna possível por uma construção da memória. Esta é constituída por nossas vivências e ao mesmo tempo é por meio dela que experienciamos as coisas, inclusive a arte. O que é a memória senão a insistência contra o esquecimento e o apagamento? O passado não existe a não ser enquanto imagem que nos é dada pela memória. O presente, pela sua perenidade intrínseca, já é memória, só de pensa-lo. Se o passado, e próprio presente, que já foi, se configuram como memória, estamos, inevitavelmente, sempre trabalhando com esta propriedade inacabada e em eterno movimento. Igualmente, é pela via da memória que a mediação vai trabalhar na produção de semelhanças.

Mas afinal, como provocar essa memória espontânea? Não podemos fazer a provocação a não ser proporcionando um ambiente favorável. O que se daria a meu ver com a própria mediação. Vejamos o trecho de uma fala ocorrida no pós-espetáculo.

Exemplo 3 – A mediadora distribuiu e apresentou o caderno de mediação, abrindo em uma página que continham referências de obras das Artes Visuais relacionadas à temática do espetáculo. Em um determinado momento da conversa um estudante comentou sobre uma música dos Racionais MC’s: “Tem uma música dos Racionais que fala sobre a vida de um cara, aí a polícia entra, mata ele dentro da casa dele. Aí aparece no outro dia: homem é encontrado morto [...] por acerto de contas.” E ainda, “Racionais é vida véi. É porque o povo acha que Racionais é música de bandido, mas não vê a letra.” (Informação verbal, Ceilândia-

DF, 2014). Mais adiante retomarei esse exemplo dentro do seu respectivo contexto. Por enquanto, deterei a atenção nesse pequeno trecho.

Podemos observar, neste caso, a mediação como um dilatador da capacidade de produzir semelhança entre duas formas de arte – o espetáculo assistido no dia anterior e uma música. O estudante, ao trazer um RAP durante o diálogo sobre o que foi vivenciado no dia anterior, afirma sua posição de interprete e construtor de sentido. Igualmente, contribui para o desenvolvimento da conversa, incentivando os colegas no estabelecimento de novas semelhanças entre produções artísticas. Cabe ressaltar que àquele momento o estudante não tinha visto no caderno a referência feita a outra música dos Racionais MC’s.

Há um agenciamento entre o que está sendo visto, falado, ouvido e feito no presente, com a memória. A lembrança de uma imagem-arte em associação com outra é também um exercício de síntese. No caso do estudante a síntese se deu em função da temática do espetáculo. Outros exemplos de semelhança também foram verificados no Projeto, mas todos tinham em comum a relação com o tema, que girava em torno de violência de Estado, manipulação midiática, repressão versus liberdade: assuntos presentes na peça.

Penso que esta é uma maneira mais simples de semelhança. Não disponho de exemplos do Mediato, mas ouso esboçar o que seria uma forma mais complexa. Relacionar duas obras por suas maneiras de lidar com determinado tema e não necessariamente pela temática. Ou ainda, encontrar semelhanças no que não está explícito nas obras. Exemplifico: a já citada obra Las meninas de Velásquez feita no século XVII mantém com as obras contemporâneas da exposição Ciclo: criar com o que temos uma semelhança que não é da ordem do tema, mas é da esfera do que há fora da obra, isto é, da esfera do espectador. O que elas mantem em comum é o olhar que lançam ao sujeito que está fora mas que pode estar dentro. Este seria um modo mais complexo de semelhança e que permitiria aos participantes explorar seus desdobramentos.

Vejamos, a mediação é um território fértil para a produção de semelhanças, criando ambiente para que a memória espontânea surja e seja, digamos, selecionada e explicitada pelo estudante para seus pares durante o processo pedagógico. Depois disso, teríamos um segundo momento em que a mediação instigaria um desdobramento juntamente aos outros espectadores. Essa exploração enriquece o diálogo e em última instância cria ambiente para novas semelhanças. Além disso, criar semelhanças é um exercício que faz relação com o ato interpretativo, que é próprio da mediação. Mas cabe ressaltar que a interpretação não é em

nenhuma instância (dentro das margens do que é considerado mediação neste trabalho) a busca por significados que por ventura residiriam na obra.

Neste caso, é necessário que a mediadora esteja atenta, e aberta, às semelhanças que surgem, isto é, que são criadas durante as ações. No exemplo acima, se a mediadora não tivesse reconhecido a referência apresentada pelo estudante como contribuição válida ao que estava sendo proposto, haveria um choque de intenções, uma vez que ele a reconhece como algo intrinsecamente ligado a sua existência, quando diz “Racionais é vida”. Mediadora e estudante caminharam na mesma direção em apoio mútuo. Se aquela rejeitasse, ou ignorasse, a semelhança colocada por este, subitamente eles passariam a caminhar em mãos opostas. Essa contramão certamente não estimularia a turma a buscar outras semelhanças.