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ORLANDO GROSSEGESSE Universidade do Minho

A vida cultural e a crítica evitam uma comparação entre Torga e Saramago apesar de chamar ambos ‘telúricos’ e ‘ibéricos’. O próprio Saramago fala quase nunca de Torga. No entanto, comprova-se uma relação de recepção produtiva a partir d’ Os Poemas Possíveis (1966) que glosam Poemas Ibéricos (versão definitiva em 1965). A «lição de coragem mental» de Unamuno bem como a ‘lição’ do próprio Torga ao publicar o Quarto Dia da Criação do Mundo (1939-40) revelam-se de maior importância para a génese do escritor Saramago em Manual de Pintura e Caligrafia (1977), com reflexos em O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Saramago quer inscrever o seu testemunho (vida e obra) na memória da inconformidade com os regimes de Franco e Salazar, tal como o fez Torga. A aproximação do perfil torguiano culmina n’ A Jangada de Pedra (1986), nomeadamente no ‘Adão ibérico’ Pedro Orce que sente tremer o chão peninsular debaixo dos pés.

Portuguese cultural expression and literary criticism avoid any comparison between Torga and Saramago, despite both being labeled as telluric and Iberian writers. Although Saramago himself rarely mentions Torga, there is clear evidence in his Poemas Possíveis (1966) of productive reception on Torga’s Poemas Ibéricos (complete version, ed. 1965). Unamuno’s «lesson of mental bravery» as well as Torga’s own ‘lesson’ given by writing and publishing his Quarto Dia da Criação do Mundo (1939-40) are most important for the emergence of Saramago as a non-conformist writer in Manual de Pintura e Caligrafia (1977), later echoing in his novel O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Like Torga, the younger Saramago wishes to bear witness to his own opposition to Franco and Salazar. Saramago comes even closer to Torga’s telluric and Iberian profile in his novel A Jangada de Pedra (1986), above all via the old man who feels the tremor of the Iberian soil beneath his feet.

Quando o Jornal de Letras, Artes e Ideias comemora, com edição especial de 14 de Agosto de 2007 (n.º 961, Ano XXVII), o centenário do nascimento de Miguel Torga, José Saramago está ausente –como autor e como referência.1 É mais uma prova do silêncio acerca de qualquer relacionamento ou comparação entre Torga e Saramago, guardado não só pelos dois autores, mas também pela crítica.2 No entanto, atribuem-se a ambos, ao longo dos anos, os mesmos epítetos de telúrico e ibérico. Esta afinidade é silenciada por um dogma de incomparabilidade que se baseia numa progressiva consagração de Torga,3 no que se refere à obra literária e ao seu contributo construtivo, muitas vezes lido conservador, para com o discurso da identidade portuguesa.

1Não dá o seu testemunho tal como Eduardo Lourenço, Guilherme d’Oliveira Martins, António Ramalho Eanes, Mário Soares ou Manuel Alegre, nem participa no inquérito «O que representa hoje Miguel Torga e qual a importância do escritor para si?», nem merece uma menção de comparação ou de confronto nos ensaios críticos de Carlos Reis, Fernando J.B. Martinho, Maria Alzira Seixo ou Maria Fernanda Abreu.

2A título de exemplo, no sentido inverso, Laura Fernanda Bulger (1997: 332) refere, como «vozes de autores-modelos» em Jangada de Pedra «uma constelação notável de que fazem parte Camões, Eça, Pessoa, Rodrigues Miguéis, Vergílio Ferreira, Antonio Machado e Unamuno», sem sequer mencionar Torga. Silva (2002: 113) sugere somente, numa nota de rodapé, o confronto da «personalidade» da Península Ibérica [no poema-pórtico «Ibéria» dos Poemas Ibéricos] com a que se encontra ficcionalmente retratada na obra de José Saramago Jangada de Pedra.»

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Sob o título «A maldição dos consagrados», Maria Alzira Seixo (2007: 11) afirma: «Torga, como Pessoa e Aquilino, é hoje um autor de certo modo maldito».

Esta incomparabilidade ficou recentemente confirmada quando Saramago, neste ano comemorativo, opinou que Portugal acabaria por se tornar uma província de Espanha e propôs a fusão num país chamado Ibéria para não ofender «os brios» dos portugueses, numa entrevista publicada em 15 de Julho de 2007 (Diário de Notícias). Um mês depois, no centenário do nascimento de Torga, em 12 de Agosto de 2007, é o poeta e político Manuel Alegre que utiliza o Iberismo torguiano para combater as ideias saramaguianas: «o Iberismo de Miguel Torga não põe em causa aquilo a que ele chamava a sua pátria cívica, nem a viabilidade e independência de Portugal, que é um dado adquirido». Deste modo, a conhecida exclamação «Meu pobre Portugal, há 800 anos a resistir às seduções de uma Espanha irresistível» de 23 de Setembro de 1961 (Diário IX, 1964: 984) enobrece um patriotismo light harmonizado com um iberismo light, politicamente mais correcto do que a proposta de uma federação ibérica, defendida por José Saramago, que já no século XIX não teve adeptos suficientes perante o quadro europeu de poderes estabelecidos, ficando por um «Iberismo cultural» (vd. Molina 1990). Em 4 de Setembro de 2007, tal proposta continua a ser classificada como absurda pelo Presidente da República, Cavaco Silva, quando interrogado por uma jornalista espanhola aquando da sua visita ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo.4 Tendo em conta este impacto mediático, a entrevista no Diário de Notícias pode ser considerada, de uma forma mais ou menos intencionada, o contributo de Saramago para este centenário. Quem leu e quem relê Torga, verifica logo que a Ibéria proposta por Saramago nasce do ideário torguiano. Por ocasião da entrada de Portugal e Espanha na Comunidade Europeia (posteriormente rebaptizada União Europeia), Torga fala do «perigo […] igual para todos os povos da Ibéria» (in Molina 1989), continuando a reivindicar um legado cultural e um destino comuns para os povos da Península como colectividade de nações, histórica

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«Basta conhecer a história de Portugal para dizer que essa hipótese é um total absurdo», respondeu Aníbal Cavaco Silva a uma questão colocada por uma jornalista da agência de notícias espanhola EFE.

e culturalmente unidas num espaço comum; daí a necessidade urgente de ultrapassar o «espírito centrípeto» de Castela5, mas também o desconhecimento cultural mútuo, com Torga lembrando a sua conhecida auto-definição no prólogo da edição espanhola de Bichos (1946: 242):

A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva, mas a minha pátria telúrica só termina nos Pirinéus. Tenho no peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade basca, dos perfumes do Levante e da lua da Andaluzia. Sou, pela graça da vida, peninsular. (Coimbra, 18 de Maio de 1944; Diário III, 1946) Desconhecemos se Torga leu A Jangada de Pedra.6 Não se pronunciou sobre este romance que pode ser entendido como transposição narrativa da sua definição plural ibero-cêntrica e como reposicionamento deste pequeno continente7 no meio do triângulo Europa–África–América (do Sul e do Norte), conforme a trans-ibericidade definida por Saramago (1988).

Os estudos de Claudius Armbruster sobre a construção da identidade ibérica nas literaturas espanhola e portuguesa, analisada sob uma perspectiva pós-colonial, devem ser dos poucos que se atrevem a juntar Torga e Saramago. A leitura comparativa, obviamente centrada nos Poemas Ibéricos e n’ A Jangada de Pedra, destaca aspectos em comum: refere a utopia portuguesa-galaica-andaluza de uma vida comunitária simples, de raízes telúricas, a

5 Cf. a lamentação sobre «Castela a centrípeta, Castela a dominadora, Castela a contraditória» no apontamento de 1 de Setembro de 1962 em Santa Tecla, La Guardia (Diário IX, 1964: 1009).

6 No entanto, é muito provável. Torga também leu História do Cerco de Lisboa (Vasconcelos 1989).

7 Torga afirma não só o conceito de nação no sentido romântico de nação-povo de Herder mas também a comparação da Península com um continente próprio: «Considero que os povos ibéricos são nações. São mais do que aglomerados de povos; quer dizer, nações. A Península funciona para mim como um continente. Os povos não têm fronteiras visíveis, mas têm fronteiras individuais e dentro delas são irredutíveis. Porque não há dúvida nenhuma de que o povo galego não tem nada a ver, mas mesmo nada, com o castelhano, nem o andaluz com o catalão, e o mesmo se aplica ao basco.» (in Molina 1989).

idealização de Andaluzia como berço da Ibéria (Diário VI, 1953) e a transposição intra-ibérica da História trágico-marítima e da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (Armbruster 1999: 1490-91). Na tentativa de definir as limitações e aporias da construção da identidade ibérica, Armbruster destaca em ambos a persistência de conceitos essencialistas da psicologia dos povos e a influência que, a seu ver, ainda exerce o discurso parcialmente irracional de Miguel de Unamuno e de Ángel Ganivet,8 portanto a herança da Geração de 98, sobre a visão de uma Ibéria autónoma, cuja definição telúrica culmina num sincretismo próprio entre pagão e cristão (ibid.: 1490; 1496-97). Estes elementos, aqui enumerados, sugerem uma relação de recepção produtiva, contudo não analisada por Armbruster.

Conforme a nossa tese, a génese do Saramago telúrico e ibérico passa pela leitura intensa de Torga. O silêncio acerca deste diálogo, precisamente por isso eloquente, é quebrado por um apontamento dos Cadernos de Lanzarote (Diário III), datado no dia da morte de Torga, em 17 de Janeiro de 1995, referindo não só uma leitura (sem especificar) e a ocasião perdida de um encontro em vida, mas também a união entre obra, homem e terra em Torga como algo superior e desejável:

Achava que havia em Torga algo que eu gostaria de ter, e não tinha: o direito ganho por uma obra com uma dimensão em todos os sentidos fora do comum, a música profunda de uma sabedoria que nascera da vida e que à vida voltava, para se tornarem ambas, mais ricas e generosas. Que Torga não era generoso, dizem-me. Mas eu falo de outra generosidade, a que se entranha nesse movimento de vaivém que em raríssimos casos une o homem à sua terra e a terra toda ao homem. (Cadernos III: 21-22)

O apontamento necrológico conclui, retomando o lugar-comum inicial «Sempre se morre demasiado cedo» com a afirmação «Demasiado cedo morre Miguel Torga», porque a «diferença entre

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Armbruster (1999: 1497) refere a transformação da península em isla já presente em Ganivet: «Somos una isla colocada en la conjunción de dos continentes».

estar morto Torga e estar Torga vivo» significa para Saramago a impossibilidade de realizar o desejo nunca antes expresso: «Compreendo agora quanto gostaria de tê-lo conhecido. Demasiado tarde.» (Cadernos III: 22).

Salvo erro, este apontamento é o único texto publicado que fala de Torga: um facto algo surpreendente, tendo em conta que Saramago se declara leitor mais do que ocasional dos livros dele; surpreende ainda que a admiração, embora parcial, não tenha motivado nunca um contacto directo, no âmbito da vida cultural portuguesa, ao longo de quase três décadas. Ponto inicial desta contagem é a (re-)entrada de Saramago na cena literária, em 1966, com o volume de poesia chamado Os Poemas Possíveis, um ano depois da publicação definitiva de Poemas Ibéricos de Miguel Torga.

Pelos motivos referidos, não existe análise acerca da presença de Torga em Saramago. No entanto, na recepção imediata d’ Os Poemas Possíveis não faltou a menção do nome de Torga, por exemplo numa breve resenha de António Paulouro, publicado no seu Jornal do Fundão, ao falar da «sombra ténue de Torga, Régio, Gedeão ou Reinaldo Ferreira (Paulouro 1966)». Saramago respondeu numa carta de 5 de Outubro de 1966, dizendo «Aceito o Torga, o Gedeão e o Régio (faltou-lhe mencionar o Sena), mas não posso aceitar a do Reinaldo Ferreira, porque só fiquei a conhecer a obra dele agora, […].» (in Ferreira 2002: 45). Posteriormente, só a influência de Régio é assumida, numa entrevista com Carlos Reis (1998: 110): «houve, de facto, uma coincidência entre a leitura do Filho do Homem de José Régio» e «uma experiência de ordem sentimental (1962-63, anterior a Isabel de Nóbrega)», «que me levou a escrever poesia». Esta auto-interpretação, na qual destaca o elemento feminino como espécie de catalisador da escrita, coaduna-se perfeitamente com constelações recorrentes nos romances, desde Manual de Pintura e Caligrafia (1977); no entanto, nenhuma palavra sobre Torga como referência relevante para a afirmação da incipiente auto-definição telúrica e ibérica n’ Os Poemas Possíveis.

A epígrafe, retirada dos Proverbios y cantares que Antonio Machado dedicara em 1919 a Ortega y Gasset, inaugura um relacionamento não só com a poesia mas também com a filosofia machadiana, nomeadamente com a teoria do apócrifo de Juan de Mairena, que será de influência decisiva na génese e na evolução da escrita saramaguiana no sentido da «profecia do passado» (Grossegesse 1999: 32-33) que se opõe aos conceitos petrificados de organização temporal e espacial da História. Neste sentido, o posterior romance A Jangada de Pedra constitui uma homenagem a Antonio Machado (vd. Grossegesse 2001), apelidado por Saramago, numa entrevista por ocasião do lançamento, «talvez o maior poeta deste século» (in Pedrosa 1986: 26). Tal como as implicações desta afirmação ficaram ignoradas –compreensivelmente, perante o discurso português de poética moderna fixada em Pessoa–, também o elo de alguns d’ Os Poemas Possíveis com Poemas Ibéricos de Torga passou desapercebido.9

Ao analisar esta intertextualidade não se trata de revelar em Saramago um Iberismo de segunda mão. Isto obedeceria ao pensamento romântico de originalidade ou à procura de plágio literário, ao estilo do século XIX. No entanto, podemos interpretar o silêncio de Saramago acerca de Torga como indício de uma auto-afirmação que prescinde da mão de um autor português contemporâneo, bem conhecido na vida literária portuguesa pelo seu Iberismo, para beber directamente nas fontes da cultura e literatura hispânicas e chegar a um conceito ibérico original. No entanto, este silêncio só abrange os comentários e entrevistas. A complexidade do texto literário é mais eloquente.

Na leitura machadiana de Saramago não se pode detectar o papel intermediário de Torga; no entanto, é manifesto na relevância de Unamuno, o que nos leva a rever os fundamentos da nossa interpretação da «profecia do passado» (Grossegesse 1999: 32-49) –

9Saramago preservou o ténue diálogo intertextual d’ Os Poemas Possíveis com Torga mesmo na sua reescrita destes poemas em 1980-81. Citaremos conforme esta edição de 1982 (curiosamente coincidindo com a 2ª edição dos Poemas Ibéricos), deixando uma análise comparativa com a primeira edição de 1966 para outra ocasião.

os centenários têm esta virtude das descobertas e redescobertas. O poema que Torga dedica a Unamuno parece-nos a chave não só para a leitura duma sequência de quatro d’ Os Poemas Possíveis, mas também –juntamente com o Quarto Dia da Criação do Mundo– para todo o significado que Unamuno adquire, servindo de exemplo proeminente na revisitação saramaguiana da teoria do apócrifo de Juan de Mairena. O retrato de Unamuno incluído no Quarto Dia da Criação do Mundo aquando da visita à cidade de Salamanca, refere (na segunda edição refundida de 1971, em maior pormenor) a «lição de coragem mental» (Torga 1991: 278) liricamente transfigurada no respectivo Poema Ibérico:

O grito de «morte à inteligência!», a que a estupidez fardada se atrevera na sua presença, quando, como reitor da Universidade, presidia a uma cerimónia oficial, recebera a resposta adequada:

– Este é o templo do intelecto, de que eu sou o sumo-sacerdote. Sois vós quem profanais os paços sagrados. Vencereis, porque possuis força bruta mais que suficiente. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir seria preciso possuirdes aquilo de que careceis nesta luta: razão e direito.

Custara-lhe a morte, o desagravo heróico. Mas redimira-o do erro lamentável de ter aderido momentaneamente à causa nacionalista. Fiel a si próprio, na hora crucial não hesitara. Entre o silêncio cobarde e a retórica conivente, escolhera o tom natural da sua voz: o protesto desassombrado. –Yo pertenezco al régimen eterno…– proclamara um dia. E nessa condição se finara, livre e reencontrado. Místico sem Deus, enraizado numa Espanha que lhe doía, atravessara os anos devorado pela fome do absoluto. E desse absoluto morrera sacramentado. (Torga 1991: 278-79)

Concordando plenamente com as observações de Maria Manuela Gouveia Delille acerca das duas edições do Quarto Dia, pensamos que não só a leitura da edição de 1971 mas também a memória das circunstâncias e consequências da sua primeira

publicação em 1939-40 (a denúncia, a apreensão do livro e a prisão do autor) se tornaram relevantes na demorada génese do «ensaio de romance» Manual de Pintura e Caligrafia, publicado em 1977. Antes de nos dedicarmos a esta influência, resta saber se Saramago, ao escrever Os Poemas Possíveis, já possuía plena consciência para reconhecer no poema «Unamuno» a mudança do velho filósofo iberista, passando em poucas semanas da «miragem» do apoio a Franco (20 de Agosto de 1936) para a atitude de protesto público na Universidade de Salamanca, na celebração do Día de la Hispanidad em 12 de Outubro de 1936, dois meses e meio antes da sua morte (31 de Dezembro de 1936).

O poema torguiano refere o acordar da «noite tumular», indo «de novo o cavaleiro andante/ Desafiar/ Cada torvo gigante/ Que impedia o delírio de passar», logo seguido pela morte. Na figuração quixotesca de Miguel de Unamuno, defensor de «outra Dulcineia,/ Ilusória, também/ (Pátria, mãe,/ Ideia/ E namorada)», importa frisar a diferença entre o D. Quixote cervantino, que falece –de Alonso Quijano– abdicando da sua identidade de cavaleiro andante, e as afirmações no poema: «Morreu louco./ O seu amor, por ser demais, foi pouco/ Para rasgar o ventre da Donzela.» Portanto, o seu amor não realiza o acto necessário para a génese concreta, telúrica da Ibéria; tal como não o realiza Santa Teresa, apelidada de «irmã mais velha» de Unamuno, cujo «amor podia / Ser sem limites como a alma quer! …/ E ser fecundo como a luz do dia / E dar um filho, porque eu fui mulher!». O seu amor possivelmente fecundo corresponde ao amor ilimitado unamuniano, na «fome do absoluto», no entanto, limitando a sua acção geradora a fazer «pombas brancas de papel/ Que voavam da Ibéria ao fim do mundo.»

Precisamente este «ao fim do mundo» do poema «Unamuno» é retomado por Saramago no incipit do poema «Inês de Castro». A união entre Castela e Portugal é reivindicada como projecto concreto no apelo de «Antes do fim do mundo, despertar» e no pedido de «fidelidade humana / Ao mito do poeta, à linda Inês…/ À eterna Julieta castelhana / Do Romeu português», que defende uma futura concretização real e humana do amor que, pelo

discurso tradicional, foi sublimado em tragédia. Saramago transforma o triunfo «até da própria sepultura» em apelo para uma acção relativamente à união entre Castela e Portugal: «despertar, […] / E dizer às donzelas que o luar / É o aceno do amado que há-de vir…».

O título «Até a fim do mundo» (em vez de «até ao fim do mundo») e o incipit «É tempo já, Inês, o mundo acaba» confirmam claramente que Os Poemas Possíveis glosam Poemas Ibéricos, insistindo na concretização real e humana do mito petrificado (nomeadamente nos túmulos do mosteiro de Alcobaça): «A promessa talhada nessa pedra, / Ou é cumprida hoje, ou tudo mente. » (Saramago 1982: 98). O contexto ibérico, ainda implícito nesta quadra, torna-se dominante numa espécie de pequeno tríptico dedicado a Dulcineia, D. Quixote e Sancho que corrobora a relação intertextual com Torga (Saramago 1982: 99-101), nomeadamente com o famoso poema «Pesadelo de D. Quixote», um dos três da última parte intitulada «O Pesadelo», que fecha Poemas Ibéricos. Relembramos somente duas estrofes para ilustrar esta estreita relação:

Sancho: ouço uma voz etérea Que nos chama…

Ibéria, dizes tu?!... Disseste Ibéria?! Acorda, Sancho, é ela a nossa dama! […]

Ergue-te, Sancho! Quais moinhos?! Quais?! Ai! Pobre Sancho, que não sabes ver

Em moinhos iguais

Qual deles é só moinho de moer! …

O poema «D. Quixote» de Saramago responde directamente à exortação, assumindo a posição de Sancho: «Não vejo Dulcineias, D. Quixote,/ Nem gigantes, nem ilhas, nada existe / Do teu sonho de louco./ Só moinhos, mulheres e Baratárias,/ Coisas reais que

Sancho bem conhece/ E para ti são poucos.» Nesta linha de interpretação, no fundo romântica, a personagem do escudeiro pragmático que acompanha o cavaleiro idealista é revalorizada no âmbito do materialismo histórico, aprendido com Marx, como revela o poema dedicado a Sancho: «Mas dessa bruta mão cai a semente / Que a teu amo sustenta, e sem o pão, / Até assombro é nada. » (Saramago 1982: 101).

Resumindo, na sua leitura activa dos Poemas Ibéricos, Saramago realça a dimensão real e material, já presente em Torga, mas ainda contrabalançada pelo fascínio da «fome do absoluto» de Miguel de Unamuno e Santa Teresa de Ávila que é reinterpretada por Saramago de uma forma telúrica. No entanto, a desidealização de Dulcineia («Quem tu és não importa, […]»), transformada em vampira que se alimenta do sangue de Quixote, não chega a eclipsar a mitificação feminina e materna da Ibéria, traço estruturante de Poemas Ibéricos, que será retomado n’A Jangada de Pedra, concretamente na gravidez colectiva de todas as mulheres da Península, transformada em grande ilha ou pequeno continente. Tal como noutros textos saramaguianos, gravidez significa mudança ou transformação possível de um estado petrificado de estruturas de poder, estabelecidas até na organização temporal e espacial. Gravidez corresponde à gestação de uma negação do estado passivo, tal como Torga a defende na «Exortação a Sancho», fecho dos Poemas Ibéricos, quando diz:

Nega-te a ser passiva testemunha