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VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas

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Academic year: 2021

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VEREDAS

Revista da Associação Internacional de Lusitanistas

V

OLUME

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portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como co-patrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos directivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado polas quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceitos polo Conselho Directivo e cuja admissão seja ratificada pola Assembleia Geral.

Conselho Directivo

Presidente: Elias Torres Feijó, Univ. de Santiago de Compostela eliasjose.torres@usc.es

1.ª Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra cristinacordeiro@hotmail.com

2.ª Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS; FAPA; CNPQ regina.zilberman@gmail.com

Secretária-Geral: M. Carmen Villarino Pardo carmen.villarino@usc.es

Vogais: Anna Maria Kalewska (Univ. de Varsóvia); Benjamin Abdala Junior (Univ. São Paulo); Claudius Armbruster (Univ. Colónia); Helena Rebelo (Univ. da Madeira); Mirella Márcia Longo Vieira de Lima (Univ. Federal da Bahia); Onésimo Teotónio de Almeida (Univ. Brown); Petar Petrov (Univ. Algarve); Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Sebastião Tavares de Pinho (Univ. Coimbra); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford).

Conselho Fiscal

Fátima Viegas Brauer-Figueiredo (Univ. Hamburgo); Isabel Pires de Lima (Univ. Porto); Laura Calcavante Padilha (Univ. Fed. Fluminense).

Associe-se pela homepage da AIL: www.lusitanistasail.net

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Revista de publicação semestral

Volume 11 – Maio de 2009 Director: Regina Zilberman Director Executivo: Benjamin Abdala Junior Conselho Redactorial:

Aníbal Pinto de Castro, Axel Schönberger, Cleonice Berardinelli, Fernando Gil, Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Magalhães, Jorge Couto, Maria Alzira Seixo, Marie-Hélène Piwnick, Ria Lemaire. Por inerência: Anna Maria Kalewska, Claudius Armbruster, Cristina Robalo Cordeiro, Elias J. Torres Feijó, Fátima Viegas Brauer-Figueiredo, Helena Rebelo, Isabel Pires de Lima, Laura Cavalcante Padilha, M. Carmen Villarino Pardo, Mirella Márcia Longo Vieira de Lima, Onésimo Teotónio de Almeida, Petar Petrov, Raquel Bello Vázquez, Sebastião Tavares de Pinho, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Thomas Earle.

Redacção:

VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas Endereço eletrónico: ailusit@ci.uc.pt

Realização:

Coordenação: Maria de Fátima Viegas Brauer-Figueiredo, Markus Schäffauer, Martin Neumann

Revisão: Laura Blanco de la Barrera

Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal Impressão e acabamento:

Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza

ISSN 0874-5102

AS ACTIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES E DA

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EDITORIAL...9

NOTA DE APRESENTAÇÃO...11

I. REFERÊNCIAS BIOGRÁFICAS CARLOS MENDES DE SOUSA

Cartas para Miguel Torga...21 CRISTINA ROBALO CORDEIRO

Miguel Torga: A Casa e os Livros...35 PAULA ISABEL SANTOS & CARLA BASTOS

Miguel Torga – Das Raízes para a Imortalidade...45 MARIA MANUELA GOUVEIA DELILLE

Memória, silêncios e ficção em O Quarto Dia de

A Criação do Mundo e no Diário I de Miguel Torga...59

INÊS ESPADA VIEIRA

Contar a Guerra e Vencer as Batalhas da Liberdade...77

II. À PROCURA DE IDENTIDADE MARIA DE FÁTIMA MARINHO

Miguel Torga e a Memória do Passado...93 PAULO DE MEDEIROS

Palavras Gastas...101 ORLANDO GROSSEGESSE

Torga em Saramago. Dos Poemas Ibéricos à Jangada de Pedra...109 EBERHARD GEISLER

O que é o humano? Leitura psicanalítica da obra de Miguel

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A Lição de Bambo...155 ELIAS J. TORRES FEIJÓ

A geo-cultura original dos contos de Miguel Torga e o seu progressivo

desaparecimento: De Bichos a Novos Contos da Montanha...167 HENRY THORAU

Ainda por descobrir – Miguel Torga como dramaturgo...185 MARIA ANTÓNIO FERREIRA HÖRSTER

Miguel Torga e a literatura de expressão alemã à luz do seu

Diário...199

ISABEL MARIA FIDALGO MATEUS

Viajar com Miguel Torga em Portugal...233

IV. AS TÉCNICAS DO NARRADOR ANA LUÍSA VILELA

A Lei do Sangue: representação física e poética do corpo nos últimos

contos de Torga...251 JOACHIM MICHAEL

A violência nos contos de Miguel Torga...267 TERESA ARAÚJO

“O Cobarde” e “Requiem”: clandestinidade e alegoria...287 TERESA CRISTINA CERDEIRA

Jorge de Sena e Miguel Torga: o discurso bíblico na biblioteca do

artesão...299 KARL HEINZ DELILLE

O conto “Vicente” e as suas traduções alemãs...315

V. A ARTE DO POETA

MARIA MADALENA MARCOS CARLOS TEIXEIRA DA SILVA Da leitura do eu à leitura do outro. Expressão poética e

comunicação...333 MARIA LÚCIA DAL FARRA

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poemas...359

OS/AS AUTORES/AS ...373

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aumentar o impato científico dos artigos publicados, apresentará algumas modificações, tal e como acordado na Direção da AIL. A mais importante é que, por regra geral, os números deixarão de ser temáticos –reservando esta modalidade para ocasiões excecionais- e haverá, no entanto, uma chamada para artigos permanentemente aberta para todas as investigadoras e investigadores que desejarem enviar os seus contributos, que serão avaliados de forma anónima por especialistas alheios ao conselho redatorial, de modo a garantir a qualidade científica dos trabalhos.

Com o mesmo objetivo de aumento da difusão e da consideração da nossa revista, a Veredas, que é acessível na internet desde o número 11, desaparece com a presente edição como publicação em papel. As mudanças que se estão a produzir nos últimos anos e cada vez mais velozmente no âmbito das publicações científicas mostram que este é o caminho que deverão seguir todas as revistas que aspirem a ser indexadas e consideradas polos critérios e modelos de avaliação reconhecidos polas universidades e outras instituições investigadoras.

Fazemos, pois, desde estas páginas uma chamada a todos os pesquisadores e a todas as pesquisadoras no âmbito das Ciências Sociais e Humanas para o envio dos seus artigos relacionados com qualquer aspeto da língua e das culturas lusófonas, sublinhando que valorizaremos especialmente aqueles trabalhos que adoptarem nas suas metodologias e nos seus objetos de estudo uma perspectiva inovadora e interdisciplinar.

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A direção da revista e da Associação Internacional de Lusitanistas confia em que estas inovações darão como resultado uma melhor e maior valorização tanto da própria Veredas como das autoras e autores que colaborarem com as suas publicações.

Santiago de Compostela, Maio de 2009

Elias J. Torres Feijó Raquel Bello Vázquez

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No dia 12 de Agosto de 2007 celebrou-se o centenário do nascimento de Miguel Torga (1907–1995). Ora, por um lado, concede-se ao escritor obsequiado por prémios literários o mérito de se ter gravado na memória do século XX e de o ter profundamente marcado com a sua obra; por outro lado, porém, a vida deliberadamente retirada do autor, o seu indomável desejo de liberdade e a sua recusa absoluta em seguir as tendências ou modas literárias, em se deixar integrar em preconceitos estereotipados levantaram desde sempre problemas quanto à sua classificação literária. Este rápido diagnóstico dá origem à suspeita de que é talvez nas contingências do século XX que é preciso procurar uma explicação da personalidade e das obras de Miguel Torga.

São os contos a parte mais famosa da sua vasta obra, são eles que atraem admiração unânime pela sua arte. No entanto, já a sua usual classificação como testemunho regionalista da povoação rural e dos seus modos de (sobre-)viver no Norte montanhoso de Portugal se torna difícil, ao tomar-se em consideração a problemática existencialista que subjaz a todos. E a dificuldade vai aumentando ainda diante dos contos urbanos do Autor (por exemplo, “Rua”).

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O cunho existencialista de Miguel Torga torna-se evidente na sua voluminosa obra poética. São constantes e recorrentes as alusões e pontos de contacto com as tradições cristãs e a antiguidade. Porém, na maioria dos casos estas referências são invertidas, postas ao serviço de uma religião da imanência (como, por exemplo, n’O outro livro de Job ou em Orfeu rebelde). Até ao presente, as peças teatrais de Torga, com títulos como Mar ou Terra, tal como o seu romance Vindima, não têm despertado muito interesse da crítica literária. No entanto, nos últimos anos vários críticos, entre os quais Maria Alzira Seixo, têm reivindicado uma revalorização desses textos pouco conhecidos. Por outras palavras, a obra de Torga apresenta-se multiforme, complexa e de difícil alcance. Pensa Eduardo Lourenço que a originalidade da obra se baseia no seu arcaísmo, mas esta suposição quadra mal com a crítica radical a Deus, pela qual sobretudo os contos de Bichos se tornaram famosos. Face a essas constatações aparentemente contraditórias, sobressai a questão das relações da obra de Miguel Torga com a modernidade, ou melhor, com o modernismo do século XX. Trata-se no seu caso da conjuração de um Portugal arcaísta, qual cosmos rural em irreversível via de extinção na segunda metade do século XX? Ou temos de interpretá-lo como o precursor de certas ideias (pós-?)modernas, sobretudo no que respeita à problemática do sujeito moderno, segundo as quais a humanidade está sujeita inevitavelmente a poderes, sublimes sim, porém nem sobrenaturais, nem divinos? E, finalmente, como se relaciona a escrita de Torga com Portugal? Por um lado, é lido como o cantor par excellence da sua pátria-mãe; por outro, não podemos esquecer que ele mesmo toma sempre uma distância crítica face a esse Portugal que tanto ama, mas que considera muitas vezes num contexto expressamente ibérico, desta maneira desmentindo qualquer suspeita de nacionalismo exacerbado.

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dessa revalorização. A produção literária de Torga acompanha e comenta a maior parte do século XX e a sua re-leitura, que constitui o alvo do Colóquio de Hamburgo, serve também à revisão múltipla do século passado, dos seus desenvolvimentos e contradições, em Portugal.

Os participantes neste número da Veredas dedicaram-se a este vasto projecto com as mais variadas interrogações e sob diferentes aspectos, que não visavam uma das habituais homenagens ou até uma cega apoteose do escritor transmontano, mas tentavam situar Miguel Torga e a sua variadíssima obra no contexto da literatura e da cultura (portuguesa, mas não exclusivamente) do século XX e, desse modo, explicar ou elucidar algumas das dúvidas e perplexidades que levanta.

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Isabel Santos e Carla Bastos no artigo “Miguel Torga – Das Raízes para a Imortalidade”, onde sustentam numa leitura psiquiátrica ou psicanalítica segundo a qual o conceito da imortalidade simbólica está presente em todos os escritores. Dos cinco modos nos quais este desejo se manifesta –segundo Jay Lifton: o biológico, o criativo, o religioso, o natural e o experiencial– tornam-se evidentes sobretudo o modo natural e o modo biológico, tal como o modo criativo, na medida em que Torga, por um lado, nunca deixa as suas raízes e sublinha desde sempre a sua identidade telúrica, e por outro lado deixa de si uma obra artística que o eleva à imortalidade simbólica. Duas vezes é focalizado um aspecto bastante específico da biografia de Miguel Torga: a Guerra de Espanha. Em “Memórias, silêncios e ficção em O Quarto Dia de A Criação do Mundo e no Diário I de Miguel Torga”, Maria Manuela Gouveia Delille concentra-se em duas facetas fulcrais nas duas versões existentes da narração da primeira viagem de Torga à Espanha dos anos da Guerra Civil: a auto-encenação de ambos os textos e a sua dimensão política, diferentemente acentuada numa versão e noutra, mas muito marcada em ambas. Contudo, além da análise das diferenças textuais entre as duas versões e as suas implicações na exegese, a contribuição tenta explicar com as circunstâncias biográficas do autor a ausência de qualquer alusão à Guerra Civil de Espanha, à Segunda Guerra Mundial e aos crimes do nacional-socialismo nas páginas do Diário I (de 1941), bem como nos volumes seguintes do Diário. “Contar a Guerra e Vencer as batalhas da Liberdade”, de Inês Espada Vieira, salienta mais uma vez o impacto da Guerra Civil de Espanha na obra literária de Miguel Torga. Através de leituras de vários contos, do Quarto Dia d’A Criação do Mundo e de alguns poemas, a autora chega à conclusão de que todas estas escritas testemunham a inabalável fé de Torga no humano, que vai a par com o desejo absoluto de Liberdade e a firme intenção de lutar para alcançar esse ideal.

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persistência no limiar da ordem simbólica, chega à conclusão de que Torga, de vez em quando, põe em dúvida o facto de ter uma identidade fixa, imutável, ou professa até uma falta de identidade.

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severa e amarga que deixa em aberto a questão de até que ponto a arte, a poesia poder desempenhar uma função qualquer. Em “Miguel Torga e a literatura de expressão alemã à luz do seu Diário”, Maria António Ferreira Hörster tenta avaliar a importância que a literatura alemã assumiu para Miguel Torga, concluindo que havia pouca, em comparação com a influência de autores estrangeiros como Cervantes, Homero, Dante, Proust, Montaigne ou Shakespeare. Só Goethe, Thomas Mann, Rilke e Hölderlin, a par de poucos outros autores alemães, se destacam dessa confessada reticência ou estranheza de Torga perante o ambiente espiritual da literatura alemã. Quanto à sua influência na produção poética ou narrativa de Torga, observam-se pequenos incentivos –o romance de Thomas Mann no debate presencista sobre o género romanesco, o 'Dinggedicht’ de Rilke, a crença de Hölderlin na força da palavra poética, etc.– mas, no fundo, Torga não consegue desprender-se duma imagem bastante estereotipada da cultura alemã. Um aspecto completamente diferente da personalidade do Artista é focalizado em “Viajar com Miguel Torga em Portugal”, por Isabel Maria Fidalgo Mateus. A viagem física e cultural de Miguel Torga pelas catorze regiões da sua terra-“Mãe” não se lê como um mero guia turístico pelos turistas de massas, mas como uma análise lúcida da condição social da pátria a partir da sua essência predominantemente rural. Desta maneira o escritor-viajante, o 'turista ideal’ consegue obter o difícil equilíbrio entre descrição objectiva, dum lado, e emotividade e subjectividade do outro –para si e para os seus leitores.

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do conto desde 1940 até 1976. A contribuição concentra-se ainda nas quatro traduções alemãs, colocando essas versões nos respectivos contextos históricos, cujas circunstâncias de publicação o autor elucida, comentando en passant as diversas tendências linguístico-estílisticas.

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densas, recorrentes, contraditórias, de metáforas de cunho religioso e/ou profano, de tom telúrico e/ou transcendente. A autora propõe uma leitura que identifique a religiosidade específica do eu poético à ocasião da celebração do Natal. Dessa maneira destaca-se uma postura que parece desejar dar tréguas à inquietação existencial e apaziguar, pelo menos durante um pequeno intervalo, uma rebeldia nata.

Resta esperar que esta breve visão de conjunto tenha dado uma impressão não só dos imensos tesouros ainda e sempre de novo a descobrir na obra tão multiforme de Miguel Torga, mas também do variadíssimo panorama de estudos torguianos, do qual este livro é um testemunho incontestável.

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VEREDAS 11 (Santiago de Compostela, 2009), 21-33

Cartas para Miguel Torga

CARLOSMENDESDESOUSA

Universidade do Minho

Pretendo, neste artigo, apresentar uma leitura da correspondência dirigida a Miguel Torga, ao longo de décadas (um arco temporal bastante amplo, de 1930 a 1994).

Um conjunto de cartas inéditas dá a conhecer elementos valiosos para o estudo da obra do autor e fornece dados que ajudam a compreender a história literária e cultural do século XX português. Proponho um confronto de aspectos tratados nas cartas (subscritas por autores nacionais e estrangeiros) com elementos conhecidos da biografia do destinatário. Esse cotejo proporcionará achegas relevantes para a reconstituição do itinerário pessoal (político, cívico) e literário do escritor. O epistolário passivo de Torga apresenta esboços de um retrato inacabado que vem apenas confirmar o que a leitura atenta da obra mostra: a ultrapassagem da ideia da imagem estereotipada do poeta isolado.

In this text I propose a reading of the correspondence sent to Miguel Torga over the period of several decades (from 1930 to 1994).

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O meu trabalho1 pretende dar a conhecer um dos trabalhos de investigação que estou a levar a cabo, no âmbito das pesquisas que iniciei em 2006, quando se programou a comemoração do centenário do nascimento de Torga; refiro-me à publicação de um volume com a correspondência inédita dirigida ao escritor.

Gostaria de dedicar este artigo à memória da Doutora Andrée Crabbé Rocha, estudiosa da espitolografia em Portugal, autora de um importante livro que recebeu justamente este título, publicado em 1969, e que teve uma reedição, em 1985, na Imprensa Nacional–Casa da Moeda. Recordo o exemplo do magistério e os laços de verdadeira amizade que me ligaram à Doutora Andrée Rocha.

1) O impacto da listagem das cartas recebidas por Miguel Torga resulta, em certa medida, da amplitude do arco temporal, que abarca um período de sessenta e quatro anos (cartas escritas entre 1930 e 1994), mas decorre também da ressonância dos nomes dos correspondentes que aí vamos encontrar.

1 Este artigo é derivado de uma comunicação. Começo por agradecer aos

membros da comissão organizadora do Colóquio o convite que me foi endereçado para participar neste evento comemorativo do centenário do nascimento de Miguel Torga. Estive na Universidade de Hamburgo pela primeira vez em Janeiro 1992, a dar aulas, no âmbito do Programa Erasmus; voltei para leccionar um novo seminário, dois anos depois, em 1994, e, pelo meio, vim igualmente a esta Universidade para participar no IV Congresso da Associação

Internacional de Lusitanistas, organizado com grande empenho pela Professora

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Bastará arrolar alguns desses nomes (apresentados na linha do tempo da escrita das cartas) para percebermos como neles se deixa adivinhar a importância deste epistolário, no que diz respeito às achegas fornecidas para o estudo da história literária e cultural do século XX português. Encontramos cartas assinadas por Fernando Pessoa, Raul Leal, Hernâni Cidade, Fernando Piteira Santos, Maria Archer, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Adolfo Casais Monteiro, Teixeira de Pascoaes, Ruben A., Jorge de Sena, Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, António Barreto, Mário Soares, Jack Lang, Jorge Amado, Gonzalo Torrente Ballester, entre muitos outros.

O conjunto dos testemunhos fornece-nos, antes de mais, uma visão em perspectiva da obra de Torga, do ponto de vista da recepção dos textos por parte dos leitores seus contemporâneos, à medida que os livros vão sendo editados. Assinale-se o facto de estarmos diante de um importante contributo hermenêutico para as leituras que se venham a fazer do trajecto literário em fase de construção. Um exercício estimulante será, por exemplo, o de ler esta correspondência com o Diário (1973) ao lado. No impressionante conjunto dos dezasseis volumes, encontramos admiráveis páginas programáticas, onde se apresentam as linhas fundamentais da poética do autor (por exemplo, a perspectivação do nacionalismo vs. universalismo); pode verificar-se como as opiniões de Torga repercutem junto dos leitores amigos e como estes dão conta desses ecos nas cartas que lhe endereçam.

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2) Na breve apresentação desta correspondência, gostaria de começar por referir uma carta que me provocou perplexidade e espanto quando tomei o primeiro contacto com estes documentos. A minha imediata reacção foi a de pensar que a missiva estaria incompleta: faltaria ali decerto alguma folha. A análise do manuscrito acabou, no entanto, por me fazer perceber o funcionamento do texto, que se socorre de uma provocadora estratégia retórica para captar a atenção: um começo abrupto centrado num ponto particularíssimo, como se se retomasse um motivo já anteriormente abordado, a par da premeditada ausência de nomeação do destinatário no topo da página. Vejamos o início da carta:

Na página 79 do seu diário, quarto volume, parei. Então a morte do pai do abade de Loureiro mereceu-lhe uma página do seu diário. A morte, o enterro, a paisagem, um amigo caçador podem render meia dúzia de frases para a posteridade. Uma criaturinha que escreve qualquer coisa e lhe pede duas palavras de crítica não vale nada com certeza. Se não fosse condenável atitude social, já teria apedrejado as janelas da sua casa. Acredito bem que seja um homem atarefado, um médico, um escritor, um génio repleto de responsabilidades. Mas até um deus teria tempo para uma inutilidade mais. Neste momento digo-lhe tudo isto porque, como o senhor, também sou uma personalidade independente –nem sequer doente de ouvidos e garganta.

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A Sibila que fornece alguma luz sobre o acontecido. Informa-nos que quando publicou o livro de estreia (Mundo Fechado), em 1948, o enviou aos “maiores da letras”, “aos escritores mais famosos, Aquilino, Ferreira de Castro, Torga e Pascoaes” (“O mundo fechado” prefácio à 2.ª edição de Mundo Fechado, 2005).

A leitura da carta de Agustina poder-nos-ia fazer pensar que Torga não lhe teria escrito a agradecer o livro. Ao olhar retrospectivamente para o acontecido, a escritora fornece-nos mais dados, contraditando essa suposição, quando assinala o facto de ter ficado “fula” com a “resposta convencional” de Torga (O Livro de Agustina, 2002); não se refere a esta carta, mas ela é a clara manifestação da “cólera” desencadeada pela linear resposta do escritor, isto é, pela ausência da crítica solicitada.

É notória a relevância da missiva de Agustina enquanto documento atinente à sua própria afirmação literária, mas importa igualmente considerar a carta pelo singular retrato que a jovem aspirante ao panteão das letras ousa fazer do escritor consagrado. Lemos aí palavras surpreendentes que pretendem moldar um retrato ideal, como quando superiormente são dados conselhos ao autor de Contos da Montanha para que este se afaste das tertúlias citadinas que frequenta e, nas quais, segundo a novel autora, ele estaria a perder o seu tempo. Neste epistolário iremos encontrar apenas mais uma carta de Agustina, escrita dez anos depois (em 20 de Janeiro de 1959), agradecendo uma brochura comemorativa da reunião do curso médico de Adolfo Rocha, do ano de 1958. No tempo transcorrido, Agustina já se encontrara entretanto com Torga por intermédio do amigo comum Eugénio de Andrade. Nesta segunda carta, mostra-se sensibilizada por esse encontro:

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podiam estar incluídas todas as discussões que nunca tivemos e todo o admirável convívio que sabemos desconhecer.

3) As hesitações sentidas relativamente à forma de se dirigirem ao escritor são recorrentes da parte de outros missivistas que o admiram e que ensaiam o gesto epistolar. Um exemplo paradigmático está patente nas palavras escritas por Maria Ondina Braga, em 1962: «Desculpe não começar como é de uso nas cartas. A verdade é que não sei fazê-lo para quem me desconhece de todo. –Senhor Doutor? –Distinto Escritor? –Apetecia-me antes dizer: Meu amigo». Maria Ondina (que só se estrearia em livro de ficção três anos depois), confessa na carta a Torga que precisou da distância espacial do seu “exílio” macaense, e precisou de uma larga distância temporal, para concretizar o desejo de lhe escrever (“anda-me isto na ideia há quase vinte anos…”).

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querendo, contudo, que Torga soubesse. «Li pela segunda vez o “Teatro” do Torga, e confesso que fiquei maravilhado. Considero mesmo o Torga o melhor escritor de Teatro» –são estas as palavras de Almada que o amigo de Torga transcreve na carta. Gonçalves de Oliveira acrescenta ainda que poeta de Orpheu se referira também «ao seu temperamento esquisito [de Torga], de que tem certo medo».

Uma das questões centrais que este epistolário suscita prende-se com o retrato do escritor devolvido pelas palavras dos outros. Que retrato é esse que se forma a partir das palavras que os outros lhe dirigem?

4) A leitura destas cartas mostra a evidência de um centramento na figura do destinatário, embora, naturalmente, em quase todas as missivas os registos enunciativos, os ritmos, os traços idiolectais deixem vir ao de cima o rosto e a vida (quase sempre literária) dos emissores. Nemésio, Sophia, Eugénio de Andrade ou Eduardo Lourenço emergem na inconfundível voz e na letra inteira dos seus estilos, mesmo quando um simples bilhete é escrito.

Encontramos raros exemplos de cartas de pessoas cujo nome não é identificável como pertencente ao meio intelectual ou político. É o caso de um prisioneiro (Arnaldo Rodrigues) que lhe escreve, da cadeia de Elvas, a pedir livros, ou de um leitor de Portimão (Eduardo Jorge Frias Soeiro) que se dirige ao “Caro Autor”, num curto bilhete, com um curiosíssimo pedido para que o autor de Bichos assinale a sua intentio auctoris relativamente a um conto desse livro, na época obra de leitura obrigatória nos programas do ensino secundário:

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ignorância, que só se darão por vencidas se (cito) “o próprio Torga disser que ela é mulher”.

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5) Na obra de um escritor que infinitamente se representou a si mesmo, a prisão no Aljube, na sequência da publicação de O Quarto Dia de A Criação do Mundo (1971), constitui um dos episódios biográficos que viria a adquirir o mais vasto alcance simbólico, nesse quadro de representação. Trinta e quatro anos depois da interrupção da narrativa autobiográfica, o narrador de O Quinto Dia (1974) irá registar literariamente a experiência. Este volume vai conceder, do ponto de vista diegético, um espaço privilegiado, em termos de economia narrativa, ao próprio motivo da interrupção. A atenção retardadora (o alargado tempo do discurso) enfatiza a nuclearidade do episódio e o seu valor emblemático no trajecto biográfico do autor.

As cartas desse período constituem-se como documento que dialoga com o retrato ficcional de feição autobiográfica. As vozes dos amigos de Coimbra (Paulo Quintela e Martins de Carvalho – André e Gonçalo no romance autobiográfico) manifestam a preocupação, o desejo de o visitar e a solicitação das necessárias autorizações. Será extremamente frutífera a colocação destes testemunhos em diálogo com o modo como as situações aparecem descritas no romance autobiográfico. Penso em concreto nas cartas de Vitorino Nemésio e de sua mulher, Gabriela Nemésio, pelos elementos fornecidos para a revisitação do episódio reescrito no Quinto Dia à volta do acidente sofrido por Andrée Crabbé quando ia a caminho de Lisboa para visitar Torga.

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contextualizada (em concreto com a correspondência de Pessoa a Gaspar Simões e com uma segunda carta que Pessoa escreveu a Torga, mas não chegou a enviar) constituirá um dos raros documentos que levanta luz sobre o episódio da ruptura com a Presença. Pessoa (a quem Torga, poucos anos depois, viria a render as mais elevadas homenagens) cometera um pecado capital, logo no início da sua missiva, quando, depois de afirmar que lera e gostara do livro, se reporta à poesia de Régio. As observações de Pessoa são claramente mal recebidas por serem entendidas como uma espécie de exercício de magistério, no momento preciso da dissidência.

Observe-se que uma raríssima referência à cisão surge precisamente numa das cartas enviadas por Nemésio para o Aljube. Nove anos após o afastamento, ainda as feridas não estavam saradas, Nemésio serve-se de uma metáfora religiosa para se referir a Régio e a um gesto de reconciliação da parte do autor de Poemas de Deus e do Diabo, a que Torga não iria responder:

Ao Aljube não chegam coisas finas como a Presença? Pois eu vi-a ontem. Leivi-a, leivi-a, que lá vem nvi-a Sinfonivi-a dvi-a vi-aberturvi-a, um piropozinho para o Sinal. V., o Branquinho e o Bettencourt são propriamente e paternalmente convidados a reentrar no seio da ortodoxia, sob o anel do Pescador. Veja agora lá se se fecha àquele coração paternal…

7) A leitura das cartas a Miguel Torga mostra-nos que a maior parte destas missivas tem como motivação mais imediata o agradecimento de livros que haviam sido enviados pelo autor. Breves comentários ou mais demoradas leituras feitas às obras recebidas conformam um conjunto de notas que importa considerar para a definição do percurso do escritor.

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testemunhos que reflectem sobre o próprio tempo, sobre a justiça que só o tempo se encarregará de fazer. Em 1946, João Menéres Campos, reportando-se a vozes reticentes, afirma o seguinte: «V., porém, já conquistou o tempo; os homens, pela sua própria contingência e fragilidade humanas (raiz da sua condição), serão conquistados e vencidos por aquele».

As cartas recebidas permitem justamente perspectivar o delineamento de um percurso que impressiona pelo acelerado ritmo de publicações até à década de 50 –a década da consagração. A partir daqui impõe-se no trajecto literário torguiano o tempo do testemunho, do cuidado com que o autor se propõe fechar o círculo da obra vigiada (incidência de publicação nos sucessivos volumes do Diário e, mais tarde, o remate de A Criação do Mundo) e o tempo da incessante autovisitação, através dos obsessivos trabalhos de reescrita, sobre a qual esta correspondência apresenta diversos depoimentos. Veja-se, por exemplo, no ano de 1954, as cartas que comentam a refundição de Vindima (1965). A definição do percurso, que se constrói com uma tenacidade e uma independência exemplares, deslumbra os amigos que, na década de 40, se deparam com a fulguração de um caminho diferente e afirmativamente novo. É o que se pode ler numa carta do poeta António de Sousa, um dos companheiros de Coimbra, que, em 1950, da capital, onde exerce advocacia, lhe escreve dando conta do alcance de perspectiva sobre a obra de Torga até à data:

Continuas a trabalhar na tua Obra com um apego e uma decisão que mais nenhum de nós tem. E a mim, que te admiro como Poeta e te prezo como Amigo, dá-me alegria e alento ver-te sempre fiel à tua estrela, sem desfalecimentos, trazendo a nós a luz que ela te entrega e entregará até à morte. Bem hajas! (14 de Nov. de 1950).

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Há um conjunto de cartas que constitui uma diferença pela singularíssima marca enunciativa, num registo muitas vezes próximo da humorada conversação solta e descosida, e cuja excepcionalidade se manifesta desde logo na forma espantosa de o autor dessas cartas se dirigir a Torga. Refiro-me a Ribeiro Couto que se dirige ao “Anjo Miguel”, ao “Miguelão Miguelinho” (num claro intertexto rosiano), ao “Miguelão Torguinha”, e em outras variadíssimas fórmulas excêntricas, que desbloqueiam o modo de se aproximar do autor de Traço de União, e que fornecem um retrato pouco convencional do escritor e do médico a quem o poeta brasileiro solicita consultas epistolares, a quem envia trocadilhos feitos a partir de títulos de obras (“penas do torgatório”) e com brinca entre achados de linguagem relacionados com aspectos da vida e obra (“Alegria de ver-te sempre grande e cada vez maior, quer Miguel, quer Adolfo, poeto-rino-conímbrico-camónicologista”). É esse à vontade que domina em toda a correspondência, como lemos nas palavras de amizade e de afecto com que Ribeiro Couto extravasa o seu reconhecido apreço: «Grande Miguel, pelo carinho com que me dedicaste a carta final, vai aqui um beijo no teu áspero focinho de almocreve transmontano».

À lenda sobre o escritor, referida por Agustina, as cartas conservadas no espólio acrescentam outros traços. Vemos aqui o homem que generosamente acolhia os amigos na casa da Estrada da Beira ou, mais tarde, na casa da Rua Fernando Pessoa. E encontramos aqui o cidadão livre e o homem ferozmente cioso da sua independência.

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belo e autêntico retrato de Torga: «Há um Portugal que antes de si estava por exprimir». Alguns anos depois, noutra carta, eis nova luz sobre o verdadeiro rosto do autor de Cântico do Homem: «Diz-se às vezes que a língua portuguesa é um instrumento imperfeito, etc. Quando você escreve tenho a impressão de que é língua mais cheia de nobreza de plenitude e de verdade».

REFERÊNCIAS

ROCHA, Andrée Crabbé. A epistolografia em Portugal. 2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.

TORGA, Miguel. Vindima. 3ª ed.Coimbra, 1965.

----. A Criação do mundo. Gráfica de Coimbra: Coimbra o autor, 1969.

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VEREDAS 11 (Santiago de Compostela, 2009), 35-44

Miguel Torga: A Casa e os Livros

CRISTINA ROBALO CORDEIRO

Faculdade de Letras de Coimbra

O escritor habita a sua casa como habita os seus livros. Sem dúvida, mas estes dois modos de presença pedem para ser diferenciados. Passando do sentido próprio -ocupar um espaço familiar- ao sentido figurado -investir com o seu espírito o objecto descrito- acreditamos atravessar a fronteira que separa o real do imaginário. Que valem todavia estes limites e estas distinções? A casa, aberta a alguns, não será mais íntima do que os livros a todos acessíveis? É sobre a expressividade da casa por comparação com a do livro que nos debruçaremos durante um momento. Um momento, precisamente, quando em Coimbra a casa de Miguel Torga, recentemente inaugurada como Casa-Museu, pode enfim revelar a sua "alma" ao público.

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Quando Clara Rocha me convidou para o lugar de Conservadora da Casa-Museu Miguel Torga, pedi, antes de aceitar, alguns dias de reflexão. Queria, nos próximos instantes, dar-vos conta do debate que ocupou então o meu pensamento.

O essencial do problema residia, para mim, na sua novidade. Havia já visitado casas de escritores, em Portugal ou no estrangeiro. Mas sem grande emoção nem convicção. A escola formalista, tão influente nos meus (nossos) anos de aprendizagem literária, havia-me afastado, com ou sem razão, dos interesses de natureza biográfica –de tal maneira que nunca pensei visitar os espaços frequentados pelos autores a quem consagrei as minhas duas teses. As suas casas, os seus móveis, os seus bibelots, tudo me parecia tão insignificante e anedótico quanto o número das suas maîtresses: só a estrutura e as funções do texto revestiam aos meus olhos a consistência ontológica que recusava aos acessórios e às testemunhas da sua existência. Excepção feita para os livros que, na sua materialidade física -papel, capa, ano de edição- nunca me deixaram indiferente.

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O convite para me ocupar da Casa-Museu Miguel Torga veio pois na hora certa, num momento em que, afastada dos estudos literários por encargos de natureza administrativa, via na literatura algo mais do que um sistema semiótico fechado em si mesmo. Acresce que não esperava ter de encarar, como uma questão teórica e prática, a relação da pessoa do escritor com o seu mais imediato enquadramento. Esta relação, não a podia já considerar nula, fútil ou trivial. Deveria existir entre o homem e a casa algo como um afinidade electiva, resultando o encontro de ambos de uma decisão que ultrapassa o puro acaso. Quando visitamos, pela primeira vez, a casa de Camilo, por exemplo, não experimentamos uma sentimento de inquietante estranheza, semelhante a essa experiência de “falso reconhecimento” que nos faz crer que conhecemos já o que nunca antes havíamos visto?

Assim, da residência citadina do Dr. Adolfo Rocha – diferente da casa de S. Martinho de Anta, tão rica em fluidos magnéticos-, transformada agora em espaço cultural, que mostrar ao público e sobretudo que lhe demonstrar? De facto, existem aqui duas questões, duas proposições distintas e, no caso de Miguel Torga, a segunda sobreleva a primeira. Esta função demonstrativa é hoje mais sensível ainda, tendo a casa, depois de algumas obras de restauro, sido, por assim dizer, simplificada ou essencializada.

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de uma profusão de objectos preciosos, a opulência e o bom gosto de um filantropo diletante, a do segundo demonstra, no vazio austero de algumas divisões, o poder mágico da criação literária. A primeira é a de um esteta, a segunda, a de um asceta.

Muito progrediu a museologia desde a época em que a palavra museu evocava para a juventude horas de cansaço –para não dizer aborrecimento– dominical. Mas o problema da exposição subsiste por inteiro e mantém-se complexo quando, nas poucas divisões onde viveu, é preciso fazer compreender aos nossos contemporâneos, cada vez mais estranhos à literatura, o que representou a leitura, a escrita, digamos a vida intelectual em Miguel Torga. A partir de que proxémica e de que teoria paralelística poderemos ilustrar o movimento que, do corpo ao espírito e do espírito ao corpo, transforma em texto a inquietude da alma?

Por outras palavras, haverá entre o interior habitado pelo escritor e a sua intimidade espiritual uma conexão perceptível? O escritório do poeta em nada se assemelha ao atelier do pintor, e se o piano do compositor apresenta mais analogias com o teclado da máquina de escrever, basta um único acorde para despertar todo um universo musical enquanto que a vista de um manuscrito, mesmo lavrado de cortes e de emendas, só de muito longe evoca o drama, tão torguiano, da inspiração. Sem dúvida que uma página escrita com sangue chocaria mais os visitantes, esclarecendo-os sobre a gravidade, sobre a radicalidade do acto de escrever, mas um tal dramatismo não colocaria o problema nos exactos termos em que deve ser colocado.

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museu deve poder oferecer um espectáculo à curiosidade, uma casa-museu parece prestar-se ainda mais ao voyeurismo dos visitantes. Ora, Torga recusou-nos, de antemão, esse prazer. O seu escritório não é o de um homem de letras, repleto de imagens e de ícones. Ele próprio sublinhava desde 1949 essa repugnância pela ostentação:

Não há dúvida nenhuma que sou um poeta de paredes lisas. No escritório dum camarada que visitei hoje, coberto de fotografias assinadas, tive a impressão de estar no gabinete dum caçador de feras, que mandasse curtir as peles das vítimas e as exibisse como troféus. A do leão com uma dedicatória majestática, a do hipopótamo com os olhos na posteridade, a do chacal ainda a sonhar com cadáveres… (Torga, 1974:100)

A célula do monge franciscano convém-lhe ainda melhor do que a torre de Montaigne (cujo isolamento acontece invejar, como o atesta uma passagem do Diário II. (1977: 84).

Mas se tivéssemos que respeitar escrupulosamente a sua vontade de despojamento –o que, em larga medida, foi feito-, teríamos apenas para mostrar os volumes da sua obra:

Não, quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja. (Torga; 1974: 100)

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desdobramento do seu ser, ao mesmo tempo vivo e morto na sua própria casa, tal como um Lázaro desiludido:

Finalmente em casa, meio moribundo, meio ressuscitado, a tentar integrar-me no ambiente familiar. Mas tudo me parece insólito. Estranho cada objecto, como se o visse pela primeira vez Nem os livros que escrevi resistem ao distanciamento com que objectivo a realidade. Perfilados na pequena estante que forra o cubículo tumular onde passo as horas, leio-lhes os títulos desbotado nas lombadas, e tenho a dolorosa sensação de que até eles se alhearam de mim e me voltaram as costas. (Torga, 1993: 118)

Esta experiência de alheamento aproxima-o de certos místicos da teologia negativa (deveríamos talvez dizer da psicologia negativa), surpreendendo nós nesta zona limite do psiquismo torguiano o desvendamento de uma tendência constante do seu espírito -tendência ou tentação- que o seu fascínio pelo mundo sensível conseguiu, regra geral, repelir. Penso numa firme vontade de abstracção que o aproxima de certos filósofos, afastando-o dos poetas e ainda mais dos romancistas.

Torga inscreve-se assim numa linhagem –a dos exploradores do negativo– a que pertenceu de forma eminente Antero de Quental. Linhagem que é também a dos escritores da noite, dos grandes cultores da insónia. Muito numerosas são no Diário as alusões à noite obscura da escrita onde desaparece, afastado do círculo estreito da lâmpada, tudo o que não é assimilável pelo branco da página. A “cabeceira da cama” (tão sugestivamente chamada “table de nuit” em francês) é o único móvel a reter a sua atenção, carregado que está de livros que ocupam o espaço –mais mental do que físico– do quarto.

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A tragédia de um quarto vazio. A tragédia de encher quatro paredes do sentido da nossa intimidade. Mas afinal, bastou abrir a mal, espalhar pelas cadeiras o pijama e a gabardine, e pôr em cima da mesa a pasta dentífrica e o pente. Com mais um cobertor na cama e duas toalhas limpas, considerei-me aninhado. (Torga,1978: 154)

Já o homem pré-histórico precisava de ilustrar as paredes da sua gruta. Mas o escritor, quando se chama Torga, prefere “compor com livros meus minha travesseira” (Torga, 1977: 33). São os livros que lhe comunicam a sensação de repouso e de segurança que os outros solitários encontram num bibelot amado, numa arma ou numa cruz. O quarto ou o escritório contam menos pelos objectos que os decoram do que pela sua semelhança com a concha marinha onde a leitura e a escrita encontram o meio refringente e ressoante que lhes convém. Leio uma página, muito reveladora desta exigência, datada de Santa Eulália, Alentejo, 18 de Novembro de 1955:

Esqueço-me de trazer um livro para estas insónias alentejanas. O subconsciente lá tem as suas razões. Ele sabe que a leitura necessita de muros de ressonância, de paredes de recolhimento e reflexão. […] Ora aqui não é possível semelhante concentração do eco. […] Não há contornos para nenhuma intimidade. (Torga, 1977: 22)

A intimidade encontra-se raramente associada no Diário à presença de uma companheira. E quando o é, essa intimidade não é a do corpo, mas a da criação. Diz Torga:

Hoje declarei em casa de uns amigos que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade.

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Esta intimidade de Miguel Torga que o visitante da casa espera entrever através de um objecto ou de um móvel, só poderá ser revivida sob um modo torguiano, aceitando o desafio do vazio a preencher com a vida do espírito Uma passagem da Criação do Mundo define essa severa poética do espaço íntimo:

Entre quatro paredes nuas a minha propensão ascética encontrou pé. Limitado ao estritamente necessário, sem cuidar de adquirir um móvel ou uma gravura de enfeito para encher aquele vazio, comecei a povoá-lo de imaginação. (A Criação do Mundo, 1997, p. 191)

E não será a casa de Coimbra mais a que quis e decorou Jeanne, pelo menos a avaliar pelo que é dito (ainda na Criação) sobre o papel da mulher nas modificações introduzidas na casa paterna.

Depois da morte do meu pai, Jeanne transformara o desconfortável casebre familiar numa moradia airosa e cómoda onde apetecia viver. (id., p.475)

“Onde apetecia viver”, sublinho esta espécie de homenagem feita à mão feminina que soube humanizar, amenizar o abrigo primitivo onde, no entanto, entre a lareira e a janela, o poeta se sentia mais do que em nenhum outro lugar em comunhão com as manes o os deuses lares. Temos então que nos resignar em não ver na aquisição da casa de Coimbra senão uma concessão feita à mulher e, um ano mais tarde, à filha, um meio termo entre a vontade de despojamento monacal do poeta e a condição de médico citadino e casado.

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Uma tenaz, paciente e dolorosa construção reflexiva feita com o material candente da própria vida.1

Uma tal “construção reflexiva”, visível apenas para um outro olhar, não se visita senão por intermédio de um esforço de concentração de que nem todos os visitantes da casa-museu são capazes. Basta dizer que só a leitura –e a mais atenta das leituras– pode fazer justiça ao escritor que não quis, pelo menos aos olhos da eternidade, viver senão nos livros que escreveu. Mas não estará ele aqui a dar razão ao estruturalismo de que eu julgara libertar-me definitivamente ao transpor a soleira da morada do escritor? Onde está então a verdadeira morada do Ser? Fazendo do Livro, como Mallarmé, um objecto absoluto, não nos convida Torga a considerá-lo como um sistema auto-suficiente ou como numa esfera diamantina a linguagem escaparia ao tempo, à história e à morte?

Recordemos a espantosa nota datada de Coimbra, 14 de Junho de 1976:

Estruturalismo. Que força, a de um texto! Uma vez chamado à existência impressa, nenhum deixa de ser tal como é, para toda a eternidade. Há um poder de coesão, uma recíproca necessidade interna, que transmuta duas palavras articuladas numa realidade inviolável. (Torga, 1977: 151)

Mas logo depois deste consentimento maravilhado do postulado formalista, Torga rebela-se contra a desconstrução a que a análise estrutural submete o texto. Os críticos estruturalistas não são leitores apaixonados mas glaciares e cépticos redutores:

Metodologicamente alheios à paixão da leitura, isentam-se de opor nela a mais leve sombra de equívoca simpatia. Não toleram a hipótese de se deixar embalar, de se render ao encanto, e defendem-se deliberadamente com um acervo mecânico e árido de subtilezas. […] Mas o verbo incarnado resiste a tudo. Outrora,

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à caturrice dos gramáticos; agora, à filáucia dos cientistas. Escrever é um acto ontológico. (id.)

Esta ontologia da escrita proíbe-nos de ver os livros de Torga apenas como objectos, por mais perfeitos e complexos que sejam. Temos então que receber da sua leitura e que conceder à sua leitura o zelo ardente, a emoção, a paixão, em suma, a Vida que permanece o apanágio do Sujeito.

A casa-Museu de Coimbra, quanto a ela, dá testemunho, perante os seres vivos que somos, do facto irrecusável de que, pelo menos nas espécies da literatura, “o verbo habitou entre nós”.

REFERÊNCIAS

TORGA, Miguel. Diário V. 3.ª ed. Coimbra, 1974. ----. Diário II. 4.ª ed. Coimbra, 1977.

----. Diário XII. 2.ª ed. 1977. ----. Diário XVI. Coimbra,1993. ----. Diário I. 6.ª ed. Coimbra, 1978.

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VEREDAS 11 (Santiago de Compostela, 2009), 45-58

Miguel Torga –Das Raízes para a

Imortalidade

PAULA ISABEL SANTOS CARLA BASTOS

Universidade Fernando Pessoa do Porto

Os conceito de imortalidade simbólica, ansiedade perante a morte e construção literária, estão presentes na obra de todos os escritores, nomeadamente com o modo criativo, na obra de Miguel Torga é visível a balança entre a angústia da finitude e o desejo de imortalidade. O desejo de imortalidade simbólica, operacionalizado por Robert Jay Lifton, (1964, 1973, 1987, 1991) em cinco modos: biológico, natural, experencial e criativo, é a resposta à ansiedade perante a morte; sendo esta provocada pela consciência da nossa finitude. (Drolet, 1990). A obra literária, resultado de uma criativa lucidez faz frente ao medo da morte eleva a imortalidade simbólica. Torga insurge-se como exemplo gritante, amotinando a finitude.

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Introdução

O estudo da morte e do seu simbolismo tem sido relativamente negligenciado em psiquiatria e em psicanálise. Não só porque levanta resistências emocionais nos investigadores como os confronta com um tema cuja magnitude ultrapassa as suas capacidades intelectuais e empáticas (Lifton, 1964).

A morte é um tema que tem sido muito pouco estudado pelos psicólogos, para além de não ser um tema prestigiante, os psicólogos raramente saem do laboratório para fazer investigação, e a morte não se adapta a uma investigação laboratorial e ao controle experimental. “death is not a glamorous arena.” (ib. p. 244 ).

A morte é vista como um tema mórbido. «Neither research nor therapy can alter the fact that all of us will have to die» (ib. p. 244).

Drolet, J.L. (1990) diz em relação à morte que, quer nós a enfrentemos ou ignoremos, a temamos ou reprimamos, a morte é um dado vivo na nossa existência. Assim, a nossa consciência pessoal e autêntica da morte permite-nos viver a vida ao máximo e permite-nos que o potencial humano seja alcançado. Yalom (1980), (citado em Drolet, 1990) refere que, para que demos à morte um estatuto participativo na nossa vida, requer que nós primeiro reconheçamos o conflito existencial que ela gera, isto é, a tensão que existe entre a consciência da morte e o profundo desejo de continuar a viver.

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A MORTE E o Poeta morreu.

A sombra do cipreste pôde enfim Abraçar o cipreste.

O torrão

Caiu desfeito ao chão Da aventura celeste.

Nenhum tormento mais, nenhuma imagem (No caixão, ninguém pode

Fantasiar.)

Pronto para a viagem De acabar.

Só no ouvido dos versos, Onde a seiva não corre, Uma rima perdura, A dizer com brandura Que um Poeta não morre. Miguel Torga1

Imortalidade simbólica e ansiedade perante a morte

Robert Jay Lifton, através dos seus estudos com pessoas que se viram dramaticamente confrontadas com a morte, tais como sobreviventes do Holocausto ou de Hiroshima, quis explorar o lugar da morte no nosso imaginário.

De certo modo, da mesma forma com que Freud elaborou um modelo dinâmico do homem baseado na sexualidade, Lifton propôs um novo paradigma psicológico, fundamentado na evolução dos processos de formulação de símbolos, no qual a morte e a simbolização da continuação da vida têm uma contribuição

1

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especial. Esta consciência de morte manifesta-se na necessidade fundamental e universal de preservar e desenvolver um sentido pessoal de continuação e duração, de imortalidade simbólica (Drolet, 1990).

Lifton (1973) acredita que o desejo de imortalidade simbólica está presente em todas as pessoas, a sua expressão pode ter diferentes formas ou modos em diferentes culturas e em diferentes indivíduos dentro da mesma cultura. Segundo Lifton (1979), o desejo de imortalidade simbólica fornece imagens de uma morte transcendente e ajuda-nos a encarar a nossa própria finitude.

Com a sua noção de imortalidade simbólica. Lifton, ofereceu à realidade da morte não só um aspecto positivo da vida, mas também um componente activo no desenvolvimento do homem. Desta forma o ser humano consegue ultrapassar a sua condição dualista, que e ser pleno de potencialidades mas também ser mortal (VandeCreek, 1994).

Lifton, (1991, 1973, 1987) argumenta que o falhanço no desejo de imortalidade simbólica poderá estar por detrás de distúrbios mentais, já que o homem perdendo este desejo, perde também a capacidade de simbolicamente vencer a sua maior angustia, a da morte, “While the denial of death is universal, the inner life-experience of a sense of immortality, rather than reflecting such denial, may well be most authentic psychological alternative to that denial” (Lifton, 1979, p.13).

Tal como refere Figueiredo (1993), o sentimento de perca é ultrapassado pelo sentimento de identificação por delegação, ao nascimento tornamo-mos seres ansiosos, a nossa condição, a condição humana lida mal com a finitude, e com a ansiedade que ela provoca, delegamos nos outros a obrigação de nos atenuarem as angustias.

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construção das pirâmides do Egipto, da gravação da moeda romana e da gravação dos ícones do Cristianismo.

Pode também explicar como podemos encontrar ao longo dos tempos muitos exemplos de homens que sacrificaram as suas fortunas ou até as suas vidas por causas não directamente relacionadas com a sua sobrevivência. De modo mais comum, o desejo de imortalidade simbólica é expresso no desejo de ter filhos, ou ter sucesso na vida profissional e o desejo de ser lembrado e respeitado pelo próprio grupo social (ib.).

Todos nós desejamos a imortalidade, qualquer um de nós a pode alcançar, mais ou menos prolongada, e desde a adolescência todos nós pensamos nela. A morte e a imortalidade formam um par indivisível, mais belo que Marx e Engels, que Romeu e Julieta, que Laurel e Hardy. “Sonhamos com a imortalidade desde a infância” (Kundera, 1990, p. 67).

“A imortalidade simbólica desenvolver-se-á sobre a identificação por delegação, reforçando a necessidade psicológica de nos revermos nos vindouros, nos nossos continuadores, depositários do nosso desejo de eternidade” (Figueiredo, 1993, p. 62).

Para Morin (1973), o homem, ao contrário do animal mostra-se lúcido em relação à própria morte, é por essa lucidez afectado traumaticamente, tentando ultrapassá-la com o mito da imortalidade.

Esta nossa consciência torna-se avassaladora, o sentimento de que vamos desaparecer sem deixar rastro é deveras angustiante, o sentido de Imortalidade Simbólica permite fazer-lhe frente e dá a vida um significado simbólico de continuidade, independentemente da morte física (Santos, 2001).

Modos de imortalidade Simbólica

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minimizamos a ansiedade perante a morte (Lifton, e Olson, 1974; Lifton, 1979; Lifton, 1964).

Modo biológico

O modo de expressão biológica tem uma enorme importância universal, talvez seja o modo com mais importância e o mais óbvio. Cada um de nós, vive através dos seus filhos e filhas, netos e netas, numa cadeia biológica sem fim. Através dos laços familiares a vida não mais terá fim. Em adição à cadeia generacional, à continuidade de gerações, este modo simboliza também as células reprodutivas, à medida em que passam de pais para filhos (Lifton e Olson 1974; Lifton 1979).

Está associado com o sentido de que nós somos a continuidade dos nossos pais e de gerações passadas, bem como o sentido de que nós vamos continuar a viver através dos nossos descendentes, este modo pode também estender-se fora da nossa família para a nossa cultura, tribo, nação ou até ser associado com princípios étnicos ou valores pessoais. (Lifton, 1979; Lifton e Olson, 1974). Em termos de conexão biológica, August Weismann falou há cerca de um século, no princípio da imortalidade celular. Mas essa imortalidade celular é apenas um dos aspectos da nossa continuidade biológica já que o homem é um ser cultural, um ser cultural por excelência (Lifton, 1979, p. 20).

Modo Criativo

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pessoas. O criativo torna-se parte de um projecto maior do que ele próprio, ilimitado no passado e no futuro. (Lifton, 1979; Lifton e Olson, 1974).

Os actos heróicos podem ser vistos como vias de simbolicamente derrotar a morte, uma forma do self sobreviver. (Berman, 1995).

Modo Religioso

Este é o modo que surge mais rapidamente quando falamos de imortalidade, é o modo teológico. A imortalidade foi sempre o cerne das preocupações das várias religiões (Lifton, 1979).

Historicamente, tem sido através da religião que o homem consegue expressar conscientemente a aspiração de conquistar a morte e de viver para sempre. Diferentes religiões fornecem esperanças de imortalidade em diferentes formas. O perigo com as imagens religiosas de imortalidade é que podem perder rapidamente a sua qualidade simbólica e resultar na acepção de que realmente não morremos. “Thus, the concept of the “immortal soul”- as a part of man that escapes death-was seen by Freud as a characteristic example of the human capacity for self-delusion through religion” (Lifton, R.J.; Olson E. 1974, p. 79).

Modo natural

“A fourth mode is the sense of immortality achieved through continuity with nature” (Lifton e Olson, 1974, p.81).

Este modo, continuam os autores, está relacionado com a natureza, com o sentimento de que fazemos parte do universo e que este nos ultrapassa, ou seja, que é eterno.

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Modo experiencial «A fifth mode of immortality, which we call experiential trancendence, is a bit different from the others in that it depends solely on a psychological state. This state is the experience of illumination or ropture attained as time seems to disappear» (Lifton e Olson, 1974, p .82).

A experiência transcendental pode ser conseguida através da dança, atletismo, contemplação do passado, criação intelectual e artística, dar à luz, e o sentimento de trabalhar em conjunto por uma causa comum. Estas experiências podem ocorrer relacionadas com qualquer um dos outros modos. Parece ser um potencial psíquico universal e até necessário para a suspensão da ordinária percepção do tempo. Existe uma experiência de iluminação ou êxtase conseguido como se o tempo desaparecesse.

Miguel Torga e a imortalidade simbólica

Adolfo Correia da Rocha nasceu em 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa Trás os Montes, aldeia que o viu nascer e ajudou a crescer. Mas Adolfo era grande demais para se reduzir a um só mundo a uma só localidade, afrontado pela criatividade passou por Lamego, Porto e Brasil, antes de se fixar em Coimbra, a terra dos estudantes e da saudade. Casou para pseudónimo, o nome Miguel com a Torga (urze), deste casamento nasceram várias obras, que lhe permitiram o Grande Prémio Internacional de Poesia e em 1985 o Prémio Camões

Durante toda a sua obra e vida sempre estiveram presentes a família, contudo por vezes não muito dotado a sociabilidades fáceis. “Uma parcela de arrogância, um certo distanciamento dos homens, timidez comum aos homens vindos dos meios humildes» (Galvão, 2007)

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é que não me deixam estar só, pensar só, sentir só. (cit in Galvão, 2007)

Atrevemo-nos a interpretar na sua obra o desejo da perfeição, da perenidade da sua obram prelúdio de uma imortalidade anunciada

Que cada frase em vez de um habilidoso disfarce, fosse uma sedução (...) e um acto sem subterfúgios. Para tanto limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades. (cit in Galvão, 2007, s/p)

Da sua obra transpira a ansiedade, a lucidez da finitude, a lucidez, a pior feridas dos inteligentes, que os alerta para ansiedade –mãe, a ansiedade perante a morte.

Um esforço indómito para chegar ao cimo da montanha da vulgaridade, e de lá deixar-se levar pela fluidez e veleidade da criatividade.

Contudo e se atendermos ao modo biológico de imortalidade simbólica, Torga nunca deixa as suas raízes, o seu leme não se desvia, ele quer levar consigo para a eternidade o nome da sua terra das suas gentes, a sua identidade.

Minha terra, Meu povo,

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Minha terra, Meu povo,

Dizei-me nesta hora de agonia Que essa fidelidade

Desafia

Quem à sombra da noite e à luz do dia Negue no mundo a vossa eternidade.

Diário XII, p. 180.

Cuido que as coisas mais válidas que escrevi, sabem à terra nativa que trago agarrada aos pés.

Diário II, p. 150.

Indagamos se quando escreveu o diário XIII não estaria Torga mais sossegado com a desassossegada escrita, sossegado porque consciente do seu trabalho, da sua egrégia obra.

Começo a caber na pátria. Já não olho a fronteira com a inquietação de outrora. O corpo e o espírito vão-se acostumando à ideia de que os sete palmos nacionais de terra chegam perfeitamente para consumar um destino humano.

Diário XIII, p.118.

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Pátria sem rumo, minha voz parada/ Diante do futuro!/ Em que rosa- -dos-ventos há um caminho/ Português?/ Um brumoso caminho/ De inédita aventura,/ Que o poeta, adivinho,/ Veja com nitidez/ Da gávea da loucura?// Ah, Camões, que não sou, afortunado!/ Também desiludido,/ Mas ainda lembrado da epopeia..../ Ah, meu povo traído,/ Mansa colmeia/ A que ninguém colhe o mel!.../ Ah, meu pobre corcel/ Impaciente,/ Alado/ E condenado/ A choutar nesta praia do Ocidente...

Diário XII, p. 136.

Soube a definição na minha infância/ Mas o termo apagou/ As linhas que no mapa da memória/ A mestra palmatória/ desenhou/ Hoje/ Sei apenas gostar duma nesga de terra/ Debruada de mar. Miguel Torga, Portugal, 5ª edição, Coimbra, 1986, p. 7.

Cá vim dizer aos comprovincianos o que penso da nossa condição. Terá valido a pena? Nos tempos cosmopolitas que correm, já nem o Himalaia defende os tibetanos, quanto mais o Marão os transmontanos! Começo a temer que estejamos no fim da nossa História. Derrubadas as fronteiras, seremos um trago na garganta da Europa. E as fronteiras naturais estão a ruir aterradoramente!

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Discussão

O homem continua a ser a minha grande aposta. Sem acreditar nele, como poderia acreditar em mim? (Miguel Torga )

A necessidade de mantermos o sentido da imortalidade simbólica permitiria compreender a história da humanidade. A imortalidade simbólica daria ao homem a possibilidade de se manter relacionado com as gerações passadas e futuras. Esta teoria dá um novo sentido ao facto de as gerações mais velhas se preocuparem com as gerações mais novas, ao cuidado posto na transmissão de heranças, ao investimentos das gerações actuais nas gerações vindouras. O conceito de imortalidade simbólica ajuda-nos a compreender melhore domínios da actividade humana que vão desde a actividade pedagógica espiritual e material à acção parental (Figueiredo, 1993).

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REFERÊNCIAS

ARNAUT, A. Estudos Torguianos. Coimbra: Fora do Texto, 1992.

BARTHES, R. Literatura e Realidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1984.

BERMAN, H.J. Generativity and Transcendence Heroics. Journal of Aging Studies, Vol. 9, Nº 1,1995, pp. 5-11.

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DROLET, J.L. Transcending death during early adulthood: Symbolic Immortality, Death Anxiety and Purpose in Life. Journal of Clinical Psychology, vol.46. Nº 2, 1990, pp.148-160.

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Memória, silêncios e ficção em O

Quarto Dia de A Criação do Mundo e

no Diário I de Miguel Torga

*

Maria Manuela Gouveia Delille Universidade de Coimbra

A análise comparativa da narração da primeira viagem de Miguel Torga à Europa (Dezembro de 1937/Janeiro de 1938) nas duas versões existentes (1939 e 1971) de A Criação do Mundo – O Quarto Dia concentra-se em dois aspectos centrais indissoluvelmente ligados: a auto-encenação de ambos os textos (mais acentuada na versão de 1971) e a dimensão política (presente numa e noutra versão, embora mais espontânea e veemente na primeira, mais construída e elaborada na segunda, em que se dedica maior atenção aos lugares de memória cultural europeia). Seguidamente, após a colação deste duplo relato com as breves anotações da mesma viagem nas páginas do Diário I (1941), procura-se interpretar –partindo da consideração de factos da vida pessoal do escritor

* O presente artigo insere-se no projecto de investigação «Relações Literárias e Culturais

Luso-Alemãs. Estudos de Recepção e de Hermenêutica Intercultural» do Centro Interuniversitário de Estudos Germanísticos (CIEG), Unidade de I&D financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do Programa Operacional Ciência e Inovação 2010 (POCI 2010) do III Quadro Comunitário de Apoio.

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entretanto trazidos ao conhecimento público e do contexto político da época– a ausência no referido discurso diarístico torguiano de qualquer alusão à Guerra Civil de Espanha, bem como o quase total silenciamento, nesse e nos dois volumes seguintes do Diário (1943 e 1946), da Segunda Guerra Mundial e dos crimes do nacional-socialismo.

This paper compares two accounts of Miguel Torga’s first visit to Europe (in December 1937/January 1938), as given in the 1939 and 1971 versions of A Criação do Mundo – O Quarto Dia. It focuses on two central aspects that are inextricably linked: the self-staging of the narrative (evident in both texts, though more marked in the 1971 version) and the political dimension (presented more spontaneously and vehemently in the first version, and in a more constructed elaborate form in the second, with more attention given to places of European cultural memory). This double narrative is then compared with the brief notes on the same journey found in Diário I (1941).

Facts from the writer’s private life (now public knowledge) and from the political context of the time are also brought to bear upon certain notable omissions in the first three volumes of the diary (1941, 1943 and 1946): the absence of any allusion whatsoever to the Spanish civil war, and the author’s near total silence on the question of the Second World War and the crimes committed by the Nazi regime.

Falar sobre a obra, muito especialmente sobre a prosa autobiográfica, de um autor como Miguel Torga, a quem repetidamente ouvi expressar dúvidas quanto a interpretações dos seus escritos por parte de críticos e estudiosos, sobretudo de origem académica e/ou erudita –recordemos que no Diário II, de 21 de Julho de 1942, chegou mesmo a dizer: «[…] não há mãos que toquem na obra dum escritor que não me façam estremecer de medo» (Torga,1999: 164)– , é sempre empresa muito arriscada e melindrosa. Tentá-la-ei apesar de tudo, com a modéstia e humildade devidas, mormente porque não pertenço ao rol consagrado dos estudiosos torguianos, tão só ao dos leitores assíduos e interessados e ao dos admiradores da sua personalidade íntegra, do seu exemplo ímpar de rigor, austeridade e independência.

Referências

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