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Miguel Torga: A Casa e os Livros CRISTINA ROBALO CORDEIRO

Faculdade de Letras de Coimbra

O escritor habita a sua casa como habita os seus livros. Sem dúvida, mas estes dois modos de presença pedem para ser diferenciados. Passando do sentido próprio -ocupar um espaço familiar- ao sentido figurado -investir com o seu espírito o objecto descrito- acreditamos atravessar a fronteira que separa o real do imaginário. Que valem todavia estes limites e estas distinções? A casa, aberta a alguns, não será mais íntima do que os livros a todos acessíveis? É sobre a expressividade da casa por comparação com a do livro que nos debruçaremos durante um momento. Um momento, precisamente, quando em Coimbra a casa de Miguel Torga, recentemente inaugurada como Casa-Museu, pode enfim revelar a sua "alma" ao público.

The writer inhabitates his place as he inhabitates his books. There is no doubt, but these two ways of presence ask to be differentiated. Moving from the real sense –occupying a familiar space- to the figurative one –investing the described object with his spirit- we are certain of crossing the border separating reality from imagination. What are those limits and distinctions worth nowadays? Will not the house, open just for some, be more intimate than the books, accessible to everyone? It is on the expressiveness of the house compared to that of the book that we will stop for a moment. That precise moment when Miguel Torga´s place, in Coimbra, recently inaugurated as Living-Museum, can finally reveal its “soul” to the public.

Quando Clara Rocha me convidou para o lugar de Conservadora da Casa-Museu Miguel Torga, pedi, antes de aceitar, alguns dias de reflexão. Queria, nos próximos instantes, dar-vos conta do debate que ocupou então o meu pensamento.

O essencial do problema residia, para mim, na sua novidade. Havia já visitado casas de escritores, em Portugal ou no estrangeiro. Mas sem grande emoção nem convicção. A escola formalista, tão influente nos meus (nossos) anos de aprendizagem literária, havia-me afastado, com ou sem razão, dos interesses de natureza biográfica –de tal maneira que nunca pensei visitar os espaços frequentados pelos autores a quem consagrei as minhas duas teses. As suas casas, os seus móveis, os seus bibelots, tudo me parecia tão insignificante e anedótico quanto o número das suas maîtresses: só a estrutura e as funções do texto revestiam aos meus olhos a consistência ontológica que recusava aos acessórios e às testemunhas da sua existência. Excepção feita para os livros que, na sua materialidade física -papel, capa, ano de edição- nunca me deixaram indiferente.

“A casa do ser”, como diz Heidegger, era então no jogo linguístico, na configuração sintáctica da narrativa que a situava, e não certamente numa moradia rodeada de jardim, situada numa praceta de um bairro tranquilamente burguês de uma cidade de província. Julgando eu então que o cenário familiar –na dupla acepção de familier e 'familial'– de uma vida de escritor não podia interessar senão os amadores de turismo cultural, só aceitava considerar o espaço e os objectos no quadro restrito da “representação”. Não renego o meu estruturalismo juvenil que me permitiu, a mim e a toda a minha geração, experimentar, por mais do que uma vez, o êxtase do que Valéry chamava “les sensations abstraites” da geometria. E é talvez essa mesma cegueira puritana que, sem eu saber, me preparava para a revelação do visível.

O convite para me ocupar da Casa-Museu Miguel Torga veio pois na hora certa, num momento em que, afastada dos estudos literários por encargos de natureza administrativa, via na literatura algo mais do que um sistema semiótico fechado em si mesmo. Acresce que não esperava ter de encarar, como uma questão teórica e prática, a relação da pessoa do escritor com o seu mais imediato enquadramento. Esta relação, não a podia já considerar nula, fútil ou trivial. Deveria existir entre o homem e a casa algo como um afinidade electiva, resultando o encontro de ambos de uma decisão que ultrapassa o puro acaso. Quando visitamos, pela primeira vez, a casa de Camilo, por exemplo, não experimentamos uma sentimento de inquietante estranheza, semelhante a essa experiência de “falso reconhecimento” que nos faz crer que conhecemos já o que nunca antes havíamos visto?

Assim, da residência citadina do Dr. Adolfo Rocha – diferente da casa de S. Martinho de Anta, tão rica em fluidos magnéticos-, transformada agora em espaço cultural, que mostrar ao público e sobretudo que lhe demonstrar? De facto, existem aqui duas questões, duas proposições distintas e, no caso de Miguel Torga, a segunda sobreleva a primeira. Esta função demonstrativa é hoje mais sensível ainda, tendo a casa, depois de algumas obras de restauro, sido, por assim dizer, simplificada ou essencializada.

Explicar-me-ei fazendo uma comparação inevitável: existe em Coimbra uma outra Casa-Museu, a do Professor Bissaya-Barreto. Verdadeiro museu, concebido como tal por um homem rico e culto, amador e conhecedor de coisas belas, bibliófilo e coleccionador, esse pequeno palácio é a projecção de um imaginário erudito, uma prodigiosa emissão de sinais que teria merecido o seu lugar nas Mythologies de Roland Barthes. Conhecemos, de resto, a viva antipatia que opunha os dois médicos, que tudo separava, ideias políticas e sociais, fortuna, influência. A apenas mil metros de distância, as duas casas estão tão afastadas quanto as Charmettes de Rousseau e o Château de Ferney-Voltaire. E se Bissaya-Barreto não foi certamente Voltaire, Torga não deixa de se assemelhar a Jean-Jacques. A casa do primeiro exibe, através

de uma profusão de objectos preciosos, a opulência e o bom gosto de um filantropo diletante, a do segundo demonstra, no vazio austero de algumas divisões, o poder mágico da criação literária. A primeira é a de um esteta, a segunda, a de um asceta.

Muito progrediu a museologia desde a época em que a palavra museu evocava para a juventude horas de cansaço –para não dizer aborrecimento– dominical. Mas o problema da exposição subsiste por inteiro e mantém-se complexo quando, nas poucas divisões onde viveu, é preciso fazer compreender aos nossos contemporâneos, cada vez mais estranhos à literatura, o que representou a leitura, a escrita, digamos a vida intelectual em Miguel Torga. A partir de que proxémica e de que teoria paralelística poderemos ilustrar o movimento que, do corpo ao espírito e do espírito ao corpo, transforma em texto a inquietude da alma?

Por outras palavras, haverá entre o interior habitado pelo escritor e a sua intimidade espiritual uma conexão perceptível? O escritório do poeta em nada se assemelha ao atelier do pintor, e se o piano do compositor apresenta mais analogias com o teclado da máquina de escrever, basta um único acorde para despertar todo um universo musical enquanto que a vista de um manuscrito, mesmo lavrado de cortes e de emendas, só de muito longe evoca o drama, tão torguiano, da inspiração. Sem dúvida que uma página escrita com sangue chocaria mais os visitantes, esclarecendo-os sobre a gravidade, sobre a radicalidade do acto de escrever, mas um tal dramatismo não colocaria o problema nos exactos termos em que deve ser colocado.

É certo que, para fazer compreender aos seus visitantes a natureza do seu labor, Miguel Torga abria os manuscritos rasurados. Mas o homem estava presente, atestando com a sua voz, o seu rosto de actor de tragédia o peso e o preço dessas páginas atormentadas. A teatralização do gesto de escrever, quando o actor desaparece, requer um cenário que substitui o vazio do palco. E é aqui que encontramos uma primeira contradição entre a perspectiva museográfica e o habitus (feição) torguiano. Se, por definição, um

museu deve poder oferecer um espectáculo à curiosidade, uma casa-museu parece prestar-se ainda mais ao voyeurismo dos visitantes. Ora, Torga recusou-nos, de antemão, esse prazer. O seu escritório não é o de um homem de letras, repleto de imagens e de ícones. Ele próprio sublinhava desde 1949 essa repugnância pela ostentação:

Não há dúvida nenhuma que sou um poeta de paredes lisas. No escritório dum camarada que visitei hoje, coberto de fotografias assinadas, tive a impressão de estar no gabinete dum caçador de feras, que mandasse curtir as peles das vítimas e as exibisse como troféus. A do leão com uma dedicatória majestática, a do hipopótamo com os olhos na posteridade, a do chacal ainda a sonhar com cadáveres… (Torga, 1974:100)

A célula do monge franciscano convém-lhe ainda melhor do que a torre de Montaigne (cujo isolamento acontece invejar, como o atesta uma passagem do Diário II. (1977: 84).

Mas se tivéssemos que respeitar escrupulosamente a sua vontade de despojamento –o que, em larga medida, foi feito-, teríamos apenas para mostrar os volumes da sua obra:

Não, quando eu morrer queimem quanto escrevi e não publiquei. Renego todas as cartas, todos os manuscritos, todos os retratos, todas as anedotas, todas as recordações e todo o rol da minha roupa suja. (Torga; 1974: 100)

Que um escritor deseje a destruição da sua “opus imperfectum”, não é um facto excepcional. Mas querer destruir o rasto da sua contingência releva de uma espécie de jansenismo muito mais insólito e que complica singularmente a tarefa de uma conservadora de museu. Torga não reconhece a autenticidade do seu eu senão nos livros publicados (e publicados por ele). Fora desse “monumentum aere perennius” tudo é insignificante. E acontece mesmo que esta ascese da personalidade atinja um niilismo absoluto, como acontece quando, no desespero da doença, e antecipando o seu desaparecimento integral, regista um estranho

desdobramento do seu ser, ao mesmo tempo vivo e morto na sua própria casa, tal como um Lázaro desiludido:

Finalmente em casa, meio moribundo, meio ressuscitado, a tentar integrar-me no ambiente familiar. Mas tudo me parece insólito. Estranho cada objecto, como se o visse pela primeira vez Nem os livros que escrevi resistem ao distanciamento com que objectivo a realidade. Perfilados na pequena estante que forra o cubículo tumular onde passo as horas, leio-lhes os títulos desbotado nas lombadas, e tenho a dolorosa sensação de que até eles se alhearam de mim e me voltaram as costas. (Torga, 1993: 118)

Esta experiência de alheamento aproxima-o de certos místicos da teologia negativa (deveríamos talvez dizer da psicologia negativa), surpreendendo nós nesta zona limite do psiquismo torguiano o desvendamento de uma tendência constante do seu espírito -tendência ou tentação- que o seu fascínio pelo mundo sensível conseguiu, regra geral, repelir. Penso numa firme vontade de abstracção que o aproxima de certos filósofos, afastando-o dos poetas e ainda mais dos romancistas.

Torga inscreve-se assim numa linhagem –a dos exploradores do negativo– a que pertenceu de forma eminente Antero de Quental. Linhagem que é também a dos escritores da noite, dos grandes cultores da insónia. Muito numerosas são no Diário as alusões à noite obscura da escrita onde desaparece, afastado do círculo estreito da lâmpada, tudo o que não é assimilável pelo branco da página. A “cabeceira da cama” (tão sugestivamente chamada “table de nuit” em francês) é o único móvel a reter a sua atenção, carregado que está de livros que ocupam o espaço –mais mental do que físico– do quarto.

Todavia, é justo observar que o jovem Torga experimenta, como cada um de nós, uma necessidade de intimidade espacial, de ninho habitado. Ei-lo que chega, a 1 de Julho de 1940, a um quarto de hotel desconhecido:

A tragédia de um quarto vazio. A tragédia de encher quatro paredes do sentido da nossa intimidade. Mas afinal, bastou abrir a mal, espalhar pelas cadeiras o pijama e a gabardine, e pôr em cima da mesa a pasta dentífrica e o pente. Com mais um cobertor na cama e duas toalhas limpas, considerei-me aninhado. (Torga,1978: 154)

Já o homem pré-histórico precisava de ilustrar as paredes da sua gruta. Mas o escritor, quando se chama Torga, prefere “compor com livros meus minha travesseira” (Torga, 1977: 33). São os livros que lhe comunicam a sensação de repouso e de segurança que os outros solitários encontram num bibelot amado, numa arma ou numa cruz. O quarto ou o escritório contam menos pelos objectos que os decoram do que pela sua semelhança com a concha marinha onde a leitura e a escrita encontram o meio refringente e ressoante que lhes convém. Leio uma página, muito reveladora desta exigência, datada de Santa Eulália, Alentejo, 18 de Novembro de 1955:

Esqueço-me de trazer um livro para estas insónias alentejanas. O subconsciente lá tem as suas razões. Ele sabe que a leitura necessita de muros de ressonância, de paredes de recolhimento e reflexão. […] Ora aqui não é possível semelhante concentração do eco. […] Não há contornos para nenhuma intimidade. (Torga, 1977: 22)

A intimidade encontra-se raramente associada no Diário à presença de uma companheira. E quando o é, essa intimidade não é a do corpo, mas a da criação. Diz Torga:

Hoje declarei em casa de uns amigos que a maior prova de amor que um poeta pode dar a uma mulher é a sua intimidade.

Escrever versos diante dela é qualquer coisa como parir com um Cristo à cabeceira da cama. (Torga, 1978: 27)

Esta intimidade de Miguel Torga que o visitante da casa espera entrever através de um objecto ou de um móvel, só poderá ser revivida sob um modo torguiano, aceitando o desafio do vazio a preencher com a vida do espírito Uma passagem da Criação do Mundo define essa severa poética do espaço íntimo:

Entre quatro paredes nuas a minha propensão ascética encontrou pé. Limitado ao estritamente necessário, sem cuidar de adquirir um móvel ou uma gravura de enfeito para encher aquele vazio, comecei a povoá-lo de imaginação. (A Criação do Mundo, 1997, p. 191)

E não será a casa de Coimbra mais a que quis e decorou Jeanne, pelo menos a avaliar pelo que é dito (ainda na Criação) sobre o papel da mulher nas modificações introduzidas na casa paterna.

Depois da morte do meu pai, Jeanne transformara o desconfortável casebre familiar numa moradia airosa e cómoda onde apetecia viver. (id., p.475)

“Onde apetecia viver”, sublinho esta espécie de homenagem feita à mão feminina que soube humanizar, amenizar o abrigo primitivo onde, no entanto, entre a lareira e a janela, o poeta se sentia mais do que em nenhum outro lugar em comunhão com as manes o os deuses lares. Temos então que nos resignar em não ver na aquisição da casa de Coimbra senão uma concessão feita à mulher e, um ano mais tarde, à filha, um meio termo entre a vontade de despojamento monacal do poeta e a condição de médico citadino e casado.

Mas a verdadeira morada é a do pensamento, e da existência lançada no cadinho do alquimista, fez surgir uma habitação de cristal:

Uma tenaz, paciente e dolorosa construção reflexiva feita com o material candente da própria vida.1

Uma tal “construção reflexiva”, visível apenas para um outro olhar, não se visita senão por intermédio de um esforço de concentração de que nem todos os visitantes da casa-museu são capazes. Basta dizer que só a leitura –e a mais atenta das leituras– pode fazer justiça ao escritor que não quis, pelo menos aos olhos da eternidade, viver senão nos livros que escreveu. Mas não estará ele aqui a dar razão ao estruturalismo de que eu julgara libertar-me definitivamente ao transpor a soleira da morada do escritor? Onde está então a verdadeira morada do Ser? Fazendo do Livro, como Mallarmé, um objecto absoluto, não nos convida Torga a considerá-lo como um sistema auto-suficiente ou como numa esfera diamantina a linguagem escaparia ao tempo, à história e à morte?

Recordemos a espantosa nota datada de Coimbra, 14 de Junho de 1976:

Estruturalismo. Que força, a de um texto! Uma vez chamado à existência impressa, nenhum deixa de ser tal como é, para toda a eternidade. Há um poder de coesão, uma recíproca necessidade interna, que transmuta duas palavras articuladas numa realidade inviolável. (Torga, 1977: 151)

Mas logo depois deste consentimento maravilhado do postulado formalista, Torga rebela-se contra a desconstrução a que a análise estrutural submete o texto. Os críticos estruturalistas não são leitores apaixonados mas glaciares e cépticos redutores:

Metodologicamente alheios à paixão da leitura, isentam-se de opor nela a mais leve sombra de equívoca simpatia. Não toleram a hipótese de se deixar embalar, de se render ao encanto, e defendem-se deliberadamente com um acervo mecânico e árido de subtilezas. […] Mas o verbo incarnado resiste a tudo. Outrora,

à caturrice dos gramáticos; agora, à filáucia dos cientistas. Escrever é um acto ontológico. (id.)

Esta ontologia da escrita proíbe-nos de ver os livros de Torga apenas como objectos, por mais perfeitos e complexos que sejam. Temos então que receber da sua leitura e que conceder à sua leitura o zelo ardente, a emoção, a paixão, em suma, a Vida que permanece o apanágio do Sujeito.

A casa-Museu de Coimbra, quanto a ela, dá testemunho, perante os seres vivos que somos, do facto irrecusável de que, pelo menos nas espécies da literatura, “o verbo habitou entre nós”.

REFERÊNCIAS

TORGA, Miguel. Diário V. 3.ª ed. Coimbra, 1974. ----. Diário II. 4.ª ed. Coimbra, 1977.

----. Diário XII. 2.ª ed. 1977. ----. Diário XVI. Coimbra,1993. ----. Diário I. 6.ª ed. Coimbra, 1978.

VEREDAS 11 (Santiago de Compostela, 2009), 45-58

Miguel Torga –Das Raízes para a