• Nenhum resultado encontrado

2 ORDENAÇÃO DE DOCUMENTOS: NOÇÕES ELEMENTARES

3.1 ORDENAR PARA CONSERVAR E DISPONIBILIZAR: A TÔNICA FRANCESA

3.1.1 Jean Pie Namur

Em 1834, na Bélgica, Jean Pie Namur, bibliotecário da Universidade de Louvain, publicou um manual intitulado “Manuel du bibliothécaire: accompagné de notes critiques,

historiques et littéraires”, voltado especialmente para "todos aqueles que deseja[sse]m se

dedicar com vantagem ao estudo da bibliografia, assim como às pessoas que deseja[sse]m ser empregadas nas bibliotecas públicas e particulares"18 (NAMUR, 1834, p. iv, tradução nossa). Considerado por Blasselle (1991, p. 147-148) o primeiro manual de Biblioteconomia escrito em língua francesa, posto que explorava as formas de gerir uma biblioteca, o texto de Namur principiava por uma discussão sobre Bibliografia, entendida pelo autor como a ciência da descrição dos livros, e sobre as características exigidas ao bibliógrafo, que deveria coadunar a formação erudita com uma personalidade de viés metódico. Ao longo de sua obra, Namur prestigiava longas digressões acerca da história do livro e da imprensa, bem como dos elementos concernentes à descrição material de livros antigos e de métodos de restauração.

Também expressiva no manual era a exploração dos aspectos técnicos e cotidianos envolvidos na gestão de uma biblioteca, uma vez que nestas instituições o adequado exercício das funções de bibliotecário era ainda mais importante do que o conhecimento erudito que este deveria ter (NAMUR, 1834, p. 19). Namur apresentava e descrevia, progressivamente, as diferentes etapas de intervenção que precisariam ser realizadas sobre os livros até que estes pudessem ser depositados sobre as estantes.

Dentre as etapas elencadas, composição de coleção, compra de livros, cuidados de conservação e elaboração de catálogos, a ordenação dos documentos (classement) recebeu relativo destaque, pois, segundo o autor, tornava possível a busca por um determinado livro. Ela era analisada por Namur como tendo, aparentemente, pequenos efeitos para as bibliotecas particulares, uma vez que seria fácil ao proprietário ou depositário conhecer cada um dos livros e guardar na memória seu posicionamento independentemente do arranjo escolhido (NAMUR, 1834, p. 30). Por outro lado, naquelas bibliotecas em que várias pessoas fizessem uso dos livros ou que a coleção fosse demasiado extensa, era indispensável estabelecer uma ordem que pudesse auxiliar as buscas daqueles que a frequentavam ou o pronto reconhecimento da coleção pelo profissional a quem fosse confiada sua guarda (NAMUR, 1834, p. 31).

18"[...]à tous ceux qui desirent s'appliquer avec avantage à l'étude de la bibliographie, ainsi qu'aux personnes qui

Nas bibliotecas pequenas, para Namur (1834, p. 51), os livros poderiam ser dispostos nas estantes exclusivamente conforme sua ordem de entrada, sendo viável, ainda, optar pelo agrupamento de livros de mesmo tamanho e sob mesma encadernação com o intuito de produzir uma boa aparência. Portanto, Namur admitia o emprego exclusivo de métodos cronológicos ou baseados em atributos materiais dos livros, apenas para as pequenas coleções. O autor defendia que dentro do espaço das grandes bibliotecas, para economizar espaço, evitar a irregularidade visual e facilitar a manutenção da ordem estabelecida, fazia-se necessária a divisão dos livros em três grupos que abarcavam diferentes formatos (NAMUR, 1843, p. 50). Assim, nas prateleiras inferiores estariam os in-folio; nas prateleiras médias estariam os in-quarto e nas prateleiras superiores os in-oitavo, in-12˚, in-18˚ e os formatos menores.

Partindo-se da distinção material por formato, o arranjo dos livros nas estantes, segundo Namur (1834, p. 53), deveria fazer uso de sistemas classificatórios, sendo o mais disseminado à época aquele sistematizado por Brunet. Todavia, em seu manual, Namur defendia e apresentava um sistema próprio composto por 10 classes principais que buscavam incorporar as instruções direcionadas às próprias bibliotecas, fazendo das temáticas relacionadas à Bibliografia, sua primeira divisão. Na concepção de Namur, seguindo a Bibliografia, classes relativas ao estudo das línguas e à própria história do livro, por exemplo, encabeçariam o sistema de classificação e seriam seguidas pelas demais áreas de conhecimento (NAMUR, 1834, p. 45). Esta escolha se justificaria, pois, segundo o autor, o primeiro passo de um homem que desejasse folhear quaisquer livros e fazer uso de uma biblioteca seria conhecer sobre livros.

No esquema de classificação proposto por Namur cada uma das classes principais era subdividida em até três níveis hierárquicos. As 10 maiores classes eram representadas por letras maiúscula em sequência A-K, o segundo nível era representado por números romanos (i, ii, iii, iv...), o terceiro por letras minúsculas do alfabeto (a-z) e o quarto por números naturais iniciados em 1. Todavia, para fins de ordenação de documentos, o autor não explicou claramente como se daria a transposição do sistema hierárquico para o arranjo sistemático nas estantes. Namur apenas descreveu, brevemente, o modo de composição das notações que seriam afixadas na lombada e no interior dos livros e assegurariam a ordem dentro de cada classe. Segundo o autor, deveria ser colocada "[...]nos próprios livros uma marca distintiva para designar a classe e a ordem na qual eles se encontram"19 (NAMUR, 1834, p. 61, tradução

19 "[...]aux livres mêmes une marque distinctive pour designer la classe e l'ordre où ils se trouvent" (NAMUR,

nossa), de modo a manter a organização estabelecida e contribuir para a rápida busca pelos itens.

Seguindo-se a proposta, cada livro deveria ser marcado com dois códigos complementares: externamente, o número de ordem (numéro d’ordre) iniciado em 1 e sem

limites de expansividade para cada uma das três subdivisões de formato em cada classe principal e, internamente, a notação de classe completa seria seguida do número de ordem do livro em questão (NAMUR, 1834, p. 63-64). Assim, dentro do livro haveria inscrições como

A vi d (187), mas na lombada constaria apenas o número 187 e seria esta última notação, exclusivamente, a responsável por indicar o posicionamento do livro dentro da estrutura em questão. Isto se dava pelo fato de Namur pretender que nas estantes a estrutura classificatória fosse reproduzida, embora optasse por uma sequência numérica linear como meio de indicar a posição ocupada pelos livros.

A vi d (187)

A História literária

vi História das universidades

d História das universidades na Bélgica

(187) Número de ordem do livro em um dos formatos na classe A

Num confuso e pouco explícito exemplo de como compor a notação externa, o autor explicava que caso o número 187, por exemplo, já tivesse sido empregado para um dado formato na subdivisão vi da classe A e novos livros do mesmo formato, na mesma classe, fossem incorporados à biblioteca, era preciso avaliar se eles seriam intercalados na sequência numérica já existente ou se poderiam ser simplesmente numerados em sequência. Caso pertencesse à subclasse vi o livro receberia, também, a notação externa 187, mas acrescida de uma letra minúscula (a, b, c, d...) de modo a indicar seu pertencimento a este nível da hierarquia e manter a lógica classificatória dos livros nas estantes. Se a partir da notação 187 estavam os livros pertencentes à subclasse vi, novos livros incorporados a esta subclasse deveriam seguir a notação 187, formando notações como 187a, 187b ou notações subsequentementes, como 188, por exemplo, caso esta não tivesse ainda sido utililizada. Mas se novos livros incorporados pertencessem à subclasse v, eles deveriam ser antepostos à notação 187 e pospostos à última notação em que a subclasse v fora utilizada, neste exemplo a notação 186 (NAMUR, 1834, p. 62-63).

Assim, embora trabalhasse com uma notação numérica sequencial para a codificação da ordenação, essa notação não representava a ordem de entrada dos livros na biblioteca e,

tampouco, era apenas linearmente construída, pois as novas incorporações poderiam ser intercaladas ao número já existente pela adição de um dígito alfabético de modo a manter nas estantes a estrutura hierárquica minimamente coerente. Não se configurava, portanto, um sistema de localização fixa para os livros uma vez que o livro de código 187 não necessariamente remeteria ao 187˚ livro colocado na estante, dentro daquela grande classe e formato. Poderia, como já explicitado, haver livros de código 187a e 187b, antes do livro de código 188. Ademais, o livro 186 também poderia ser seguido de inúmeros outros (186a,

186b, 186c...) antes que se chegasse ao livro 187.

Esta estratégia de construção das marcas de localização para fins de ordenação dos livros nas estantes parecia bastante restrita, pois Namur mencionava a alfabetação dos números como solução de incorporação de livros apenas dentro do terceiro nível hierárquico. Para o quarto e quinto níveis não estava claro como o arranjo sistemático poderia ser mantido nas estantes com uma proposta de notação tão restrita. Não havia, tampouco, uma distinção na notação para cada uma das três sequências numéricas dentro de cada classe composta a partir do formato do livro. Estando numa mesma classe, livros in-folio, in-quarto ou em formatos iguais ou menores do que in-oitavo poderiam receber a mesma notação, cabendo às diferentes cores ou formatos escolhidos para as etiquetas, além da própria materialidade do livro, apontar a distinção (NAMUR, 1834, p. 64). Para não confundir livros de classes principais diferentes em função da mesma marca de localização, seria necessário recorrer à notação interna, já que nela estaria explicitada a vinculação classificatória do livro.

Cabe ressaltar que para Namur (1834, p. 46-49), livros de uso ordinário e livros cujo uso deveria ser permitido apenas em casos extraordinários, fosse por seu elevado valor econômico ou por sua raridade, precisariam estar separados no espaço da biblioteca a fim de garantir sua conservação. Porém, o autor não explicitava de que modo esta diferenciação poderia se dar no espaço da biblioteca ou quais os recursos necessários à sua efetivação.

Seguindo-se às explicações quanto à ordenação dos livros nas estantes e estando esta etapa concluída, Namur afirmava ser necessário elaborar o catálogo para que fosse concluído o arranjo de uma grande biblioteca, '[...]não apenas para sua pesquisa rápida, mas também para o controle das obras de toda a coleção"20 (NAMUR, 1834, p. 67, tradução nossa). Em outro livro publicado também na década de 1830, Namur, similarmente à argumentação apresentada por Gabriel Naudé, no "Advis pour dresser une bibliothèque", de 1627, afirmava:

20 "[...]non seulement pour leur prompte recherche, mas aussi pour la vérification des ouvrages de toute la

A existência, em um lugar qualquer, de um grande número de livros empilhados em caixas ou em prateleiras não equivale a uma biblioteca: para que a reunião de um grande número de livros mereça o nome da biblioteca, é preciso que eles estejam ordenados de acordo com algum sistema, dispostos de modo que se possa utilizá-los. A principal maneira de fazer uma biblioteca verdadeiramente útil é atender tão rapidamente e tão facilmente quanto possível às pesquisas literárias; e, para conseguir isso, são necessários bons catálogos e uma disposição de livros bem fundamentada21 (NAMUR, 1839, p. v, tradução nossa).

Constata-se no manual escrito por Namur e no trecho acima um forte apreço pela ordenação de documentos que, conjugada ao uso do catálogo, constituía o cerne do ofício do bibliotecário. Associados, os cuidados de conservação, ordenação e catalogação garantiriam de um lado a proteção dos livros e, de outro, a capacidade de rapidamente entregá-los àqueles que lhes demandassem (NAMUR, 1834, p. 34). Assim, Namur considerava que

uma biblioteca é um lugar onde há uma coleção considerável de livros ordenados e armazenados em uma ordem que lisonjeie a mente e os olhos; de modo que cada pessoa, ávida por aprender, seja colocada no estado de consultar e facilmente encontrar cada livro, cada tratado que ali se encontre22 (NAMUR, 1834, p. 31, tradução nossa).

Assim, embora as explicações dadas por Namur para a ordenação dos itens nas estantes não contemplassem outras tipologias, que não o livro, para o autor, a atividade constituía etapa fundamental na formação das bibliotecas, conferindo-lhes regularidade e, associada à divisão por tamanho, uma apresentação aprazível aos olhos.