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3 A TEORIA DAS PERFORMANCES CULTURAIS, OS JOGOS OLÍMPICOS E A

3.1 A TEORIA DAS PERFORMANCES CULTURAIS E OS JOGOS OLÍMPICOS

3.1.2 Teoria do Espetáculo – os Jogos Olímpicos e seus gêneros performativos

3.1.2.2 Os Jogos Olímpicos modernos como ritual

Peirano (2002) afirma ser redutor considerar os rituais apenas como eventos religiosos de sociedades históricas (como a corte europeia), sociedades indígenas, etc. Os rituais podem ser de natureza religiosa, mas podem também ser profanos, festivos, formais, simples ou elaborados (PEIRANO, 2003, p. 5).

A autora indica que, nos rituais, estão combinadas palavras e ações que nos apontam e nos revelam representações e valores de uma sociedade, uma vez que expressam elementos do cotidiano. Ela pontua que a vida social é marcada por rituais e que estes são sistemas culturais de comunicação simbólica sujeitos às dinâmicas e mudanças sociais, portanto, não são fossilizados e imutáveis (PEIRANO, 2003, p. 11-12).

A ideia coubertiniana de ritual, particularmente, parte das influências do pensamento social francês sobre a busca por uma “religião secular”. A obra de Durkheim é uma das principais referências37 a partir das quais Coubertin entendia que a razão não poderia, por si só, guiar a humanidade, havendo, assim, a necessidade do sentimento religioso, de novas celebrações e cerimônias (MacALOON, 1984b, p. 251).

Trata-se de uma discussão pautada em uma certa “oposição à razão” na época de Coubertin. Na Filosofia, assim como nas Ciências Humanas e Sociais, houve, pontualmente, algumas discordâncias em relação à supervalorização iluminista- kantiana das razões fática, ética e estética (em outras palavras, a ciência, a moral e a arte modernas) enquanto esferas autônomas e totais na vida social. O debate em torno dessa temática remete à concepção de homem cuja relação com o mundo possui outras dimensões que não apenas a razão técnica-instrumental. É nessa perspectiva que o ritual (mesmo aquele que se refere a costumes religiosos) emerge

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como uma dimensão da realidade social que não é estritamente vinculada a uma racionalidade técnica-instrumental.

Esse contexto se apresenta, a nosso ver, como outro exemplo de aplicação das bases valorativas do olimpismo. Ao conciliar extremos e ao prezar pela eurritmia, Coubertin não apenas estabeleceu a organização de eventos multiesportivos, mas também delineou (processualmente) símbolos e vinculações “transcendentais” que deveriam formar uma esfera solene e diferenciadora em torno dos Jogos. Em um plano geral, MacAloon (1984b) afirma que o ritual difere de outras formas de comportamento cerimonial, geralmente, de duas maneiras: 1 – invoca e envolve uma determinada sacralização, o lócus da preocupação de um povo; e 2 – resulta em transições sociais ou transformações espirituais, em um “terreno transcendental”. Essas duas características estão intimamente relacionadas. Elas se ligam, também, às bases do olimpismo. Todas essas relações serão discutidas de maneira mais específica na seção 3.2.1.

3.1.2.3 O jogo como gênero olímpico

Ao falar deste gênero, MacAloon (1984b, p. 254) afirma ser o jogo, em geral, um dos processos culturais mais paradoxais da sociedade na qual vivemos.

O jogo envolve metas definidas, regras estabelecidas, papéis pré-determinados, o que caracteriza a sua estrutura formal. As regras são, em sua maior parte, inegociáveis, e, enquanto são respeitadas, “[...] o jogo é um sistema social sem desvios” (MacALOON, 1984b, p. 254, tradução nossa). Ao mesmo tempo, certas qualidades afetivas e experienciais do jogo parecem ser conflitantes com o caráter estrito das regras. O espectro afetivo é polarizado: o jogo é diversão, entretenimento, alegria, mas também envolve seriedade e compromisso (MacALOON, 1984b, p. 255).

voluntária, é autotélico (adquire sentidos para cada um), é intrinsecamente interessante, autocompensador e autorrealizador (MacALOON, 1984b, p. 255).

Para compreender o jogo como um gênero olímpico, MacAloon (1984b, p. 257) parte da análise da ideologia olímpica, baseando-se nas elaborações de Coubertin, que vislumbrou nesse gênero a expressão da ordem da sociedade moderna e a possibilidade de uma inversão das deficiências de tal sociedade, ou seja, um instrumento de esperança e reforma social cujas dimensões envolvidas são tanto de caráter competitivo, como também cooperativos (MacALOON, 1984b, p. 256).

Neste ponto, perguntamo-nos: mas como, então, o jogo poderia cumprir tal objetivo? É que o jogo é uma “[...] forma dramática universal [...]” por meio da qual povos, outrora distantes e sem comunicação, passaram a dialogar (MacALOON, 1984b, p. 256). Apropriando-se das considerações de DaMatta sobre o processo de dramatização,38 MacAloon (1984b, p. 256-257) argumenta em torno desse processo para apontar a razão pela qual tanto sociedades hierárquicas quanto igualitárias participam das disputas olímpicas com entusiasmo. A ideia é de que o jogo, em sua estrutura formal, permite que sociedades hierárquicas dramatizem a igualdade e que sociedades ideologicamente igualitárias, por sua vez, dramatizem hierarquias (MacALOON, 1984b, p. 256-257).

O autor cita, em seguida, um último aspecto inerente ao jogo como gênero olímpico. Este se refere à ideia de proporcionar e de ser um momento em que as regras são aceitas “[...] livre e alegremente” (1984b, p. 256, tradução nossa).

Percebe-se aí que as competições esportivas, em geral, integram os elementos perspectivados na concepção de jogo como gênero performativo. Porém, isso ocorre de maneira muito restrita e essa é uma compreensão fundamental para entendermos os JO como uma performance cultural ramificada, pois, embora os traços que compõem a concepção de jogo possam estar presentes em outros tipos de eventos, nos JO eles arranjam-se numa configuração específica por causa da sua coexistência com outros gêneros da performance.

Por fim, antes de prosseguirmos para a discussão dessa configuração, vale citar que

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o gênero performativo do jogo não se relaciona tão diretamente com a ocorrência das cerimônias de abertura dos JO. Talvez, o máximo que possamos dizer sobre o papel desse gênero em tal evento é que ele é simbolizado na cerimônia como o elemento que se deseja inaugurar. Durante a cerimônia, é importante trazer isso à memória. Todavia, estudos como o de Casanovas (1996, p. 257) veem apontando o surgimento, no decorrer do processo social, de um caráter competitivo nas cerimônias. Só que, neste caso, não é uma competição corporal/esportiva, mas simbólica: a disputa para saber qual país/cidade-sede organiza a melhor e mais fantástica (espetacular?) cerimônia de abertura (CASANOVAS, 1996).