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3 A TEORIA DAS PERFORMANCES CULTURAIS, OS JOGOS OLÍMPICOS E A

3.1 A TEORIA DAS PERFORMANCES CULTURAIS E OS JOGOS OLÍMPICOS

3.1.2 Teoria do Espetáculo – os Jogos Olímpicos e seus gêneros performativos

3.1.2.1 Os Jogos Olímpicos como espetáculo e festival

Para MacAloon (1984b), a denominação dos JO como espetáculo não incorre nos limites daquela, comumente mencionada na produção acadêmica, que se refere às relações entre o esporte e a atividade econômica (o “esporte-espetáculo”), ao seu uso político como potencial alienante e aos estudos sobre o esporte como produto da indústria cultural. Centra-se, antes, numa concepção antropológica de espetáculo que, embora não o isole dos fatores econômicos e políticos, empenha-se em identificar os seus aspectos constituintes.

Citando o significado etimológico, MacAloon (1984b, p. 243) diz que a palavra “espetáculo” tem sua derivação do Latim, que confere o sentido de “olhar para” e “observar algo”. Esse sentido implica a compreensão de que algo é exibido, digno de atenção, notável. “O espetáculo dá primazia ao sensório-visual e aos códigos simbólicos, eles são feitos para serem vistos” (MacALOON, 1984b, p. 243, tradução nossa).

Nem todas as coisas feitas para serem vistas, porém, são consideradas espetáculos, pois estes envolvem também certo tamanho e grandeza (MacALOON, 1984b, p. 243). Assim, os espetáculos são aqueles capazes de chamar a atenção pela sua proporção, cores ou outras qualidades “dramáticas”, capazes de provocar excitação (MacALOON, 1984b, p. 243).

Outra característica importante é o que MacAloon denomina de “[...] institucionalização de papéis bicamerais” (MacALOON, 1984b, p. 243, tradução

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MacAloon frisa que esses quatro gêneros não encerram as possibilidades de tipificação dos JO. No entanto, segundo o autor, “eles são semântica e funcionalmente os mais significativos” (1984b, p. 242, tradução nossa).

nossa). Esse termo se refere a papéis normativos, organicamente vinculados e necessários à performance, como por exemplo, “artistas e espectadores”. Segundo o autor, essas vinculações ocorrem no sentido de revelar clara diferenciação entre as funções de atores e de público, e, até mesmo, uma certa oposição entre eles (MacALOON, 1984b, p. 243). As performances realizadas no espetáculo dependem da existência de um público assistindo-as. Sem isso, tais performances não seriam espetáculo – um exemplo de “performances que não são espetáculos” são alguns rituais sagrados em culturas tradicionais que realizam costumes sem precisarem (algumas culturas até proíbem sua presença) de espectadores (MacALOON, 1984b, p. 243-244).

Mais um aspecto a ser mencionado na caracterização do espetáculo é a compreensão do mesmo como uma forma dinâmica. O autor (1984b) diz que formas dinâmicas “[...] demandam movimento, ação, mudança e permuta por parte dos atores humanos que estão no centro do palco, e os espectadores, em troca, devem ficar excitados” (MacALOON, 1984b, p. 244, tradução nossa).

A partir da análise desses aspectos, o antropólogo argumenta que

[...] os JO não só preenchem estes critérios, mas são espetáculos par

excellence, um caso típico, em relação ao qual todos os outros casos

devem ser comparados. Os Jogos são irredutivelmente visuais. Literalmente, eles devem ser vistos – e devem ser vistos pessoalmente, para serem cridos. (MacALOON, 1984b, p. 245, tradução nossa)

No entanto, destacamos que nem sempre (na história do MO) os JO foram tidos como tal epítome. As caracterizações de espetáculo foram sendo “introduzidas” nas organizações específicas de JO durante o século XX. A princípio, visto sua relação com o sensório-visual, tal introdução pode estar relacionada com o advento da “estética do consumo”, analisada por Bauman (2001), na modernidade líquida. Observamos que a aceitação dos traços do espetáculo no bojo da organização do evento olímpico tem estreita ligação com o advento da TV (MacALOON, 1984b, p. 245). Se o próprio Bauman relacionou a estética do consumo com o modo como se operou esse meio de comunicação, na segunda metade do século XX, logo tendemos a fazer tais relações. Entretanto, mais uma vez, elas não devem ser tomadas como “causa-efeito”. Para vermo-las mais claramente, é importante enumerar outras características do espetáculo que, segundo MacAloon (1984b, p.

246) são menos nítidas.

Podemos realçá-las quando as contrastamos com o gênero festival. Três “contrastes” são realizados pelo autor. Vejamos como ele os expõe.

Utilizando-se mais uma vez do recurso etimológico, ele nos diz que a palavra “festival” advém de derivação latina, significando “alegre, festivo”. Remete a um estado de humor, bem como a um “[...] tempo de celebração marcado por observâncias especiais, um programa de festividade pública” (MacALOON, 1984b, p. 246, tradução nossa). 1º contraste: o espetáculo, por sua vez, não denota nenhum estilo ou humor específico, mas abrange uma variedade de emoções que são intensificadas ou geradas pelo momento – emoções alegres ou não (MacALOON, 1984b, p. 246). Além disso, “[...] os festivais não são externamente amarrados a calendários e são internamente fixados a programas de ‘observâncias especiais’” (MacALOON, 1984b, p. 246, tradução nossa). 2º contraste: já os espetáculos são irregulares, ocasionais, com o final mais flexível, ou até mesmo espontâneo (MacALOON, 1984b, p. 246) – pelo fato de possuírem papéis bicamerais, o público deve ser excitado em algum momento (não significando nenhum “humor” específico); isso faz com que este não saiba como será o final, o qual deve ser aberto (ao contrário do festival que tem “hora para acabar” e que não possui, a priori, uma surpresa excitante no final).

Em termos valorativos, o festival, enquanto necessariamente uma celebração pública, preza por um equilíbrio e uma harmonia no interior de suas ações. 3º contraste: o espetáculo, por sua vez, está atrelado a um “ethos” de engrandecimento cuja máxima é “mais é melhor” (MacALOON, 1984b, p. 250, tradução nossa). Por mais que o conteúdo da performance do espetáculo seja sobre o equilíbrio e sobre a harmonia, o público sempre espera que sua forma seja “grandiosa” (MacALOON, 1984b).

Essa abordagem fez com que MacAloon chegasse ao pressuposto de que os gêneros espetáculo e festival não poderiam substituir um ao outro, isto é, de que eles possuiriam uma certa oposição (MacALOON, 1984b). O mais interessante dessa oposição é que podemos relacionar alguns de seus aspectos (e o autor nos ajuda a pensar tal ligação) aos polos do continuum o qual DaCosta (2002) diz que o

olimpismo se coloca com o correr do século XX. De acordo com MacAloon (1984b, p. 248), o endosso oficial do COI aos JO, a princípio, concentrou-se em legitimá-lo como festival. O próprio Coubertin chamou os JO de “[...] festival da unidade humana [...]” (COUBERTIN, 1967, p. 131 apud MacALOON, 1984b, p. 248, tradução nossa) e se preocupou com a tendência de eles se tornarem “[...] apenas exibições teatrais, ou espetáculos inúteis” (COUBERTIN,1967 apud MacALOON, 1984b, p. 248, tradução nossa). Com isso, fica visível a faceta da aplicação da base teórico- filosófica do olimpismo. Tal legitimação ocorreu, principalmente, devido às ideias de “estado de humor alegre”, à exaltação da harmonia enquanto um valor eurrítmico e ao traço mais humanista de celebração da dignidade humana (DaCOSTA, 1999). Ao não aceitar, inicialmente, a adaptação dos JO (em especial, das suas cerimônias) ao espetáculo, o COI (e o próprio Coubertin) temia que se rompesse com os fundamentos centrais do olimpismo.

Com o passar do tempo, porém, o espetáculo foi incorporado aos JO como elemento explicitado, em especial, na cerimônia de abertura. Isso não significou que o festival tenha sido sucumbido. Pelo contrário, em nível formal e pragmático, o COI fixou e manteve fronteiras internas de espaço, tempo e objetivações que distinguem o festival da mais centrífuga, difusa e permeável estrutura do espetáculo – mas ambos constituem os JO. Todavia, mesmo contrastando alguns traços do festival e do espetáculo, o argumento sobre o qual MacAloon segue sua discussão é o de que esses dois gêneros compartilham um importante elemento em comum. Esse argumento diz respeito à ideia de que

[...] ambos são “megagêneros” ou “metagêneros” da performance cultural. Nenhum especifica diretamente o tipo de ação que os participantes irão engajar ou ver. Pelo contrário, cada um deles constrói uma moldura adicional em torno de outros gêneros performativos mais específicos. Existem festivais religiosos, teatrais, comerciais, de ópera e filmes, de artes e artesanato e até festivais de culinária, bem como existem combinações destes. O mesmo acontece com os espetáculos. Esses metagêneros distinguem-se por sua capacidade de ligarem organicamente [...] formas diferenciadas de ação simbólica no interior de novas totalidades por meio de uma localização espaço-temporal comum de temas expressivos, de estilo afetivo, de intenção ideológica ou de função social (MacALOON, 1984b, p. 250, tradução nossa).

A questão dos metagêneros será melhor explicitada a partir da apresentação dos outros gêneros performativos discutidos pelo autor. Vejamos, agora, como MacAloon interpreta as questões sobre o ritual e o jogo.