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CAPÍTULO 3. DA FÁBRICA AO LAR: A TRIPLA JORNADA

3.3. A tripla jornada

3.3.1. Jornada em casa: trabalho doméstico

Às mulheres foi dispensado o cuidado com o lar, os filhos e o marido. Constata-se que a “promoção” do modelo de feminilidade, a esposa-dona-de-casa- mãe-de-família”376, isto é, o estereótipo que, a partir do século XIX, foi sendo social e

historicamente construído, determinou a função da mulher na sociedade e os padrões que foram carregados com elas para o mundo do trabalho.

Sabe-se que as mulheres sempre trabalharam377, no entanto, sua força de

trabalho era mal percebida na sociedade devido à ideia de sua dependência histórica em relação ao pai, marido e irmão. Esse julgamento constituiu-se em um empecilho à sua emancipação econômica. Diante disso, quando a mulher entrou efetivamente no mundo do trabalho assalariado, ou seja, quando adquiriu o “status” de mulher trabalhadora assalariada, ela o fez sob o estigma do preconceito, pois suas funções foram depreciadas, consideradas secundárias e tachadas como “trabalho de mulher”, o que levou ao rebaixamento salarial, pago como uma simples contribuição.

A mão de obra feminina foi comumente utilizada nos serviços considerados, pelo setor masculino, como característicos da mulher, funções que demandavam

376 RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia disciplinar e a resistência anarquista (Brasil 189-

1930). 4. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 87

377 Cf. RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e História: descobrindo historicamente o

gênero. In: PEDRO, Joana e GROSSI, Miriam. Masculino, Feminino, Plural: gênero na interdisciplinaridade. Florianópolis: Editora Mulheres, 1998. Disponível em: < http://projcnpq.mpbnet.com.br/textos/epistemologia_feminista.pdf>. Acesso em 24 jun. 18.

cuidado, delicadeza, mas também visto como “desqualificados”. Tal percepção em relação à força de trabalho feminina fez com que as mulheres fossem sistematicamente subjugadas e exploradas no campo do trabalho.

Entre as funções desenvolvidas pelas mulheres estavam aquelas que podiam ser realizadas dentro das oficinas e também em casa, como é o caso do trabalho das costureiras de saco. “Em casa, seu tempo era preenchido plenamente pelas tarefas fabris, pelos afazeres domésticos, pela preparação e cuidado dos filhos”378,

isto é, uma multiplicidade de tarefas que as levou a vivenciar um cotidiano escasso de lazer em decorrência da tripla jornada. Por outro lado, “a experiência de vida dessa mulher dentro de casa foi projetada para fora”379 e associada aos problemas

sociais, a saber, à carestia dos produtos de primeira necessidade, à alta nos aluguéis, entre outros.

Nota-se, assim, que as relações de trabalho permearam todas as esferas, atingindo, particularmente, as operárias que trabalhavam também em domicílio, haja vista o tempo maior que elas permaneciam em casa. Além disso, eram elas que sentiam com mais afinco o problema do abastecimento alimentício, pois eram as responsáveis pela compra e preparo dos alimentos, garantindo, assim, a sobrevivência da prole. Tinham, também, que multiplicar os trabalhos com a costura para poder, dessa maneira, somar ao ordenado familiar. Nesse sentido, “a mulher desempenhou o papel principal na preservação e renovação da força de trabalho através da maternidade, na responsabilidade pela realização dos serviços domésticos, na administração das despesas domésticas.”380 A atividade em

domicílio constituiu uma

378 TEIXEIRA, Amélia Rosa Sá Barreto; RIBEIRO, Ana Clara Torres; CHINELLI, Filippina; ELIAS,

Roseli. O trabalho e a trabalhadora fabril a domicílio. In: BARROSO, Carmen; COSTA, Albertina Oliveira (org) Mullher Mulheres. São Paulo: Cortez, 1983, p. 123.

379 Ibid., p. 123.

380 TEIXEIRA, Amélia Rosa Sá Barreto; RIBEIRO, Ana Clara Torres; CHINELLI, Filippina; ELIAS,

Roseli. O trabalho e a trabalhadora fabril a domicílio. In: BARROSO, Carmen; COSTA, Albertina Oliveira (org) Mullher Mulheres. São Paulo: Cortez, 1983, p. 122.

[...] jornada que não termina regulada por obrigações inescapáveis, mulheres divididas entre a aspereza do cotidiano onde os serviços da casa e o serviço de fora disputam por sua dedicação e o anseio por tempo livre.381

As jornadas intermináveis das mulheres pobres foram um obstáculo ao tempo dedicado ao cuidado de si. Além disso, em razão das dificuldades financeiras comuns a toda classe trabalhadora, conjectura-se que o cotidiano voltado à sobrevivência fosse uma questão mais importante entre elas do que encontrar um espaço e tempo dirigidos às distrações, leituras, entre outros. Relativamente às costureiras de saco, em virtude da tripla jornada, as obrigações diárias eram ainda mais ásperas e rigorosas, pois sua rotina era dividida entre o trabalho nas casas de oficina, a continuidade do ofício no lar e os serviços domésticos, que, nesse caso, incluíam a educação e o cuidado com a prole, com o marido, a preparação das refeições, a lavagem das roupas, a faxina, etc., conforme apontado anteriormente.

Nesse sentido, a separação entre o espaço e o tempo do trabalho produtivo e do reprodutivo apresentava limites difusos no cotidiano dessas costureiras. Em casa, elas realizavam tanto o trabalho dotado de valor mercadológico quanto o trabalho doméstico – que também é dotado de valor, mas não era reconhecido e nem remunerado, exceto quando se transformava em serviço realizado para terceiros. Assim, a experiência cotidiana das mulheres foi vinculada à divisão sexual do trabalho, “mas o que marcou as jornadas foram as atividades de trabalho remunerado”382, conforme apontado na fala de uma das costureiras quando ela

disse que “trabalhava pela noite adentro”383. Em razão disso, calcula-se que o

trabalho com a costura absorvia a maior parte do tempo/vida dessas operárias, logo, era “a partir do horário de trabalho assalariado que os outros tempos do dia a dia

381 COSTA, Albertina de Oliveira. Rotinas de mulher: In: ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica

(orgs). Trabalho remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres. Realização SOS corpo: Instituto Feminista para a Democracia. Recife, 2014, p. 8. Disponível em: <http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2014/07/livro_trabalho_versaoonline.pdf> Acesso em: 01 jun. 2018.

382 ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica. Trabalho produtivo e reprodutivo no cotidiano das

mulheres brasileiras. In: ______. Trabalho remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das

mulheres. Realização SOS corpo: Instituto Feminista para a Democracia. Recife, 2014, p. 34.

Disponível em: < http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-

content/uploads/2014/07/livro_trabalho_versaoonline.pdf> Acesso em: 01 jun. 2018.

383 AS COSTUREIRAS de saco mantêm-se em parede. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, ano 42,

eram organizados”.384

Uma análise dos trabalhos domésticos como atividades que não entravam no circuito monetário de produção social, foi realizada pela socióloga Arakcy Martins Rodrigues385, para quem o trabalho realizado em casa possuía um caráter exclusivo,

isto é, para além de oferecer condições para que os integrantes da sua casa ou de outras pudessem vender a sua força de trabalho, ele tinha um valor em si, como produção humana.