• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1. A ATUAÇÃO DAS MULHERES NA CONSTRUÇÃO DOS LAÇOS

1.2. Os Fatores que desencadearam a greve

1.2.3. Moradia e Transporte

No tocante à questão da habitação do proletariado, conforme apontava A

Plebe, os lares eram “repugnantes, com fogãozinho que estão quase sempre

apagados, leitos de capim moído, cadeiras esculhambadas e cheiro penetrante de miséria.”128 Sobreviviam em quartinhos reduzidos e quentes como fornos, em porões

baixos e úmidos, em cortiços infectos e escuros e, nesse ambiente insalubre, a operária tinha que lidar também com a saúde da prole, pois, ainda de acordo com o periódico, “nessas habitações há sempre uma mãe que suspira vendo morrer

127 HARDMAN, op. cit., p.179.

128 As REIVINDICAÇÕES da canalha. A Plebe, São Paulo, ano 2, n. 17, 14 jun. 1917. Acervo Edgard

extenuado o filho tuberculoso.”129

A citação a seguir, extraída de um artigo do historiador Edgar Carone,

demonstra uma faceta do problema apenas para ilustrar tal universo. De forma irônica, ele coloca como as soluções apresentadas pelo poder público para atender às necessidades de moradia do trabalhador mostravam-se alienadas da realidade vivenciada por tais pessoas. Segundo ele,

São de 1897, 1900 e 1908 leis tendentes a levar a organizações públicas e particulares a criarem vilas operárias saudáveis nas áreas vagas da periferia. A lei municipal n° 468, de 14-12-1900, isentava de impostos as casas operárias, permitia o abaixamento do pé-direito mínimo e o emprego de materiais ditos de segunda, exigindo, porém, a previsão de três compartimentos com área mínima de dez metros cada um deles. O custo dos trinta metros quadrados mínimos de construção somado ao preço do lote atingiria a um montante aproximado de 2:500$000. Perguntava um articulista anônimo da Revista de Engenharia: “Será possível a um operário que ganha na média 5$000 diários, economizar a ponto de, um dia, tornar-se proprietário?”. Eram necessários 500 diários completas de cinco mil réis para se obter uma casa de arrabalde, o que, evidentemente tornava aquela aquisição, quase impossível, pois a alimentação e o vestuário praticamente consumiam, e consomem, todo o ganho do operário.130

Conseguir um local para morar não era uma tarefa simples, tendo em vista a elevação dos aluguéis que, na maior parte das vezes, eram incompatíveis com o salário do operariado, o que os obrigava ao deslocamento para longe do trabalho, onde os aluguéis eram mais baratos e onde também encontravam espaços vazios em que podiam erguer um barraco. Desse modo, o trabalhador se afastava progressivamente dos centros industriais e da “vida da cidade” e era, aos poucos, segregado espacialmente por sua condição de miserabilidade econômica. Assim, no começo do século XX, a moradia se consubstanciava (e ainda se consubstancia) em um fator de desequilíbrio social.

129 Ibid., p. 2.

130 CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil (1877-1944). 2. ed. São Paulo: Difel, 1979, p.

Enquanto a elite (da indústria e da produção de café) e uma pequena classe média viviam em mansões ou casas próprias, mais de 80% das habitações de São Paulo eram alugadas. A propriedade de uma casa não era definitivamente uma opção para os trabalhadores, que em sua maioria viviam em cortiços ou casas de cômodos, todos superpovoados.131

Ou seja, enquanto uma pequena parcela ocupava as melhores moradias nos centros da cidade, a outra, que compunha mais de 80% da população, tinha na moradia uma ilusão, revelando a extensa desigualdade econômica, social e espacial existente na cidade de São Paulo. Sem um poder aquisitivo que lhe permitisse sustentar um aluguel em locais com condições higiênicas de moradia, isto é, com saneamento básico, a classe trabalhadora foi impelida a ocupar a periferia da cidade, construindo cortiços que, “no começo do século XX, já eram a principal forma de moradia dos trabalhadores urbanos.”132

Os cortiços transformavam-se, assim, em uma solução ante a elevação nos preços dos aluguéis, pois abrigando, por vezes, uma família inteira no mesmo espaço, poder-se-ia compartilhar as despesas. Por outro lado, os próprios locais onde foram surgindo contribuíram para o seu barateamento, uma vez que “os primeiros bairros populares se formaram na várzea ao redor do centro da cidade, onde os terrenos eram menos dispendiosos por serem úmidos, irregulares, pantanosos.”133 Embora tenham-se configurado como uma solução à alta nos preços

dos aluguéis, os cortiços não foram de modo algum uma opção saudável, pois eram “verdadeiras pocilgas, sem ar bastante, sem os benefícios da luz, servindo de sala, quarto e cozinha e abrigando em alguns metros quadrados famílias inteiras.”134 Não

raro, os industriais “ofereciam” moradias aos operários próximas aos estabelecimentos fabris.

131 CALDEIRA, Teresa Pores do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São

Paulo. São Paulo: 34, Edusp, 2000, p. 214.

132 MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a cidade ilegal. Belo Horizonte, 2003, p.3.

Disponível em:

<http://www.fau.usp.br/depprojeto/labhab/biblioteca/.../maricato_conhecercidadeilegal.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2017.

133 DECA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Cotidiano de Trabalhadores na República (1884-1940). São

Paulo: Brasiliense, 1990, p. 26.

Sendo o parque industrial paulistano caracterizado pelo predomínio de fábricas de tamanho de médio e pequeno porte, destinadas principalmente a transformação, o que se presencia é a intercalação de estabelecimentos fabris no meio de residências proletárias e, consequentemente, o aparecimento de verdadeiros bairros mistos, industriais e residenciais a um só tempo.135

Ao estreitar a distância entre trabalho e moradia, o patrão melhorava a qualidade de vida do trabalhador, por outro lado, este via-se ainda mais dependente do patrão. Afilava-se o laço existente entre o industrial e o operário ao desdobrar a relação, agora sob novos papéis: o do proprietário e do inquilino. Dessa forma, verifica-se uma dupla dependência do proletariado, que estava ainda mais preso à fábrica. Acredita-se, também, que a habitação disponibilizada nos bairros industriais tinha o propósito de influenciar os hábitos dos trabalhadores, conter greves e moldá- los às maneiras e às necessidades do sistema fabril, dessa forma, esforçava-se para formar trabalhadores obedientes e passivos.

Brás, Belenzinho e Mooca são alguns dos bairros operários criados para “facilitar” a locomoção da classe operária até o local de trabalho. As casas eram construídas quase sempre “geminadas (duas a duas, quatro a quatro), todas mais ou menos iguais, de estilo pobre ou indefinível. Estendia-se, assim, em sua monotonia e em sua humildade, em filas intermináveis, que chegavam a ocupar quarteirões inteiros.”136 Destaca-se, porém, que a alteração da paisagem urbanística

da cidade de São Paulo, “outrora sossegada”137, ocorreu devido ao “surto industrial,

contribuindo, dessa forma, para o aumento populacional.”138 A partir dessa assertiva,

a questão do saneamento se fez presente na cidade desde o início do século XX, pois a “promiscuidade” na qual conviviam as famílias proletárias e, principalmente, a precariedade das moradias, se concretizava em uma problemática e em um empecilho à imagem de uma cidade moderna que se pretendia construir.

135 PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História- USP, n. 21-22,

p. 130. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/36445>. Acesso em: 25 ago. 2017.

136 PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História- USP, n. 21-22,

p. 130. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/36445>. Acesso em: 25 ago. 2017.

137 CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: Crime, Segregação e Cidadania em São

Paulo. São Paulo: 34, Edusp, 2000, p. 213.

Por outro lado, tendo o país abolido a escravidão recentemente e ainda sustentando a mácula desse regime, buscava-se “adequar as cidades à fachada progressista e modernizante que a República requeria e sepultar a simbologia do passado escravista.”139 Nesse sentido, foram providenciadas reformas urbanísticas

inspiradas “no que o Barão de Haussmann fizera alguns anos antes em Paris.”140 Os

novos bulevares

Incorporavam as condições para o anonimato e o individualismo, permitindo tanto a livre circulação quanto a desatenção às diferenças e ajudando, assim, a consolidar a imagem de um espaço público aberto e igualitário.141

Pensar o espaço urbano como local de anonimato e individualismo, onde as pessoas se olham, mas não se veem, contribuiu para mascarar os problemas decorrentes da desigualdade social. Em contrapartida, visando consolidar a imagem de uma cidade moderna e inovadora, tornou-se necessário fazer uma limpeza social. Em 1890,

O Estado de São Paulo criou o Serviço Sanitário, seguido pelo Código Sanitário de 1894. Logo em seguida, agentes do Estado começaram a visitar as moradias dos pobres, especialmente os cortiços, procurando por doentes e mantendo estatísticas e registros. Essas visitas geraram reações negativas: era clara para as classes trabalhadoras a associação de serviços sanitários com controle social.142

Assim, as reformas urbanísticas tornaram-se uma questão de saúde pública, recorrendo à presença de médicos sanitaristas para sanar os problemas sociais. “Identificando os pobres e suas condições de vida, as doenças e epidemias, os membros das elites começaram a mudar-se das áreas densamente povoadas da cidade para regiões um pouco afastadas e com empreendimentos imobiliários

139 MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: Ilegalidade, Desigualdade e

Violência. São Paulo. 1955, p. 18. Disponível em:

<http://www.fau.usp.br/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_metrperif.pdf >. Acesso em: 1 maio 2017.

140 Ibid., p. 18

141 CALDEIRA, Teresa Pores do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São

Paulo. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2000, p. 212.

142 CALDEIRA, Teresa Pores do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São

exclusivos.”143 A pobreza passa a ser vista, dessa forma, como uma doença

contagiosa, que requeria medidas de controle urgentes. Imaginaram a dispersão, o isolamento, a abertura e a limpeza como soluções para o meio urbano caótico e suas tensões sociais.144 A assertiva indica que o projeto médico sanitarista de

higienização da cidade consolidou-se por meio da segregação da classe trabalhadora, pretendendo, com isso, estabelecer a imagem de uma cidade progressista.

Contrariando a expectativa que se tinha, a de construir uma cidade moderna para se distanciar do ranço escravagista, “o universo urbano não superou algumas características do período colonial e imperial, marcados pela concentração de terra, renda e poder, pelo exército do coronelismo ou política a favor e pela aplicação da lei.”145 Longe disso, o que houve foi um projeto de urbanização segregador e

autoritário que, ao invés de resolver os problemas sociais, intensificou-os ainda mais com sua política discriminatória. Para além dos fatores listados acima, motivadores das greves, o proletariado teve que lidar também com a violência policial.