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Jornalismo e bases de dados: uma linha do tempo

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Capítulo I – COMUNICAÇÃO E TECNOLOGIA

1.3 Jornalismo e bases de dados: uma linha do tempo

Entre processos rotineiros de produção noticiosa, o Jornalismo procura denunciar pessoas, instituições ou empresas cujas atividades atentam contra o interesse público, utilizando-se, para isso, de ferramentas de investigação (QUESADA, 2004, p. 125). “Investigar” significa contrastar toda a informação que se manuseie – como fontes documentais –, verificar todos e cada um dos dados e, especialmente, trabalhar sustentando uma sólida ética profissional (QUESADA, 2004, p. 127). Nesse cenário, é fácil identificar que a relação entre informação jornalística e tecnologias de armazenamento não é nova. Há registro de o jornal britânico The Guardian ter apontado o número de alunos matriculados nas escolas de Manchester, relacionando-o com os custos totais, sendo possível identificar quantos recebiam educação gratuita. Isso foi em 1821 (GRAY; BOUNEGRU; CHAMBERS, 2012).

Ainda que seja bem próxima, a relação entre os processos de investigação jornalística e a manipulação de dados por meio de computadores não é direta: nem toda investigação jornalística que resulta em reportagens do gênero aplica metodologias e conhecimentos das Ciências Sociais. Tanto que o método se fortaleceu nos Estados Unidos ao final do século XIX, mais de cem anos antes de um computador ter sido usado para apoiar uma cobertura – o ano era 1952, quando a CBS previu os resultados das eleições presidenciais. A partir daí, no entanto, máquinas passaram a auxiliar o jornalista a simplificar, tornar mais rápido ou expandir seu trabalho. A proximidade entre processamento rápido de dados e ferramentas computacionais se fortaleceu, a ponto de se tornar uma combinação essencial. Da mesma forma, a imprensa que se consolida nos EUA, cuja influência chega ao Brasil, assume a sua função social de fiscalização (watchdog), respaldada por esse tipo de notícia.

Contudo, ao perpassar o jornalismo, a palavra “informação” adquire contornos a partir da forma como é fabricada: na visão de Adelmo Genro Filho (1987), além de “zeros e uns” contextualizados, existem procedimentos, com vistas a objetivos específicos, pautados por relações sociais produzidas pelo advento do capitalismo e dos meios industriais de difundir informações. Mesmo em reportagens mais elaboradas, essa variável não pode ser desprezada.

A notícia jornalística não pode ser considerada como uma modalidade da informação em geral. Não foi a transmissão genérica da experiência – o que sempre ocorreu em sociedade –, e sim a transmissão sistemática, por

determinados meios técnicos, de um tipo de informação necessária à integração e universalização da sociedade, a partir da emergência do capitalismo, que deu origem à notícia jornalística (GENRO FILHO, 1987).

Por conta das práticas rotineiras atendendo aos interesses fundamentais do veículo e do imediatismo da informação como ponto de chegada – e não como partida, como ocorre na ciência –, o método científico pouco tem a ver com o jornalístico. Todavia, é por meio das técnicas de investigação que eles se aproximam. O uso de métodos de pesquisa social para relatar temas sociais objetivamente, juntando fatos aparentemente desconexos e revelando os seus antecedentes, impulsionou a Reportagem Assistida por Computador a partir do que se convencionou chamar de “Jornalismo de Precisão” – do inglês Precision Journalism.

Antes de começar a usar computadores para investigar histórias e se tornar pioneiro desse método, o jornalista Philip Meyer, ainda um jovem repórter do Miami

Herald, usou lápis e papel para criar uma base de dados, relacionando companhias de

seguros e candidatos à presidência do conselho de funcionários de escolas na comunidade. O ano era 1959. Treze anos depois, em 1972, ele lançou seu livro sobre o uso de práticas científicas próprias das Ciências Sociais (GALINDO ARRANZ, 2004).

Foi o professor Everette Dennis que, diante dos seus alunos da Universidade de Oregon, empregou o termo Precision Journalism pela primeira vez, em 1971, sendo que o mesmo termo foi adotado por Meyer logo depois. O surgimento do método coincidiu com o caso Watergate, um escândalo político descoberto pelo The Washington Post e sinônimo de investigação jornalística, além de também ter coincidido com o surgimento de uma fundação denominada Investigative Reporters and Editors – IRE21 –, que deu origem ao National Institute for Computer Assisted Reporting (NICAR), responsável pelo treinamento de profissionais.

Inicialmente, o Jornalismo de Precisão se entende como outra forma de jornalismo investigativo, uma forma em que as novas tecnologias desempenham um papel decisivo. Surgiu como uma tentativa de se trazer rigor científico ao jornalismo investigativo, desenvolvido principalmente para o uso de bancos de dados e de processamento por computador (GALINDO ARRANZ, 2004, p. 99, tradução nossa)22.

21

Disponível em: <http://www.ire.org>. Acesso em: 22 out. 2014. 22

Versão original: “Inicialmente, el periodismo de precisión se entiende como otra forma de hacer periodismo de investigación, una forma en la que las nuevas tecnologías juegan un papel decisivo. Surgido como un intento de aportar rigor científico al periodismo de investigación, se desarrolla fundamentalmente con el uso de los bancos de datos y su tratamiento informatizado”.

Mesmo tendo completado 40 anos, o Jornalismo de Precisão não se trata de uma prática popular no Brasil. Uma explicação para essa percepção, corroborada por Galindo Arranz (2004, p. 102), pode estar nas palavras do pesquisador alemão Michael Kunczik. Ele toma emprestada a visão de Meyer, segundo a qual o jornalista precisa gerenciar, processar, analisar e interpretar bancos de dados, e isso requer treinamento intensivo nas técnicas. Existe um grande perigo em produzir informação incorreta em função da má interpretação. Assim, das duas, uma: ou a investigação sociocientífica não pode ser tarefa do Jornalismo, ou é preciso melhorar de forma geral o nível básico de conhecimentos sociocientífico dos jornalistas (KUNCZIK, 1997, p. 104).

Outra explicação, observada por Lima Junior (2012, p. 209), está no atraso das adoções tecnológicas nas redações brasileiras. Enquanto os jornais norte-americanos como o USA Today, The Washington Post, Los Angeles Times e The New York Times desenvolveram departamentos internos com especialistas em informática e estatística, atuaram em conjunto com profissionais e tiveram suas reportagens premiadas com o Prêmio Pulitzer entre os anos 1970 e 1980, a Folha de S. Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a introduzir terminais na redação, já em 1983.

Atualmente, como lembra o pesquisador, houve um barateamento das máquinas computacionais e de outros dispositivos tecnológicos, ainda que o atraso persista. Mais do que isso, o atual ambiente computacional conectado posiciona o Jornalismo no cenário semelhante ao identificado pelas Digital Humanities, fazendo emergir novas possibilidades no tratamento de informações e dados.

A produção jornalística, acostumada a um modelo anacrônico e cuja nostalgia ainda se mantém presente, não absorveu as evoluções tecnológicas de maneira significativa. O resultado disso é que a maioria dos profissionais de jornalismo acredita que somente a utilização do computador de modo doméstico (uso de aplicativos como e-mail, mensageiros instantâneos, redes sociais, entre outros) já é suficiente para executar o modelo de Jornalismo baseado na era da escassez da informação (LIMA JUNIOR, 2011, p. 48).

Parece evidente pensar que, diante das mesmas questões, é tarefa importante usar a maior quantidade possível de lentes para tentar compreendê-la. Da mesma forma, por mais que o discurso acadêmico pautado pela interdisciplinaridade faça sentido, os obstáculos para que esses enlaces aconteçam são fortes. Berry (2011, p. 2) vai além, ao observar que as informações de que dispomos para construir nossa realidade nesse meio

precisam, necessariamente, se transformar em um grid de dados capaz de ser armazenado em computadores e transformado por algoritmos. Nessa escolha, descartamos outras representações pertinentes.

A forma de escapar desse limite, pautado por conhecimentos produzidos por uma mediação puramente tecnológica, é reforçar a interdisciplinaridade. Sem perder de vista o fato de que a pesquisa acadêmica em Jornalismo Computacional pode de fato ser útil, é preciso relacionar outras áreas do conhecimento, especialmente as que tradicionalmente sustentam a pesquisa em comunicação – como a Filosofia, por exemplo.

Desse debate, algumas lições podem ser pinçadas. Uma das mais importantes: ainda que seja possível apostar num enraizamento profundo das tecnologias que nos exigem um olhar rigoroso – e por mais que a onipresença das conexões somadas à digitalização da realidade, potencializadas pela internet, tenham impactado em nossa vida –, não é possível afirmar que estamos diante de uma revolução impulsionada por elas. A tecnologia não é boa, ruim ou neutra per se: são os valores humanos que lhe oferecem uma visão crítica. Como nos lembra Andrew Feenberg (2001, tradução nossa), A questão não é se a internet vai nos libertar, como se uma tecnologia tivesse esse poder, mas sim quais as sutis mudanças nas condições de organização e nas atividades públicas que serão introduzidas pela rede. Essa mudança já havia começado antes da ascensão do novo meio, mas de um jeito intermitente e com muito trabalho. A internet promete melhorar a capacidade da população em intervir nas decisões técnicas vitais em uma sociedade como a nossa. Isso tem a ver com mudanças fundamentais na estrutura da democracia em condições de avanço tecnológico23.

Novamente, não é difícil enxergar – seja de uma forma otimista ou apocalíptica – um futuro no qual o pensamento computacional será parte intrínseca das disciplinas tradicionais, tornando o termo digital humanities obsoleto. Não à toa, profissionais como Nicholas Diakopoulos24 e Jonathan Stray25 – que ministram cursos ou disciplinas de Jornalismo Computacional na City University of New York e na Columbia

Journalism School, respectivamente – identificam as perspectivas do Jornalismo

23

Versão original: “The issue is not whether the Internet will liberate us, as though a technology had that power, but rather the subtle change in the conditions of public organization and activity introduced by networking. This change had already begun before the rise of the new medium, but intermittently and laboriously. The Internet promises to enhance the ability of the population to intervene in the technical decisions so vital in a society like ours. This has to do with fundamental changes in the structure of democracy under conditions of technological advance”.

24

Site pessoal. Disponível em: <http://www.nickdiakopoulos.com>. Acesso em: 22 out. 2014. 25

Computacional (que será discutido no Capítulo III), aproximando ainda mais os profissionais da Comunicação e da Tecnologia, demonstrando que o caminho do diálogo entre as duas culturas apontadas por Snow é possível e necessário. Para tal, tomando as palavras do pesquisador Lev Manovich, um dos dois lados precisa fazer algum esforço para ver o outro. Que venham, portanto, os representantes da Comunicação interessados em fazê-lo.

O modelo de pesquisa big data humanities que existe agora é o da colaboração entre humanistas e cientistas da computação. É o jeito certo de começar a ‘mergulhar nos dados’. Entretanto, se cada projeto intensivo de dados feito nas humanidades tiver que ser apoiado por uma concessão que permitiria tal colaboração, nosso progresso será muito lento. Precisamos de humanistas capazes de usar a análise de dados e software de visualização em seu trabalho diário, para que eles possam combinar abordagens quantitativas e qualitativas em todo o seu trabalho. Como fazer com que isso aconteça é uma das questões chave para as ‘digital humanities’ (MANOVICH, 2011, tradução nossa)26.

Neste capítulo, a importância do diálogo estruturado entre áreas do conhecimento como um caminho possível para a compreensão de fenômenos contemporâneos no Jornalismo é reforçada. A Comunicação vivencia desafios epistemológicos para ser reconhecida e fortalecida como ciência, ao passo que sua relação com a Tecnologia amplia suas fronteiras com outras áreas do conhecimento e, consequentemente, seu horizonte científico (PEREIRA, 2014). Não deixa de ser um caminho parecido com o da Ciência da Informação, que começou quando, a partir de 1951, Calvin Mooers debruçou-se sobre o tema “recuperação de informação”. Ele elaborou três perguntas que carregam o espírito das conexões interdisciplinares e que permanecem atuais: como descrever intelectualmente a informação? Como especificar intelectualmente a busca por ela? Quais sistemas, técnicas ou máquinas devem ser utilizados para isso?

O próximo capítulo trata dessas relações, além de dar ênfase ao principal elemento deste trabalho.

26

Versão original: “The model of big data humanities research that exists now is that of collaboration between humanists and computer scientists. It is the right way to start ‘digging into data’. However, if each data-intensive project done in humanities would have to be supported by a research grant which would allow such collaboration, our progress will be very slow. We want humanists to be able to use data analysis and visualization software in their daily work, so they can combine quantitative and qualitative approaches in all their work. How to make this happen is one of the key questions for ‘digital humanities’”.

No documento Download/Open (páginas 46-51)