• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2. A forma e o lugar de Jr 30-31

2.4 Análise da Forma e do Lugar de Jr 30-31

2.4.1 Jr 30,1-3

Jr 30,1-3 possui coesão interna. Nota-se uma semelhança literária entre a frase do v.2a e a do v.1. Ambas encerram-se com o infinitivo construto

rmoale

le’mor “para dizer”, que aponta um conteúdo a ser expresso sequencialmente no texto. No v.2b, identifica-se outra frase: “Escreve para ti todas as palavras que falei para ti, num livro”. Por essa frase, somos arremessados ao v.1, à “palavra” anunciada lá. As “palavras” do v.2b são “a palavra” do v.1.

O v.3 apresenta outra introdução: “porque dias virão, oráculo de Javé”. Nos textos proféticos, a expressão “porque dias virão” caracteristicamente demarca um novo trecho literário. É o que acontece também aqui, em Jr 30-31 (veja 31,29-30; 31,31-34 e 31,38-40). Este v.3 está conectado com os v.1-2 pela forma verbal

rm;a'

’amar “dizer”. Isso porque a expressão “diz Javé” aparece nesse v.3. Ademais, na própria introdução do v.3, percebe-se a origem divina da fala, pela expressão “dito de Javé”. Certamente o v.3 há de ser entendido como conteúdo da “palavra” dos v.1-2. No v.3 está o que Javé falou.

O v.4 volta a se referir às “palavras”. Mas este verso inicia outra subunidade literária, como já foi demonstrado na delimitação das perícopes.

Portanto, há uma notável coesão interna em Jr 30,1-3. Mas, quanto ao estilo, observa-se uma mescla entre prosa e poesia. A repetição de frases e ideias, que se constitui como característica básica da poesia hebraica400, só pode ser percebida no v.3. Após a introdução (“Por que dias virão, oráculo de Javé”), leem-se três frases, advindas da boca de Javé:

eu reverterei a prisão do meu povo Israel e de Judá, diz Javé,

e eu os farei retornar à terra que dei para os pais deles, e a possuirão.

Na primeira frase, a temática é a reversão da prisão. A segunda frase apresenta a temática da “terra”. A terceira frase, por sua vez, continua a temática da segunda: é a posse da terra. Parece que essa última frase é um ponto culminante. Diferente das duas frases anteriores, onde Javé era o sujeito das frases, essa terceira frase tem o “povo” como sujeito do verbo.

Nos v.1-2 a repetição está ausente. O texto é prosaico. Portanto, pode-se afirmar que o estilo de Jr 30,1-3 é tanto prosaico como poético. Esta constatação é muito importante para a pesquisa no livro de Jeremias. Pois, conforme observado no capítulo 1 desta tese, uma das afirmativas essenciais da escola europeia de interpretação de Jeremias afirma a dicotomia entre trechos poéticos e prosaicos. Na perspectiva dessa escola, os trechos poéticos devem ser considerados como ‘originais’, atribuídos a Jeremias, enquanto que as partes prosaicas supostamente vieram dos redatores deuteronomistas.

Não é fácil definir o gênero de Jr 30,1-3. O v.1 demarca o início do Livro da Consolação. Pode-se afirmar que 30,1 é o título de todo o conjunto composto por Jr 30-31. O v.2a é o dito do mensageiro. É costumeiramente designado pela crítica das formas como a “fórmula do mensageiro”. O v.2b é um imperativo para que Jeremias escrevesse as palavras de Javé. É uma nota explicativa da origem de todo o conjunto que segue, a saber, Jr 30-31, o Livro da Consolação. O v.3 é um oráculo de salvação, um dito de Javé, que expressa consolo para aqueles que estão longe da terra prometida.

400 Veja Milton Schwantes, Sentenças e Provérbios – Sugestões para a interpretação da Sabedoria, São

Leopoldo, Oikos, p.171-179; Pedro Julio Triana Fernández, Caminhar para a esperança – Uma leitura de Joel 3,1-5, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 1994, p.127-132 (dissertação de mestrado).

O Lugar

Vários autores/redatores contribuíram para composição de Jr 30,1-3. As duas

introduções (v.1 e v.2a) denotam a coletividade de autores. O v.1 possivelmente foi escrito pelos colecionadores do livro de Jeremias. O texto faz referência à “palavra que aconteceu para Jeremias”. Essa expressão também consta na introdução de outras mensagens jeremianas: 1,1; 2,1; 7,1; 11,1; 21,1; 25,1; 26,1; 33,1; 34,1; 35,1; 36,1; 46,1. O v.2 provavelmente foi escrito por Baruque, secretário de Jeremias. Embora a ordem da escrita do

rp,se

seper “livro” seja endereçada a Jeremias, provavelmente o profeta desconhecia a arte da

escrita, e Baruque redigia seus textos (Jr 36).

Jr 30,1-3 é deutoronomista? Ou é de Jeremias? Se o texto for deuteronomista, a mensagem nele contida deve ser interpretada como um convite para que os exilados na Babilônia retornassem para a terra de Judá. O problema para essa interpretação é a menção “do meu povo Israel”. Ora, somente o Reino do Sul (Judá) foi atingindo pelo exílio babilônico.401 Considera-se ainda que Jeremias era de Benjamim, e essa região mantinha fortes laços com as populações do Norte, o antigo “Israel”. Não há razão, pois, para que o texto de Jeremias proponha a volta de somente um exílio, aquele que atingiu Judá no século 6 a.C., já que o “Israel” (Norte) é mencionado no texto, e ele não foi transportado para a Babilônia. Por isso, a presente tese segue a proposta da BHS, que em seu aparato crítico considera “Judá” como adição402 (contudo, a presente tese considera que essa adição

provavelmente ocorreu na época do próprio Jeremias). Pode-se levantar então a suspeita de que as primeiras palavras salvíficas de Jeremias foram dirigidas ao Israel/Norte, antes de serem aplicadas à Judá num contexto posterior. Constata-se ainda que “Jacó/Israel” inúmeras vezes é mencionado em Jr 30-31 à moda dos profetas nortistas Oseias e Amós, sem qualquer relação com Judá (30,18; 31,2-5.18-20).

É possível concluir que o dito de Jr 30,3 não somente pode ser atribuído a Jeremias, como também evoca sua atuação junto às populações do Norte da Palestina (“meu povo Israel”). Isso pode ser comprovado pela análise da tradição subjacente ao texto. Estamos diante da tradição da terra prometida, especialmente relacionada à promessa aos patriarcas. Sabe-se que a tomada da terra prometida é uma tradição benjamita403, provavelmente

401 William MacKane, A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah, vol.2, p.751. 402 Também Rudolph e Weiser. Contra Duhm, Bright e Carrol.

403 Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, volumes 1 e 2, 2ª edição, tradução de Francisco Catão, São

celebrada numa festa em Gilgal404. Com isso é possível deduzir que o dito jeremiano primeiramente foi dirigido às populações nortistas, que desde o ataque assírio de 722 a.C. viviam afastadas da Palestina, sendo depois aplicado a Judá, nos anos imediatamente posteriores ao exílio babilônico. Portanto, a escrita do dito não aconteceu em uma única vez. Existem pelo menos duas redações.

A segunda redação provavelmente ocorreu por volta de 587 a.C. William L. Holladay sugere o momento próximo da queda de Jerusalém, quando Jeremias estava preso do pátio da guarda (32,2; 37,15).405 Baruque tinha acesso ao profeta (32,12), e é possível, conforme afirma Holladay, que Jeremias ditou ao seu amigo as palavras do

rp,se

seper “livro” (Jr 30,2).

Entretanto, a sugestão da presente tese é que o texto, já com a adição “Judá”, localiza-se de fato em 587 a.C., não nos momentos anteriores à queda do Estado de Judá, mas nos momentos imediatamente posteriores. Aventa-se a possibilidade de datar a composição final de 30,3 no cenário descrito em Jr 39-40, quando o Estado judaíta sucumbiu ao ataque da Babilônia. Jeremias e seu grupo viram nessa ruína a possibilidade dos pobres da terra retomarem o direito sobre a produção dos produtos da terra. Pois a monarquia judaíta, à semelhança do Reino do Norte, extorquia os bens dos camponeses.406 Entretanto, no cenário exílico, a colheita volta a ser abundante (veja Jr 40,12!). Para Jeremias, era o início de uma nova história para aqueles camponeses empobrecidos. É nesse chão que surge a promessa contida em Jr 30,3.

2.4.2 – Jr 30,4-7 A Forma

A coesão interna de Jr 30,4-7 não é facilmente percebida. Há duas introduções: o v.4 e o 5a (‘o dito do mensageiro’). No v.5a a raiz verbal

rm;a'

’amar qal perfeito “dizer” tem Javé

como sujeito. Contudo, na primeira frase do v.5b, o sujeito é expresso pela raiz

[m;v'

xama‘

qal perfeito “ouvir”, na primeira pessoa plural (“nós ouvimos”). O v.6, por sua vez, inicia-se

404 Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, p.291. Observando as diferentes concepções teológicas

sobre a conquista da terra prometida, von Rad interpreta tradição benjamita como inserida numa expressão cúltica que celebrava Javé como doador da terra; esta tradição, segundo o pesquisador alemão, diferenciava-se da ideia predominante nas fontes do “Hexateuco” indicadora da promessa da terra aos patriarcas.

405 William L Holladay, Jeremiah 2, p.171.

406 Haroldo Reimer, “Sobre economia no antigo Israel e no espelho da Bíblia hebraica”, em Ivoni Richter Reimer

(editora), Economia no mundo bíblico – Enfoques sociais, históricos e teológicos, São Leopoldo, Sinodal/CEBI, 2006, p.14.

com outra conjugação verbal. Trata-se de dois verbos imperativos plurais:

Wla]v; xa’alu

“perguntai” e

War>

re’u “vede”. O tom interrogatório das três primeiras frases do v.6 persiste

na sequência, no v.6b, já que a primeira frase deste v.6b inicia-se pelo advérbio

[;WDm;

maddu‘a “por que?”. Mas o verbo

ha'r

ra’ah qal perfeito está na primeira pessoa singular

(“eu vejo”). O v.6c, que é a última frase do v.6, apresenta o sujeito “faces”, tendo o verbo

%p;x'

hapak perfeito “transformar” no passivo (nifal). Assim, os v.5-6 apresenta a seguinte

sequência verbal:

V 5: qal perfeito terceira pessoa: dito do mensageiro (“assim diz Javé”). V.5b: verbo qal perfeito primeira pessoa plural: “nós ouvimos”.

V.6a: dois verbos no imperativo plural: “perguntai” e “vede”. V.6b: verbo qal perfeito primeira pessoal singular: “eu vejo”.

V.6c: verbo nifal perfeito: “transformaram-se” ou “foram transformadas”.

O v.6 é coeso, no aspecto formal. Pois aquilo que o interlocutor imaginário é arguido a ver (“vede”), ele, o autor do texto, vê: “eu vejo”. O v.6c é a constatação de que aquilo que o autor vê (macho/homem forte transformando-se em parturiente) é uma realidade.

O v.7 inicia-se com um

yAh

hoy “ai”. Na sequência, leem-se três frases nominais

referentes à ruína (“aquele dia”, o “tempo de angústia para Jacó”). A última frase, por seu turno, apresenta a raiz verbal

[v;y

yaxa’ nifal imperfeito “salvar”. Esta última frase demonstra correspondência em relação às demais, principalmente em relação a anterior, já que o elemento “Jacó” aparece implicitamente nela, pois ele, Jacó, seria libertado “dela” (

hN"M,mi

mimmennah), da “angústia” (hr'c' sarah) mencionada na frase anterior.

Mas é difícil saber o sujeito do anúncio do v.7. Seria Javé (v.5a)? Seria uma coletividade (“nós”, v.5b)? Seria um indivíduo (“eu vejo”, v.6b)? Pode-se inferir que a interação entre as ‘pessoas’ sustenta a suposição de que a voz profética surge numa coletividade social. Tanto a coletividade do v.5 quanto a individualidade do v.6 tendem ao

yAh

hoy “ai!” do v.7. Mas, no atual contexto redacional, considerando os v.5-7 com a

do v.7 provém do próprio Javé.407 “O profeta Jeremias poderia dar esta segurança somente no contexto de um oráculo”. 408

A partir desta última suposição, pode-se manter a coesão dos v.4-7, a despeito de suas diferenças formais.

Quanto ao estilo, Jr 30,5-7 é poesia, apesar de apresentar traços prosaicos. O v.5b é poético. Leem-se três sentenças:

Um som de tremor ouvimos,

um terror, e não existe paz

A segunda sentença,

dx;P;

pahad “um terror/tremor”, repete a ideia da primeira frase,

onde lê-se sobre o

hd'r'x]

haradah “tremor”. Mas a terceira frase inova. Pois as duas

primeiras dizem o que há (

dx;P;

pahad e

hd'r'x]

haradah). A terceira diz o que não há:

~Alv'

xalom “paz”.

O v.6 é parcialmente poético. A repetição pode ser encontrada no início deste verso, na interpelação aos interlocutores:

Perguntai urgentemente, e vede

O restante do v.6 é prosa. A repetição de frases e ideias está ausente. O v.7 é poesia. Após o

yAh

hoy “ai” inicial, observam-se quatro frases: Porque grande (será) aquele dia,

e não (haverá) outro como ele,

e (será) um tempo de angústia aquele para Jacó, mas dela será salvo.

Portanto, há uma mescla entre poesia e prosa, em Jr 30,4-7. Nota-se a seguinte variação de estilo:

Poesia: v.5b-v.6a

Prosa: última frase do v.6a até o v.6c

407 William Mckane, A Critical and Exegetical Commentary on Jeremiah, vol.2, p.756-757.

408 “The prophet Jeremiah could have this assurance only in the context of an oracle.” William Mckane, A

Poesia: v.7.

A estrutura de Jr 30,5-7 pode ser esboçada da seguinte maneira: V.5: a angústia de Jacó.

V.6: a imagem da parturiente. V.7: o dia da ruína.

Quanto ao gênero, Jr 30,5-7 é oráculo de lamentação409, havendo, contudo, significativas diferenças entre esses versos: o v.5 é uma audição; o v. 6 é uma visão (v.6); e o v.7 é um

yAh

hoy “ai!”410, um lamento fúnebre. Percebe-se que a lamentação é tanto coletiva (“nós ouvimos”, v.5) como individual (“vejo”, v.6).411

O Lugar

A autoria de Jr 30,4-7 é bastante discutida pelos pesquisadores. O v.4 é uma introdução. Para Kilpp, os v.5-6 seriam um anúncio de juízo de Jeremias dirigido a Jerusalém, enquanto que o v. 7 constituiria uma expansão interpretativa da ruína declarada nos v.5-6.412 Segundo Kilpp, em Jr 30,5-6 prevalecem os complementos verbais, e o v.7 é composto por complementos nominais. A reflexão do v.7 não se ajusta no contexto da audição e visão proféticas encontradas nos v.5-6. A expressão

WhmoK' !yIa;me

me’ayin kamohu “não haverá

como ele” (v.7) não se encontra em Jeremias. De acordo com Kilpp, o

~wOy

yom “dia” não

409 Para Bob Becking, o v.7 não tem a forma de um oráculo de lamentação. “The accusation (Anklage) is

missing. Merely the element of announcement (Ankündigung) could be seen in vs. 7.” Bob Becking, Between Fear and Freedom, p.148. Veja também Claus Westermann, Grundformen Prophetischer Rede, Muenchen, KaiserVerlag, 1960, p.136-140 (Beiträge zur evangelischen Theologie; 31). No entanto, a presente tese segue a proposta de Nelson Kilpp: os v.5-7 são um anúncio de ruína e simultaneamente um lamento em razão de uma angústia experimentada por aquele que profere o texto. Nelson Kilpp, Niederreissen und Aufbauen, p. 111.

410

yAh

hoy é uma interjeição: “ai”, “ferida”. Palavra derivada de cantos fúnebres. Ludwig Koehler e Walter

Baumgartner, Hebräisches und aramäisches Lexicon/HAL, vol.1, 1967, p.232ab. Essa palavra ajusta-se muito bem no contexto do v.5, não havendo, pois, necessidade de seguirmos a LXX, que traduziu evgenh,qh “tornou-se”, sugerindo a retroversão para o hebraico

hyh'

hayah “tornar/acontecer”. Wilhelm Rudolph, Jeremia, p.190, e William L. Holladay, Jeremiah 2, p.140 seguem a LXX. No entanto, a tradução do TM é apoiada pela Vulgata (Vae!) e Peschitta (hy).

411 É preciso seguir parcialmente a emenda aventada pela crítica textual: de fato, a expressão inicial do v.5 “pois

assim diz Javé” é uma adição posterior (conforme o aparato crítico da BHS), pois não coaduna-se com a terceira plural do verbo

[m;v'

xama‘ qal perfeito “ouvir” e com a primeira pessoa do verbo

ha'r

ra’ah “ver” no v.6. Excetuando-se essa emenda, a presente tese sustenta a manutenção da conjugação verbal do TM, não seguindo, pois, a tradução da LXX, avkou,sesqe, na segunda pessoa do plural, nem a proposta da BHS

, yt[mv

primeira pessoa, para concordar com

ytyar

“eu vejo” do v.6. Contra Rudolph; Weiser. Veja Nelson Kilpp, Niederreissen und Aufbauen, p.107, nota 2.

parece ser aplicado a 587 a.C., mas ajusta-se numa comparação hiperbólica com outro estágio do juízo, à semelhança da linguagem encontrada no pós-exílio, como em Jl 2,2. Contudo, pode-se indagar se “aquele dia” em Jr 30,7 não seria uma alusão específica ao cenário dos v.5-6. Ademais, Jl 2,2 apresenta uma linguagem diferente de Jr 30,5-7.

De acordo com as constatações de Herrmann, Jeremias só pregou palavras de salvação para alguns indivíduos (cf. Jr 1,8.19; 15,20), e não para Judá ou Israel.413 Portanto, para Herrmann, o conceito de “dia de Javé” proponente de salvação para Israel anunciada em Jr 30,7 não poderia provir de Jeremias. Também Holladay afirma que a palavra de salvação em Jr 30,7 é mera ironia, e na verdade o texto é uma terrível visão de julgamento.414

Böhmer defende que a imagem desenvolvida em Jr 30,5-7, que vincula a parturiente/transformação dos rostos com o dia de Javé, pode ser encontrada somente em Is 13,8 e Jl 2,6, e sugere que o texto de Jeremias seja dependente de Is 13,8.415 A possibilidade de salvação no dia de Javé é encontrada somente em Ob 17 e Zc 14,2. Esses três elementos (imagem da parturiente; transformação dos rostos; salvação no dia de Javé) encontram-se em Jr 30,5-7. Portanto, para Böhmer, esses versos de Jeremias foram escritos depois de 587, e originam-se nas expectativas de salvação relacionadas ao pós-exílio.

Ainda muitos outros pesquisadores situam a origem de Jr 30,5-7 no período pós- jeremiano do exílio ou do pós-exílico, pertencendo ao gênero escatológico.416

A presente tese referencia-se parcialmente na pesquisa de Bob Becking, o qual, embora desacreditando da autoria jeremiana de Jr 30,5-7, demonstrou a existência de inúmeros textos do Antigo Oriente Médio que se referiam a anomalias ou a mudanças de elementos, sugestivos de uma imagem parecida como esta encontrada em Jr 30,6.417 Normalmente são textos 'proféticos', onde os deuses prometiam transformar os homens em mulheres e os ricos em pobres/pobres em ricos. Também, já no século 8 a.C., havia cláusulas contratuais entre suseranos e vassalos, nas quais os vassalos são intimidados a obedecer ao suserano sob pena

413 Siegfried Herrmann, “Die Heilserwartungen im Jeremiabuch”, em Die prophetischen Heilserwartungen im

Alten Testament – Ursprung und Gestaltwande, Stuttgart, Kohlhammer, 1965, p.217s., 222, 2225s. (BWANT 5 F., H.5).

414 William Holladay, “Style, Irony, and Authenticity in Jeremiah”, em Journal of Biblical Literature,

Philadelphia, The Society of Biblical Literature and Exegesis, vol.81, 1962, p.44-54; William Holladay, Jeremiah 2, p.172-173.

415 Siegmund Böhmer, Heimkehr und neuer Bund - Studien zu Jeremia 30-31, Göttingen, Vandenhoeck &

Ruprecht, 1976, p.58-59 (Göttinger Theologische Arbeiten; 5).

416 Wilhelm Rudolph, Jeremia, p.189-190; William William Mckane, A Critical and Exegetical Commentary on

Jeremiah, p.759-760. Sobre os v.5-7, veja ainda Ulrich Schröter, “Jeremias Botschaftfür das Nordreich – Zu N. Lohfinks Überlegungen zum Grundbestandvon Jeremia xxx–xxxi”, em Vetus Testamentum, Leiden, E. J. Brill, vol.35, nº03, 1985, p.323.

de se tornarem mulheres, ou seja, desprovidos de qualquer tipo de poder/força.418 Portanto, a imagem de valentões tornando-se como mulheres já era comum no cenário de Jeremias, e pode-se aventar a hipótese de que, por ocasião do enfraquecimento do poderio assírio sobre a Palestina, a partir de 627 a.C., a imagem usada pelos poderosos para intimidar os mais fracos foi usada amplamente por Jeremias, principalmente para ironizar o poder bélico da monarquia de Judá (Jr 4,29-31; 6,22-26; 13,20-22; 22,20-23).

É preciso ainda fazer outra constatação. Dos quatro textos referentes à imagem de uma parturiente para descrever o enfraquecimento do exército/poderes governamentais (Jr 4,29-31; 6,22-26; 13,20-22; 22,20-23), três aparecem no contexto de lamentação, do mesmo modo que Jr 30,5-7. Em Jr 4,31, encontra-se um cântico fúnebre:

yli an"-yAa

’oy-na’ li “ai de mim”419.

A imagem da parturiente de Jr 6,24 é seguida por um convite à “lamentação” (

dP;s.mi

misppad, 6,26). No contexto de Jr 22,23, a lamentação é mencionada (22,18:

dp;s'

sapad qal imperfeito “lamentar”, e

yAh

hoy “ai”), embora o foco seja a sua ausência - o esvanecimento

da glória pessoal do rei de Judá. Por estas observações, pode-se arguir a favor da unidade literária de Jr 30,5-7 indicadora da autoria jeremiana. Jr 30,7 também é uma palavra de lamentação vinculada à imagem da parturiente (v.6), relacionada a uma situação de morte e desespero (v.5). Assim, o “tremor” (

hd'r'x]

haradah) e o “terror” (

dx;P;

pahad) referidos no

v.5 podem ser compreendidos como uma memória das aniquilações causadas pelas grandes potências nos pequenos países do corredor sírio-palestino, desde o século 7 a.C. (assírios) até século 6 a.C. (babilônicos). Essa memória expandiu-se grandemente com a desmilitarização de Judá pelos babilônicos nos inícios do século 6 a.C. A presente tese supõe que “aquele dia” (dia do juízo, v.7) situa-se especialmente nesse cenário histórico.

418 Veja em especial Bob Becking, Between Fear and Freedom. p.144. No caso, Becking cita um tratado assírio

do século 8a.C., quando Ashur-nirari V (755-745 a.C.) requereu de Mati’-ilu o cumprimento de um tratado

mediante o pagamento de tributos; em caso de descumprimento do regulamento, o rei assírio prometeu transformar Mati’-ilu e seus soldados em mulheres.

419 Há, no Antigo Testamento, diferenças formais entre

yAh

hoy e

yAa

‘oy. A palavra

yAh

hoy é uma interjeição

que ocorre no início de cantos fúnebres e nas introduções de declarações proféticas de desgraças. Já o termo

yAa

‘oy sempre se refere a um grupo concreto de pessoas, pois é acompanhado por pronomes pessoais e/ou pela preposição

l.

le “para” (como é o caso de Jr 4,31, cuja tradução literal é “ai para mim”). Ernst Jenni, artigo hoy “ay”, em Ernst Jenni, Claus Westermann (editores), Diccionario teológico– Manual del Antiguo Testamento, Madrid, Ediciones Cristiandad, vol.1, 1978, col. 668-670. Contudo,

yAh

hoy e

yAa

‘oy têm um sentido similar, em Jr 30,7 e 4,31: Jr 30,5-6 pressupõe uma situação terrível de morte, podendo o

yAh

hoy do v.7 ser facilmente aplicado àquela situação; o

yAa

‘oy de Jr 4,31 também aplica-se a uma situação que envolve morte, pois aquele que lamenta é ameaçado por “assassinos”.

O lugar vivencial de Jr 30,5-7 pode ser o culto, no contexto das lamentações (2Cr 35.25). Existe uma coletividade, uma comunidade (veja o plural: “nós ouvimos”, v.5), e alguém que conduz a fala (veja o singular: “eu vejo”, v.6). No entanto, a lamentação é entoada no contexto bélico. Há medo e “não existe paz” (v.5b). O “homem forte” (

rb,G<

geber)

tem sua face empalidecida, pela chegada de um exército estrangeiro (v.6). É um “tempo de angústia” (v.7). Considerando a menção de “Jacó”, que evoca o Israel/Norte, é possível afirmar a existência de uma antiga memória da invasão assíria sobre a Palestina, no século 8 a.C. As terras do Norte conheceram o terror dos exércitos assírios; ainda pode-se ouvir o som da “bota que pisa ruidosamente no chão” (Is 9,4) que tanto intimidou as populações nortistas, como se nota no texto isaiano do século 8 a.C. (Is 8,23, 9,1-4). Pode-se aventar que as populações nortistas migraram para Judá depois da queda do reino do Norte, e lá, no Sul, guardavam suas memórias e tradições.

Por outro lado, situando Jr 30,5-7 no contexto do profeta Jeremias, pode-se afirmar que

Documentos relacionados