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2. O SILOGISMO JURÍDICO NA APLICAÇÃO DO DIREITO: PERCURSOS PELA

3.3 O pensamento político arendtiano: repercussões da Estética Kantiana

3.3.1 Juízos Políticos e Sensus Communis

A leitura arendtiana do juízo estético kantiano é, primeiramente, consequência de uma reflexão política. Nesse sentido, Kohn (2003, p.27), ressalta que o julgamento relaciona-se com a ação porque torna possível transformá-la em narrativa, conferindo sentido aos feitos humanos. Exercer o julgamento é atribuição tanto do ator quanto do espectador:

Embora a interpretação do agente desapareça assim eu termina, enquanto perdura ela “ilumina” o princípio que a inspira. Espontaneamente, aquele que age julga esse princípio adequado para aparecer no mundo: ele lhe agrada e sua ação é um apelo aos outros, um pedido de que também lhes agrade (Kohn, 2003, p.27)

Ao destacar a função “persuasiva” dos juízos, estabelece-se uma conexão entre a

106 Em sua obra “A condição humana” (1958), Arendt (2007, p. 201) destaca, entre as demais atividades

liberdade, que é experimentada na vida política e o juízo, que pertence a vida do espírito.

Nesse sentido, Schio (2008, p.17) ressalta a importância de retomar o pensamento de Kant, a fim de esclarecer alguns pontos não desenvolvidos por Arendt. Ademais, é necessário demonstrar se o sentimento de “desprendimento pessoal”, de desinteresse, advindo do jogo harmônico entre imaginação e entendimento no juízo estético, pode

deixar o ser humano mais apto para o convívio com os outros. Além disso, indagar se pode haver algo de mais profundo, e que move o espírito em direção ao outro ser humano, e com tendência ao entendimento, à busca de acordo, de paz e de bem-estar (SCHIO, 2008, p.17)

As atividades do espírito, o pensar e o julgar, não se esgotam a si mesmas; isto é, possuem uma referência à alteridade. Conforme Macedo (2007, p.41), no juízo reflexionante há uma “uma referência explícita a todos os outros que compartilham o mundo comum comigo, os quais são levados em consideração por meio do exercício imaginativo da imparcialidade e da mentalidade alargada, por meio dos quais aquele que julga coloca-se no lugar do outro”. Nesse contexto, a afirmativa de que “os homens existem essencialmente no plural” (ARENDT, 2000, p.139), refere-se também ao fato de que, para viver com os outros, é necessário viver consigo mesmo, em observância ao princípio a não-contradição.

A fim de esclarecer dos critérios de validade do juízo político é necessário reportar-se a leitura arendtiana dos conceitos kantianos de “mentalidade alargada”, comunicabilidade e “sensus communis”, pelos quais ela pretende elucidar, ainda que de maneira lacunar, as consequências políticas do juízo estético.

Por sua vez, Kant define o gosto em função da comunicabilidade universal. Ele (KANT, KU, § 40 160 [2008, p.142]) explica

Eu retomo o fio interrompido por esse episódio e digo que o gosto com maior Direito que o são-entendimento pode ser chamado de sensus communis; e que a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode usar o nome de sentido comunitário, se se quiser empregar o termo “sentido” como um efeito da simples reflexão sobre o ânimo, pois então se entende por sentido o sentimento de prazer. Poder-se-ia até definir o gosto pela faculdade de ajuizamento daquilo que torna o nosso sentimento universalmente comunicável em uma representação dada, sem mediação de um conceito. O sensus communis é um sentimento comunitário, uma faculdade do julgamento que, em sua reflexão, considera, em pensamento (a priori), o modo de representação dos

outros seres humanos. Enquanto “faculdade do ajuizamento, [ele] é elucidado pela máxima de ‘pensar no lugar de qualquer outro’” (KANT, KU, § 40 158 [2008, p. 140]). A essa máxima corresponde uma maneira de pensar “alargado” e uma atividade de pensamento que se relaciona com a “sociabilidade”.

Por sua vez, na Décima Segunda Lição de Lições sobre a Filosofia Política de Kant (obra póstuma, que reúne notas de um curso proferido no início dos anos de 1970), Arendt apresenta sua perspectiva acerca do sensus communis, teorizado por Kant.

O sensus communis é o sentido especificamente humano, porque a comunicação, isto é, o discurso, depende dele. Para tornar conhecidas as nossas necessidades, para exprimir medo,alegria, etc, não precisaríamos de discurso. Gestos seriam suficientes, e sons seriam um bom substituto para o gestos se fosse preciso cobrir grandes distâncias. (ARENDT, 1994, p.71)

O sensus communis contrapõe-se ao estar sozinho. É um senso de partilha do mundo, que é comunicável sem a mediação de conceitos. Segundo Ricoeur (1997, p.136), “o sensus communis é um sentido da comunidade que as pessoas comuns partilham sem o apoio dos filósofos”. É por possibilitar a comunicação que o sensus communis relaciona-se com a pluralidade (em uma perspectiva de comunicabilidade), sendo que, especificamente no caso dos juízos reflexionantes, possibilita a que o “prazer”, sentido na harmonia das faculdades, seja representado em relação aos outros na “atividade de reflexão”, que é o ato de julgar.

Ademais, Arendt também estabelece uma diferenciação (2000, p. 378): o uso do termo em latim denota a intenção de Kant de diferenciar o que é o conhecimento básico (ou do senso comum107) deste “sentido extra”, que é especificamente humano porque depende da comunicabilidade. Ela (1994, p. 71) destaca que o sensus communis é uma “capacidade extra do espírito que nos ajusta à vida em comunidade”. Nesse sentido, Kant (KU, § 40 157 [2008, p. 139. Grifos do autor.]) afirma que:

Por sensus communis, porém, se tem que entender a ideia de um sentido comunitário, isto é, de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo a inteira razão humana e assim escapar à ilusão que, a partir de condições privadas subjetivas – as quais

107 Acerca do senso comum, Kant (KU, § 40 156 [2008, p. 139. Grifos do autor.]) afirma: “O entendimento humano comum [der gemeine Menschenverstand], que como simples são-entendimento

(ainda não cultivado) é considerado o mínimo que sempre se pode esperar de alguém que pretenda chamar-se homem, tem por isso a honra não lisonjeira de ser cunhado pelo nome de senso comum [...], de tal modo que pelo termo comum (não meramente em nosso língua, que nesse caso, efetivamente contém uma ambiguidade, mas também em várias outras) entende-se algo como o vulgare que se encontra por toda a parte e cuja posse absolutamente não é nenhum mérito ou vantagem.”

facilmente poderiam ser tomadas por objetivas – teria influencia prejudicial sobre o juízo.

O sensus communis, enquanto sentido extra, que resume as percepções dos cinco sentidos (privados) e os relaciona com o mundo exterior, possui um papel importante porque sintetiza as percepções dos cinco sentidos, que são privados, e permite a sua comunicabilidade.

No caso dos juízos estéticos, permite que a sensação de “prazer” seja também comunicável. Segundo Arendt:

O ‘isto me agrada ou desagrada’ que, na qualidade de sentimento, parece ser totalmente privado e incomunicável, está, na verdade, enraizado neste senso comunitário e, portanto, aberto à comunicação uma vez eu tenha sido transformado pela reflexão que leva em consideração todos os outro e seus sentimentos” (ARENDT, 1994, p.73)

Em Kant, seguindo o exposto no §40 da KU, o sensus communis é uma faculdade de ajuizamento, a qual relaciona-se especificamente com a máxima do entendimento humano do “pensar alargado”. Nesse sentido, se, aquele que julga, deve levar em consideração os juízos possíveis de todos os outros em seu processo de constituição, o pensar alargado permite, em pensamento, a transposição para um “ponto de vista geral” e uma relativa imparcialidade. Segundo Arendt: “quanto mais amplo é o domínio em que o indivíduo esclarecido é capaz de mover-se de um ponto de vista a outro, mais geral será esse pensamento” (1994, p.43). Todavia, esse ponto de vista “geral”, “não é o resultado de um ponto de vista mais elevado, que pudesse resolver a disputa por estar totalmente acima da confusão” (ARENDT, 1994, p.44). Da mesma forma, a mentalidade alargada não implica na submissão do ponto de vista individual ao privado, enfatizando apenas a necessidade de tornar presente os pontos de vista dos outros. Tanto o juízo estético quanto o juízo político, dependem da referência ao outro para a sua validade (diferentemente dos juízos morais, por exemplo).

Nesse sentido, Arendt (2000, p. 379) enfatiza, com base no pensamento kantiano, que a tarefa de colocar-se no lugar do outro, de maneira ficcional, é possível pela

ideia de um sentido comum a todos, isto é, de uma faculdade do juízo que, em sua reflexão, leva em conta (a priori) o modo de representação de todos os outros homens em pensamento, para, de certo modo, comparar seu juízo com a razão coletiva da humanidade.

Assim, em relação ao juízo, o acordo consigo mesmo não basta: é necessário colocar-se no lugar das outras pessoas, imaginativamente, uma a uma, formando, para quem pensa,

uma comunidade de opiniões possíveis. Sem o sensus communis, o ser humano estaria restrito as percepções subjetivas, não sendo possível a comunicação e nem a noção de uma “realidade comum”; ou seja, é também pela capacidade de, em pensamento, colocar-se no lugar do outro, que as percepções antes individuais são tornadas comuns.

Dessa forma, pelo compartilhamento das experiências, os indivíduos associam- se em um mundo comum, indicando, conforme Arendt (1994, p. 18) que “os homens são interdependentes não apenas em suas necessidades e seus cuidados, mas em sua mais alta faculdade, o espírito humano que não funcionaria fora da sociedade humana”. Nessa perspectiva, como destaca Schio (2008, p.141), a atividade do juízo reconcilia o sensus communis, que abrange o mundo, e o pensamento, que requer certa introspecção.