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Parte II – Sobre a soberania Autoridade e poder entre qualidade jurídica e bem comum

3. Juan de Matienzo e o bem comum das repúblicas

A trajetória da mais conhecida obra de Juan de Matienzo, Gobierno del Perú, foi algo semelhante à da Historia Indica. Embora por motivos diversos, esse zeloso funcionário real também viu seu projeto editorial cair no olvido. Submetido em 1567 ao Conselho das Índias, o

manuscrito jamais voltaria às mãos de seu autor, sendo publicado apenas no século XX108. Mas

apesar desse fracasso, as considerações presentes no Gobierno conheceriam uma difusão considerável ainda durante a vida de Matienzo. Mesmo o fato de circular em forma manuscrita não impediu que essa obra se tornasse uma referência inescapável para quem se desse com os problemas administrativos peruanos nas décadas de 1560 e de 1570. Ainda assim, pairou sobre Matienzo o fato de não ter sido publicado, de ter-lhe sido vetada qualquer possibilidade de se firmar como autoridade reconhecida; pelo contrário, sua defesa intransigente da realização de reformas radicais, bem como sua tentativa de colocá-las em prática por sua conta e risco, fizeram desse funcionário uma personalidade bastante controversa no vice-reino. Mesmo aqueles, como Toledo, que tiveram em Matienzo um aliado, não deixaram de ressaltar sua teimosia109. É possível inclusive associar a essa posição inflexível o descompasso existente entre a promissora trajetória inicial do funcionário e a ulterior estagnação por ele sofrida em sua carreira. Ora, a atuação do magistrado na Chancelaria de Valladolid lhe conferiu uma reputação considerável levando-se em conta sua pouca idade. Esse reconhecimento teria seu emblema no campo do direito, com a publicação, em 1558, de sua obra Dialogvs Relatoris et Advocati Pinciani Senatvs. Essa publicação foi acompanhada pela nomeação de Matienzo como ouvidor da Audiência de Charcas, gesto que parecia prenunciar uma carreira de sucesso. Mas a trajetória ascendente dessa personagem pararia nesse ponto. Desde então, até sua morte em 1579, Matienzo jamais veria concretizada suas aspirações à promoção para postos de maior prestígio. Seus escritos não foram estranhos a essa situação de contínuo fracasso que marcou sua carreira; em várias ocasiões manifestava-se nesses documentos a profunda desilusão por parte de um zeloso funcionário frente à sua prolongada manutenção num posto subalterno110.

Mesmo para os parâmetros coevos, considerava-se a região de Charcas bastante isolada com relação ao restante do Império111. Se os circuitos marítimo-comerciais que ligavam

Lima à metrópole eram já muito mais dilatados numa comparação com a Nova Espanha, a região do Alto Peru acrescentava obstáculos suplementares apenas vencidos graças à descoberta de prata em Potosi. Com o fim de agilizar o escoamento desse produto articulou-se uma rede comercial que ligava as vilas do altiplano boliviano, como Potosi, La Plata e La Paz, a Arequipa, de onde partiam as embarcações rumo a Callao, vila que fazia as vezes de porto para Lima. Dessa forma, evitava-se percorrer o dificultoso caminho através dos Andes centrais ao mesmo tempo em que se vinculavam as riquezas minerais diretamente ao centro da

108 Sobre o percurso do manuscrito até suas publicações, cf. LOHMáNNà VILLENá,à Guille o.à Étudeà p li i ai e. àop.à it.àpp.àLXIII-LXIX.

109

Idem. p. XXXVIII.

110 Idem, ibidem. pp. XXX-XLVII.

administração castelhana, acentuando assim o processo de marginalização de Cusco no vice- reino. Essa modificação no panorama urbano do Peru não estava de modo algum dissociada da consolidação do domínio espanhol sobre a região. E é nesse contexto que deve ser compreendida a criação da Audiência de Charcas, empreendida em 1559 por Felipe II. Sua instituição significava a divisão da jurisdição sobre o vice-reino peruano, até então concentrada na Audiência de Lima. Mas mesmo um gesto aparentemente descentralizador adquire outro significado quando se recorda que Cusco, até então a vila mais populosa da região serrana, permanecia subordinada às autoridades limenhas112. Tratava-se, portanto, de instituir uma administração mais presente numa das regiões mais ricas do Império. Mesmo a escolha da sede administrativa da nova Audiência concorria para favorecer os desígnios da Coroa: diante de uma incontrolável situação gerada na cidade de Potosi, a vila de La Plata parecia oferecer condições mais vantajosas ao trabalho fiscalizador das autoridades reais113. Ao mesmo tempo em que zelava pelo bom andamento da arrecadação, a nova estrutura administrativa de Charcas deveria dar suporte e disciplinar as frentes de expansão colonial em direção aos espaços amazônico e platino114. Não à toa, aliás, localidades como Santa Cruz de la Sierra e

Tucumán viriam a ser utilizadas como trampolim para as novas razias missionárias promovidas pelos jesuítas na década de 1580115.

Na condição de ouvidor da Audiência de Charcas, Matienzo não poderia ficar indiferente a essas transformações. Até por conta de sua implicação pessoal no assunto, o funcionário não se cansava de insistir na ampliação de suas próprias competências. Foi com esse espírito que propôs, na segunda parte do Gobierno, a inclusão de Cusco na jurisdição de Charcas, bem como a transferência da capital peruana para essa vila116. É importante lembrar que a despeito do papel emergente desempenhado por La Plata na administração local, Matienzo insistiu reiteradamente em sua transferência para Cusco, o que atesta a importância dessa localidade aos olhos do ouvidor117. Sensível ao desterro a que fora submetido no Alto

Peru, o autor tinha como coincidentes em seu horizonte seu próprio deslocamento para o centro de gravidade da política peruana e a reorganização administrativa do vice-reino. Sequer faltava no Gobierno a sugestão de que seu autor seria a figura mais inclinada para desempenhar cargos de relevo na nova paisagem administrativa ali proposta. Nada poderia ser

112 Com relação às trajetórias simétricas e inversas de Cusco e de Lima, numa perspectiva comparativa com México-Tenochtitlán, cf. SANTOS, Eduardo N. dos.à ásà t adiç esà hist i asà i díge asà dia teà daà conquista e colo izaç oàdaàá i a. àop.à it.

113 Sobre a rivalidade entre La Plata e Potosi, cf. PRODANOV, Cleber C. op. cit. pp. 83-92. 114 Para uma discussão sobre a fronteira, em especial a amazônica, cf. SCOTT, Heidi V. op. cit. 115

EGAÑA, Antonio de. op. cit. pp. 7*-26*. 116 MATIENZO, Juan de. op. cit. pp. 207-216.

mais favorável à imagem de teimosia que Matienzo cultivava nos círculos burocráticos locais; ao reivindicar o rebaixamento radical das competências da Audiência de Lima, que deixaria de se constituir como intermediária entre Charcas e a metrópole, o ouvidor trazia para si a inimizade da poderosa burocracia limenha. É claro que essa contraposição não foi definitiva. Ainda que não assumisse muitas de suas propostas, Toledo dispensaria uma atenção especial às opiniões do ouvidor no que tangia à administração do Alto Peru. Embora seja discutível a possibilidade de o vice-rei ter lido o Gobierno ainda na Espanha, onde o manuscrito se encontrava, é certo que o governante teve acesso a cópias da obra quando de sua chegada a Lima. Mas essa afinidade era alimentada ainda pela relação pessoal travada entre ambos, iniciada por ocasião da visita geral levada a cabo por Toledo em suas jurisdições. Entre 1573 e 1575 o vice-rei percorrera a região de Charcas, o que denota sua preocupação com a situação crítica do local, denunciada há tempos por diversos cronistas. Nesse contexto, Matienzo adquiriu certa preeminência aos olhos do governante. Por um lado, foi encarregado de uma série de missões relevantes, como a fiscalização das minas de Potosi. Por outro lado, é possível ler em algumas das disposições de Toledo pontos que já haviam sido antecipados anos antes pelo Gobierno. Mesmo na Instrucción general para los visitadores, documento basilar da política levada a cabo por esse vice-rei, encontrar-se-iam muitíssimos ecos das proposições de Matienzo118. Além de ter inspirado essa e outras medidas, o ouvidor de Charcas pode mesmo ser considerado responsável direto pela redação de algumas disposições de Toledo119. Enfim,

sequer pode ser considerado indiferente o fato de que o eclipse político do vice-rei tenha sido seguido pelas crescentes dificuldades enfrentadas por seu predileto em La Plata120.

O comentador clássico da obra de Matienzo, Lohmann Villena, destacou o aspecto e le ti o à doà Gobierno,à ueà a ti ula iaà aà i uietaç o à daà d adaà deà à à p opostaà integral de reforma daí resultante121. O caráter global da reforma aventada pelo ouvidor

permitiria inclusive sublinhar-se de forma adequada o peso relativo que o tema estritamente religioso tinha no conjunto das preocupações de um funcionário real. Como não poderia deixar de ser, é possível perceber uma onipresença do tema evangelizador ao longo do livro. Contudo, os capítulos exclusivamente dedicados a esse tema apontam para uma sua consideração relativamente restrita no Gobierno122. Salta aos olhos, em marcado contraste, o fato de o livro

dedicar-se, primeiro, a temas tão mundanos quanto a justificação dos títulos de domínio da Coroa sobre o Peru, a necessidade de uma reforma tributária, a reativação das várias atividades

118 Idem. pp. XXXVI-XLIII.

119 LOHMANN VILLENA, Guillermo. I t odu i . àop.à it.à .à .àpp.à -7. 120 LOHMáNNàVILLENá,àGuille o.à Étudeàp li i ai e. àop.à it.àp.àXLIII. 121 Idem. pp. XXI-XXII.

produtivas então em dificuldade etc. Ao mesmo tempo, é decisivo levar em consideração que todas essas temáticas foram abordadas na primeira parte do livro, dedicada à reforma da epú li aàdosàí dios .àEssaàasso iaç oàte ti aàe a tanto mais curiosa na medida em que as revoltas indígenas apareciam apenas na segunda parte do Gobierno, dedicada por seu turno à epú li aàdosàespa h is .à‘e elava-se a esse propósito outro ponto de contato entre Toledo e o ouvidor, o qual se constituiria num dos mais prematuros propagandistas das ameaças advindas de uma possível conjuração indígena que reunisse, acrescentava este, os chiriguanos, os diaguitas e os Incas de Vilcabamba123. Desse modo, não apenas Cusco, mas também o Alto Peru estariam cercados de inimigos pontuais na iminência de multiplicar seu poderio através de uma confederação. É interessante observar que o contexto da expedição diplomática liderada por Matienzo junto ao Inca Titu Cusi Yupanqui, estava marcado por questões alheias a esse problema. Isso porque as tratativas junto ao governante rebelde, patrocinadas pelo governador Lope García de Castro, foram concebidas pelo ouvidor de Charcas como parte de suas atividades desenvolvidas por ocasião do processo de residência por ele levado a cabo contra o corregedor de Cusco, Gregorio González de Cuenca. Este era acusado, entre outras coisas, de provocar de forma unilateral os índios resistentes de Vilcabamba124. Ironicamente, González de Cuenca contava-se entre os autores laicos, tais como Ondegardo e o próprio Matienzo, que levaram a cabo uma crítica sistemática das tradições indígenas locais. Seja como for, é importante perceber que mesmo um fato corriqueiro do ponto de vista administrativo, como uma visita de residência, servia ao autor do Gobierno para reiterar o tema da ameaça indígena. Mas se a preocupação de Matienzo a esse respeito era análoga à de Toledo, sua atuação se encaminharia num sentido inverso: o funcionário reivindicava para si a responsabilidade pelas tratativas diplomáticas que teriam assentado as bases para uma paz duradoura junto ao Inca, ao mesmo tempo em que teriam aberto Vilcabamba à atividade missionária dos agostinianos125. Diversa, contudo, seria sua atitude com relação ao perigo

representado por chiriguanos e diaguitas. Se Vilcabamba representava uma ameaça instalada nas proximidades de Cusco, essas outras populações indígenas punham em risco a própria Audiência de Charcas, sendo objeto do trato cotidiano de Matienzo. No caso dos chiriguanos, acrescente-se ainda que aquilo que se encontrava em questão nesse caso era o próprio escoamento da prata extraída no Alto Peru126. Com relação aos diaguitas, tratava-se de uma população que pôs muitos entraves ao domínio espanhol em Tucumán, cidade governada por

123 Idem. pp. 294-310. 124 Idem, ibidem. pp. 294-297. 125

Sobre os diversos cenários atravessados pela resistência Inca de Vilcabamba, cf. WACHTEL, Nathan. La

vision des vaincus. op. cit. pp. 255-263.

uma personagem muito cara a Matienzo, Francisco de Aguirre, a quem aquele seria posteriormente ligado pelo casamento de seus filhos127. Mas independentemente da variedade das respostas propugnadas para as diferentes ameaças indígenas, resta significativo o fato de esse tema ter sido inserido na parte do Gobierno dedi adaà àdis uss oàso eàaà epú li aàdosà espa h is .àQualàse iaàoàse tidoàdessaài e s o?

Talvez essa questão possa ser recolocada em perspectiva com o posicionamento de Matienzo no que toca ao passado indígena. A esse respeito o autor guardava importantes convergências com aquilo que seria afirmado anos depois por Sarmiento de Gamboa. O trecho do Gobierno, já mencionado, onde o ouvidor narrava as tratativas diplomáticas junto ao Inca rebelde de Vilcabamba é revelador nesse sentido. O caminho percorrido por Matienzo foi, no entanto, algo mais tortuoso que a simples condenação característica da Historia Indica. Isso porque, logo de início, Matienzo apresentava a figura do Inca com tintas extremamente favoráveis, de maneira a insistir em suas virtudes. Dessa forma, o autor reforçava a tese da impropriedade da política belicosa levada a cabo por González de Cuenca com respeito aos índios. Ora, este seria condenado por ter feito ouvidos moucos a uma autoridade, o Inca, que se revelava, quando abordado de modo consequente, extremamente correta do ponto de vista civil e mesmo religioso128. É nesse litígio jurídico que adquire sentido a apresentação dada no Gobierno a Titu Cusi Yupanqui, retratado ali como um governante cioso de sair de seu exílio em Vilcabamba, desejoso mesmo de integrar-se à sociedade europeia e à sua religião. O modelo dessa conversão, aliás, já existia na figura do meio-irmão desse Inca, Sayri Tupac, que anos antes havia trilhado esse mesmo caminho129. O acordo estabelecido entre esse governante e os espanhóis, sob o governo de Hurtado de Mendoza, aliás, era um exemplo significativo das concessões que estavam em jogo entre as duas partes. Particularmente interessante nesse caso foi a dispensa dada pelo papa Júlio III ao casamento desse governante com sua irmã, Cusi Huarcay. Sua morte repentina e suspeita ocasionou um novo influxo da revolta de Vilcabamba, liderada agora por Titu Cusi. Acalmados os ânimos, a virtude desse Inca poderia garantir, segundo Matienzo, o sucesso das negociações por ele encabeçadas. A própria possibilidade de instituir um pacto com os índios rebelados negaria este que foi um dos elementos básicos da crítica realizada por Sarmiento de Gamboa: a impossibilidade de respeitar acordos. Mas essa aparente discrepância entre o ponto de vista desses autores parava por aí. Tal diferença era inclusive matizada ao notar-se que o otimismo revelado pelo ouvidor com respeito a Titu Cusi não supunha uma valorização geral dos Incas. Ao contrário, aquele governante era apresentado

127 LOHMáNNàVILLENá,àGuille o.à Étudeàp li i ai e. àop.à it.àpp.àXLVII-XLIX. 128 MATIENZO, Juan de. op. cit. pp. 294-310.

antes como uma exceção que negava a ordem tradicional nativa, donde residiam as condições excepcionais, posto que inéditas, da negociação negligenciada por González de Cuenca. Ao contrário, as referências feitas ao longo do Gobierno a respeito do passado incaico seriam em geral acompanhadas pela menção à atitude opressora adotada pelos governantes com relação aos seus súditos130. Aos Incas eram reputadas as opressões que teriam deixado os naturais num

estado de prostração invencível, o que era mesmo lido pelo autor como resultado de um castigo divino contra seus pecados. A partir de considerações semelhantes é possível inserir Matienzo entre aqueles autores que teriam esvaziado a ação Inca de qualquer caracterização política, contrapondo-se àqueles que a liam nos quadros de uma positiva centralização ti i a frente às behetrías de outros povos sul-americanos, posição observada em autores tão influentes quanto Cieza de León, Santo Tomás, Ondegardo, Acosta, Murúa, Garcilaso de la Vega e Antonio de la Calancha131.

Atentar a essas considerações é fundamental para que se situe o campo de autores com os quais Matienzo procurava dialogar, bem como os alvos por ele elegidos. De fato, nas pouquíssimas vezes em que foram endereçadas a alguém, suas críticas voltaram-se para autores identificados com uma posição lascasiana, quando não contra o próprio Las Casas. É preciso, contudo, guardar distância com relação ao contexto em que se davam as críticas análogas de Sarmiento de Gamboa. Isso porque, à diferença do que viria a ocorrer depois, a década de 1560 era um período no qual as publicações do dominicano ainda não tinham sido objeto de recolhimento sistemático pelas autoridades. Em sua Historia Indica, Sarmiento de Gamboa se limitava a mencionar o nome de seu antagonista, ligando-o a críticas genéricas, sem entrar no mérito de seus escritos. No Gobierno, ao contrário, é possível encontrar críticas que diziam respeito ao mérito dos temas tratados por Las Casas em alguns livros. Na verdade, essa afirmação merece uma restrição parcial na medida em que a única obra questionada possuía um objeto bastante restrito, embora premente no Peru: dizia respeito à apropriação dos tesouros escondidos nas huacas indígenas. Contrário à condenação dessa prática ali alardeada por Las Casas, Matienzo esforçava-se para legitimar a exploração dessas riquezas nos uad osà deà u aà ati idadeà pa a i e ado a 132. Em convergência com o ponto de vista do

ouvidor, anos depois seria Toledo a estabelecer medidas no sentido de incentivar essa mesma atividade, em sua Provisión para dar cumplimiento a los dispositivos reales tocantes a los tesoros, huacas y adoratorios que se descubrieren 133. Mas se a crítica endereçada por Matienzo

130 MATIENZO, Juan de op. cit. pp. 6-10.

131 MACCORMACK, Sabine G. op. cit. pp. 66-100. 132

MATIENZO, Juan de. op. cit. pp. 128-131.

133 TOLEDO, Francisco de. op. cit. v. 1. pp. 285-288. Sobre a exploração econômica dos tesouros dedicados às huacas cf. DUVIOLS, Pierre. op. cit. pp. 299-309.

ao dominicano limitava-se a uma sua obra marginal, mais duros e recorrentes foram os questionamentos avançados contra o representante por excelência do pensamento lascasiano no Peru, Santo Tomás134. É possível ler nas referências negativas feitas a esse religioso as marcas de uma problemática relação cotidiana, dado que o dominicano exercia a função de bispo de La Plata na mesma época e no mesmo local em que Matienzo desempenhava o cargo de ouvidor de Charcas e trabalhava na redação de seu Gobierno. Suas diferenças não se restringiam, portanto, aos destinos do vice-reino, mas incluíam ainda questões de ordem paroquial. O ouvidor acusava o bispo, por exemplo, de acobertar as recorrentes denúncias de corrupção feitas contra o clérigo Julián Martínez. Mas esse acobertamento estaria na origem de um delito ainda mais grave na medida em que o referido padre, às voltas com uma disputa pelo vicariato da província de Tucumán, teria sido um dos artífices da deposição, pelos moradores, de um governante tão caro a Matienzo como o era Francisco de Aguirre135. Mas a importância adquirida por essas e outras questões de natureza pessoal não chegava a apagar as discordâncias de fundo entre essas figuras no que tangia à situação peruana como um todo. Ora, a posição adotada por Matienzo a respeito dos índios, que seria replicada em seus fundamentos por Sarmiento de Gamboa e por Toledo, encontrava-se no cerne de suas reservas perante a prática missionária da primeira evangelização, simbolizada por Santo Tomás.

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