• Nenhum resultado encontrado

3 JUAN GOYTISOLO – MÁSCARAS E ESPELHOS

3.1 JUAN SIN TIERRA

Juan sin Tierra es una creación al revés

Juan Goytisolo

Ainda que não se defenda ser o autor de um texto o seu melhor intérprete, a recomendação de Juan Goytisolo no fragmento a seguir deve ser considerada: “El lector deberá internarse en la novela como quien se adentra en un sueño, enfrentado a un universo móvil y escurridizo, que se forma y deshace sin cesar ante sus propios ojos” (GOYTISOLO, 1975, p. 127). Com estas palavras Juan Goytisolo oferece uma

chave de leitura de sua obra Juan sin Tierra. A declaração do autor já antecipa para o leitor uma narrativa que representa não somente a ruptura definitiva de Juan Goytisolo com a sociedade espanhola e tudo o que ela significa, para ele, em termos de estagnação e opressão, mas também a destruição de seus valores pela transgressão e destruição da linguagem - veículo de sua manutenção e perpetuação. As palavras finais do romance, escritas em árabe, confirmam a decisão do autor: “estoy definitivamente al otro lado, con los parias de siempre, afilando el cuchillo”. O cuchillo – faca em espanhol - como símbolo de corte, ruptura e cisão, concretiza, no plano da linguagem, a proposta do autor.

Essa obra que encerra a Trilogia é, a nosso ver, a que melhor traduz a proposta literária de Juan Goytisolo. Juan sin Tierra (1977b) traz na lombada a classificação “Novela” [romance] mesmo com a declaração do autor de que a considera um ensaio. O título remete à obra Cartas de Juan sintierra (1811) de José María Blanco White, autor também español por quem Juan Goytisolo sempre declarou profunda admiração: “No es una simple casualidad si los dos escritores que más me han interesado, y cuya obra ha influído más profundamente en mí durante los últimos tiempos son dos malditos: Blanco White y Cernuda” (GOYTISOLO, 1977c, p. 290- 291). A capa (anexo 4), ilustração de Joan Batallé, mostra duas formas de cor escura, arredondadas e unidas entre si, que se destacam contra um plano de fundo de um horizonte esplendoroso. Vistas na perspectiva vertical, acompanhando os caracteres do nome do autor e título da obra, tem-se a imagem de duas cabeças em cor de argila que, unidas, olham em direção ao infinito.

Considerando a mesma imagem, vista de frente na perspectiva de quem a olha, pode-se identificar dois rostos anônimos, sem face, sem identidade, desfigurados e, poderíamos agregar, despossuídos de sua natureza humana. Seres a quem a sociedade europeia, historicamente, usurpou o estatuto de dignidade humana pelo critério de local de nascimento e cor da pele. Mercadoria e mão de obra silenciada cuja vida foi, de todas as formas, vilipendiada. Outra possibilidade de leitura da figura se apresenta ao inverter sua posição e, inclusive em conformidade com a proposta de transgressão do autor, observá-la em sentido inverso, ou seja, de ponta cabeça. Nessa perspectiva a figura mostra claramente o contorno de duas nádegas que remetem ao conteúdo mesmo da obra, que por diversas vezes valoriza os

atributos físicos dos escravos para criticar a hipocrisia da civilização ocidental, e de forma especial da sociedade espanhola na negação do corpo.

A citação de Octavio Paz na primeira das três epígrafes – " La cara se alejó del culo” resume um dos argumentos que Juan Goytisolo desenvolve nessa narrativa ao relacionar corpo e escritura, escrita e erotismo, no jogo que estabelece, pelo duplo sentido da palavra “obra”. Essa epígrafe extraída da obra Conjunciones y disyunciones (1968), é assim explicada por seu autor: “[...] hablo de la realidad que está debajo de la cintura y que la ropa cubre. Me refiero a nuestra cara animal sexual [...] la metáfora es tan antigua como la de los ojos „espejo del alma y es más cierta‟ (PAZ, 1968, p. 200).

A segunda epígrafe está em inglês - “I‟m completely dead to decency” de T. E. Lawrence. Em francês uma outra: “Le verb contre le fait, le maquis contre la guerre classique, l‟affirmation incantatoire contre l‟objectivité et, d‟une façon générale, le signe contre la chose” de Jacques Berque, apontam, para além do contexto da narrativa, a um recurso discursivo utilizado por Goytisolo nessa obra, na maioria das vezes para potencializar o efeito da ironia. Trata-se de um heterolinguismo, termo utilizado por Ana Mafalda Leite em artigo que aborda o tema da “manipulação linguística nos textos africanos, enquanto uma das formas de representação da oralidade” (LEITE et al, 2010, p. 157).

Escrita em espanhol intercalado com parágrafos em latim, francês, inglês e italiano, Juan sin Tierra (1977b) está dividida em sete partes numeradas com algarismos romanos, sendo que dentro dos capítulos há algumas sequências de espaços em branco. A partir da página 63 tem início uma numeração em algarismos arábicos, de 1 a 12, que se interrompe na página 88. O capítulo cinco começa na página 215 e tem numeracão em romanos de 1 a 13 dentro do mesmo capítulo. Alguns capítulos são entitulados, em espanhol e ou em latim e funcionam como textos soltos dentro da obra. Um detalhe que chama a atenção - após o capítulo 17, na página 293, aparece o número VII com a citação extraída de La Celestina, de Fernando de Rojas: “Pues ahora sin temor, como quien no tiene que perder, como aquel a quien tu compañía es ya enojosa, como caminante pobre que sin temor de los crueles salteadores va cantando en voz alta”. As páginas finais, 295 a 304, apresentam

sequências em branco dentro dos capítulos, permeadas de três asteriscos formando um triângulo. O capítulo encerra-se com a grafia do espanhol cubano e a última página, em árabe, como já comentado. A opção por essa forma especial de diagramação poderia ser, também, parte do projeto de ruptura executado pelo autor.

Juan sin Tierra (1977b), após uma página totalmente em branco e não numerada (a que corresponderia o número 306), encerra-se com o texto em árabe, que, segundo declara o autor em entrevista a Julián Ríos tem a intenção de criar um efeito de ruptura: “La obra había llegado a un punto final de descreación y la quería cortar de un modo brusco, imponiendo a los lectores una grafía distinta” (GOYTISOLO, 1977c, p. 9). Cumpre ressaltar que essa obra representou um verdadeiro marco na criação literária do autor e que não poucos críticos acreditaram que marcaria também o fim de seu processo criativo. O próprio Goytisolo compartilhou, por algum tempo, essa ideia porquanto entendia que havia explorado todos os limites do fazer artístico, inclusive uma espécie de aviso no final da obra sinaliza para tal possibilidade: “si en lo futuro escribes, será en otra lengua” (1977b, p. 303). Sobre a opção por encerrar o relato, escrevendo em árabe as palavras finais, o autor reafirma:

Para imponer esta sensación final de extrañeza, procedí en tres etapas: contaminación del paradigma castellano con la fonética negra de los esclavos cubanos; paso al árabe escrito con caracteres latinos, en una operación inversa – vengadora – a la de los escritos aljamiados moriscos; empleo de la grafía arábiga. Gracias a ello lograba que el mensaje final resultara incomprensible y el lector se sintiera excluido, como si le hubieran dado con la puerta en las narices (GOYTISOLO, 1977c, p. 10).

Esta explicação justifica, em certo grau, o projeto de Goytisolo, revelando a coerência com seu objetivo de transgressão e subversão da linguagem pela própria linguagem e a destruição de todos os paradigmas e valores, chegando ao extremo de não poupar sequer o próprio leitor. Em suas palavras: “He pasado de un compromiso con una determinada ideología política a un comprometerme a mi mismo con mi escritura por una transformación del mundo. Me considero ahora más comprometido que antes" (GOYTISOLO, 1975, p. 786). Registra-se que essa obra teve autorizada sua impressão na Espanha, mas negada sua divulgação e leitura nesse mesmo país, o que demonstra a ameaça que representou para os censores, à sua época, o conteúdo de sua crítica. Desconsiderando o título, que poderia ser tomado como abusivo pela censura franquista, e atendo-nos ao conteúdo em si, vemos que a crítica

mais incisiva se dirige antes à Igreja que ao Regime, o que nos permite confirmar o peso da influência dessa junto ao Estado.

Na entrevista concedida a Julián Ríos (1977c), Goytisolo fala sobre o processo de criação dessa obra e explica que ela surge a partir de dois fragmentos de Reivindicación del Conde Don Julián. O primeiro diz respeito a uma fala da personagem Don Julián: “recreador del mundo, dios fatigado, el séptimo dia descansarás” (Goytisolo, 1999, p. 128). O entrevistador considera que tal citação poderia ser uma possível explicação para a estruturação da obra em sete capítulos. O outro fragmento que o autor menciona relaciona-se a um aspecto escatológico relacionado a Sêneca, presente em Don Julián. O autor conclui: "En éste y otros muchos aspectos las dos novelas se imbrican, se encabalgan, se modifican en virtud de su influjo recíproco, intertextual” (1977c, p. 19).

Se em Señas de Identidad e em Reivindicación del Conde Don Julián, o narrador se coloca no papel de alguém que vive o dilema da busca e negação de si mesmo, em Juan sin Tierra a negação se volta contra seu próprio idioma e tudo o que por meio dele pode ser veiculado: as normas linguísticas, sociais e ideológicas, os comportamentos sexuais, o peso das tradições, principalmente as religiosas: “El Álvaro que se expresaba en Señas de identidad se matamorfoseó (sic) en el mítico Don Julián y ahora vagabundea por el tiempo y el espacio igual que un alma en pena” (DÍAZ- MIGOYO, 1977, p. 61).

A transgressão da linguagem se coloca assim como o próprio tema e eixo da obra em uma relação de destruição e ruptura que abarca autor e obra: “no basta con echar por la borda rostro, nombre, familia, costumbres, tierra: la ascesis debe continuar: cada palabra de tu idioma te tiende igualmente una trampa: en adelante aprenderás a pensar contra tu propia lengua” (GOYTISOLO, 1977b, p. 83). Nos parece claro que a partir do próprio título já é possível perceber que o projeto de ruptura se conclui com essa obra. O narrador se coloca como um ser andarilho e o último elo com sua pátria – o idioma materno perdeu seu significado. Totalmente destituido de identidade, o protagonista se sente, finalmente, a gosto. Curiosamente, essa última obra apresenta, mesmo que parcialmente, um dos critérios definidos por

Lejeune (2008) para a classificação da obra autobiográfica – identidade entre o nome do autor e o título da obra.

Goytisolo define Juan sin Tierra como uma obra ensaística e nesse aspecto cabe considerar que sua estrutura permite a leitura de qualquer de suas partes sem comprometimento da coesão do seu conjunto. Isso se deve em parte a independência de cada uma em relação às demais, mas, sobretudo em função do próprio processo de ruptura empreendido pelo escritor. O próprio autor sugere, em entrevista, que: “su mejor lectura [...] sería una en countdown” (GOYTISOLO, 1977c, p. 17). Merecem destaque os textos das páginas 163 até a 177, cujos títulos, escritos em maiúscula, expressões extraídas de fontes da literatura clássica, se ajustam ao contexto da obra:

- “PAULO MAJORA CANAMUS” [Cantemos coisas mais altas], trata-se de um verso

de Virgílio, empregado quando se quer passar de um assunto para outro mais importante. Faz uma reflexão crítica da História da Espanha encerrando com um

parágrafo que ironiza a justificativa histórica de creditar à presença árabe na península as falhas de seus governantes;

- “ANIMUS MEMINISSE HORRET” [minha alma treme de horror ao recordar tais coisas]. É um fragmento da obra de Arcipestre de Talavera: (corbacho o reprobación del amor mundano) e desenvolve uma justificativa para o fraco desempenho dos cavalheiros espanhóis em campo de batalha, atribuindo à prática sexual frequente daqueles, adquirida em função de sua constante presença nos banhos públicos coletivos;

- “DE VITA ET MORIBUS [Sobre a vida e os costumes.] Nesse texto o slogan usado pelo Governo para implementar o turismo - Spain is different é apropriado pelo autor, que o modifica, pelo uso do pronome possessivo de primeira pessoa do plural e coloca- se como partícipe ou apoiador da iniciativa: “yes, OUR CONTRY IS DIFFERENT” (GOYTISOLO, 1977b, p. 173). Na sequência, em seis páginas, o autor descreve as peculiaridades que tornariam a Espanha um país diferente e atrativo aos olhos do turista, encerrando com uma descrição em que combina um espetáculo de tourada com uma cena da Inquisição.

Sua narrativa reúne elementos da estética naturalista e cita, indiretamente, a Ernest Hemingway: “[...] como advirtió muy bien el egregio autor de „Muerte en la tarde‟ (familiar de la fiesta como Lope de Vega)” (p. 176). Ambos autores não gozam da simpatia do escritor que, inclusive, em Don Julián (1999) critica abertamente o segundo. Observa-se, portanto, a denúncia da violência como cultura e sua prática oficializada. Há ainda outros capítulos com títulos em latim, mas nosso recorte contemplou, de um total de 11, apenas os três iniciais a título de exemplificação de estratégia discursiva.

O autor entrelaça na narrativa distintos recursos estilísticos, sendo a ironia o mais frequente. Desenvolve na própria crítica uma teoria do romance e cria, pela subjetividade, um espaço autobiográfico que abriga marcas autorreferenciais, marcos temporais e ficção, que remetem ao que Manuel Alberca (2007) entende como autoficção – uma narrativa construída a partir de fantasias e experiências pessoais do autor, bem como outras das quais se apropria para inventar uma aventura.

Tal como em Don Julián, a narrativa de Juan sin Tierra é marcada pela repetição de frases e parágrafos, monólogos e descrições. O autor faz uso de paralelismos e um exemplo pode ser observado, pelo discurso das Vozes, em Señas de identidad e da personagem Vosk em Juan sin Tierra, ambas representando a Tradição. Essa, no contexto da Trilogia, simbolizaria a instância máxima do Poder, alvo da crítica de autor e narrador. A ação pode ser caracterizada como itinerante, considerando os deslocamentos espaço-temporais que envolvem temas e personagens ao longo da narrativa. Goytisolo explica que: “el orden cronológico y el temporal son sistemáticamente destruídos y la estructura de la obra, como la de un poema, se desarrolla en el plano espacial. El lector deberá „leerla‟ […] como un móvil de Calder” (GOYTISOLO, 1975, p. 127). Entretanto há um lugar fixo já que o narrador, em alguns momentos, descreve o local de onde desenvolve sua escrita:

De la vasta latitud del espacio a la no menos vasta latitud del tiempo : del mapa-múndi escolar al viejo manual de historia : repuesto apenas de la onírica razia por el orbe fantasmal agareno y presto ya, sin otro auxilio que el papel y la pluma, a una nueva, imprevisible incursión en la cuarta dimensión einsteiniana : enclaustrado, como siempre, en la minúscula

habitación : sin abandonar el ámbito de tu propia escritura : centrando tu interés en la trayectoria ejemplar del país que ha dejado de ser el tuyo [...] ( GOYTISOLO, 1977b, p. 163).

Essa ruptura de linearidade espaço-temporal cria, a nosso ver, uma outra dimensão de tempo – o tempo da escritura, que é consubstanciado na folha em branco, que dá ao escritor ampla liberdade e permite ao narrador deslocar-se segundo as demandas da narrativa: “dueño y señor de cosas y palabras, harto de Turquía y los turcos, en ese año inaugural del verano de 1973 [...] los aniquilarás a todos de golpe, dejarás de escribir” (GOYTISOLO, 1977b, p. 115). Nesse espaço ficcional, algumas referências históricas se alternam com as referências pessoais e configura o que Colonna define como autoficção especular: “o autor não está mais necessariamente no centro do livro; ele pode ser apenas uma silhueta; o importante é que se coloque em algum canto da obra, que reflete então a sua presença como se fosse um espelho” (COLONNA, 2014, p. 53).

A obra inicia-se na página 11 em media res, com o uso de letra minúscula: “según los gurús indostánicos, en la fase superior de la meditación, el cuerpo humano, purgado de apetitos y anhelos” – e já na segunda linha um tema recorrente, cuerpo humano, é citado. Desde esse fragmento a temática do corpo estará presente em toda a obra, estabelecendo uma relação de erotismo na associação corpo humano e corpus da escritura. Como nas demais obras que compõem a Trilogia, observa-se também a transgressão ortográfica na ausência de parágrafos; do uso de maiúsculas; na quebra ou omissão da pontuação e no uso de diversos gêneros e figuras de linguagem, com o predomínio da sátira, do tema do erotismo, da escatologia corporal, além de algumas passagens que se repetem, diversas vezes, ao longo da narrativa. Ao contrário das outras obras da Trilogia o autor faz uso da mesma fonte tipográfica; rompe, porém, a disposição formal e as regras de espaço, tempo e ação em conformidade com o projeto de transgressão total dos cânones vigentes.

Como a proposta está pautada na transgressão, que traz em si a ideia de ruptura e liberdade, o corpo também será considerado em suas possibilidades de subversão e liberdade. E nesse espaço da página em branco, o espaço da escritura, Goytisolo constrói sua teoria do romance, como se pode constatar no fragmento, que apesar

de extenso, merece ser transcrito, porquanto encerra as ideias principais de sua teoria:

eliminar del corpus de la obra novelesca los últimos vestigios de teatralidad : transformarla en discurso sin peripecia alguna : dinamitar la inveterada noción del personaje de hueso y carne : substituyendo la progressio dramática del relato con un conjunto de agrupaciones textuales movidas por fuerza centrípeta única : núcleo organizador de la propia escritura, plumafuente genésica del proceso textual : improvisando la arquitectura del objeto literario no en un tejido de relaciones de orden lógico-temporal sino en un ars combinatoria de elementos (oposiciones, alternancias, juegos simétricos) sobre el blanco rectangular de la página : emulando con la pintura y la poesía en un plano meramente espacial : indiferente a las amenazas expresas o tácitas del comisario-gendarme-aduanero disfrazado de crítico : sordo a los cantos de sirena de un instrumental e interesado contenidismo y a los criterios mezquinos de utilidad (GOYTISOLO, 1977b, p. 295).

Esse fragmento critica a estética realista e seu afã por personagens de densidade e espessura psicológica quase reais, obsessão dos autores do realsimo. Goytisolo lança mão da ironia e da paródia como recursos linguísticos para construir sua narrativa; e nos parece pertinente aqui observar que, dentro de sua proposta de transgressão e subversão da linguagem, o autor não usa a ironia tão somente em seu sentido clássico de zombaria para provocar no leitor algum tipo de reação. Ele joga com as palavras (teoria que constrói no intertexto da narrativa) e desenvolve sua crítica à sociedade espanhola destacando algum episódio, fictício ou não, usando uma argumentação que para um leitor desavisado poderia parecer encomiástica, mas resulta, na verdade, ridicularizadora e desmistificadora. Em suma: sua função é de subverter.

Em uma descrição que tem início na página 15 e se estende até a página 20, o narrador utiliza uma linguagem elegante, rebuscada e rica de minúcias para descrever um evento cuja natureza se contrapõe ao primor da linguagem:

[...] la próvida disposición del director de escena centrará la atención del indigno en verdad respetable en el doble trono vacío que, erguido sobre adamascado pedestal y protegido del sol por un airoso palio, aguarda también a las claras la presencia soberana que, como el viril en medio de los oros de la custodia, le conferirá de golpe su razón de ser y le colmará del augusto poder de su mágico esplendor radiante (GOYTISOLO, 1977b, p. 16).

A passagem relata uma solenidade descrevendo o ato de defecação coletivo em local público e em conjunto, dos escravos do Engenho San Agustín, de propriedade da família Goytisolo, em contraposição à inauguração do vaso sanitário (doble trono vacío), em cerimônia festiva que culmina, em clima de apoteose, quando a bisavó do narrador, “cerrando los ojos con místico arrobo” (GOYTISOLO, 1977b, p. 19), exclama: “he cagado como una reina” (p. 20). Esse fragmento exemplifica, em nosso entendimento, o duplo uso da ironia a que aludimos anteriormente. O uso de um discurso pomposo pela seleção rigorosa das palavras garante um efeito de sacralidade quase litúrgica a uma ação comum, cotidiana e desprovida de qualquer importância, ou seja, o ritual do discurso vazio, além do efeito de ridicularizar a pretensa nobreza das atitudes burguesas diante da miséria dos escravos que, despojados de sua dignidade, são mostrados como um espetáculo grotesco.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 141-160)