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A FALA DOS PASSOS: IMIGRAÇÃO JUDAICA PARA O BRASIL

1.4 OS JUDEUS E AS REDES DE SOLIDARIEDADE

Na vida de todo judeu pelos caminhos do mundo há sempre um judeu que chegou antes. Orígenes Lessa.

Uma ampla rede de solidariedade norteava as ações sociais vivenciadas por esses judeus, permitindo que essa união pudesse ser evidenciada não apenas no âmbito familiar, pois eram comuns as ajudas mútuas, fazendo com que o processo de imigração se tornasse menos complicado para aqueles que chegavam depois. Ajudar ou abençoar a vida do próximo, principalmente quando este é um irmão (judeu), fazia parte dos mandamentos da Torah, de acordo com o ethos judaico, representando portanto uma mitzvot, ou seja, uma atitude de fidelidade tanto com o seu Deus quanto com o seu próximo.

A chegada dos primeiros imigrantes ao Brasil, no início do século XX, foi marcada por momentos de dificuldades não apenas financeiras, mas culturais também. Não foi fácil para esses judeus ter que enfrentar um país com dimensões continentais, cuja cultura era totalmente diferente da que eles já haviam presenciado. Um país desconhecido, um clima totalmente diferente e para fomentar a situação, uma língua completamente nova. “Não deve ter sido fácil para nossos avós chegar a um país tão diferente sem ao menos falar a língua do país”, afirmou Jacques Stambonsky (2009). O desafio de adaptar-se ao novo espaço foi a mola propulsora para aprender a nova língua, por isso, procuravam logo estabelecer laços de amizades no âmbito da sociedade local. “Precisávamos da língua para falar. Porque se você não fala a língua de um país o menor habitante do país te trata de idiota. ‘Eu estou falando com você, idiota, você não entende?’” (OKSMAN, 1996).14

Cada um que chegava sabia do desafio que teria que enfrentar. Para os mais jovens, a adaptação não foi tão difícil se comparada com a geração mais velha, até porque os hábitos e

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costumes estão bem mais consolidados do que no coração aventureiro juvenil. Procurar criar o seu espaço em relação com o espaço da sociedade anfitriã era um desafio que necessitava ser superado; afinal, não teriam como viver isolados.

A partir de 1910, com a chegada dos primeiros imigrantes do século XX, tentando amenizar esse tipo de problema tão comum entre os imigrantes, redes de instituições começaram a ser criadas no Brasil. Elas foram responsáveis pelo auxílio no processo de absorção desses imigrantes, procurando ajudá-los a adaptar-se no Novo Mundo. Algumas das Instituições já existiam na Europa, outras foram criadas mediante as necessidades existentes em terras brasileiras, embora seguissem os modelos das Instituições judaicas de outros países. Essas Instituições judaicas serviram como uma verdadeira rede de solidariedade e começaram a atuar fortemente no Brasil a partir de 1915, quando começa acentuar-se o número de judeus imigrantes no país (CARNEIRO, 1995, LIMONIC, 2005, AHJB, 2009). No ano de 1914, foi fundada no Brasil a Joint - American Jewish Joint Distribution Committee, uma Associação internacional de origem estadunidense cujo principal objetivo era fornecer auxílio aos refugiados que chegavam ao Brasil.

Não foi fácil para os primeiros imigrantes a adaptação a um país com dimensões continentais e com uma cultura totalmente diferente e diversificada. Chegaram sem um destino certo, não podendo contar com ninguém nos primeiros momentos, mais tensos e inseguros. Esses pioneiros foram fortes, rompendo com inúmeras barreiras como o medo, a insegurança, passando por incertezas, e quantos não tiveram por companheira a solidão! As barreiras externas também estavam presentes no seu dia-a-dia, estas se apresentavam de maneira mais cruel, pois precisavam lidar com algo que até então eles não conheciam. Entre os principais desafios a serem rompidos estava a língua, veículo de comunicação indispensável, essencial para manter a sua sobrevivência, pois necessitavam dela para trabalhar.

Os que chegaram primeiro começaram aos poucos a se organizar e a ajudar os outros irmãos que, assim como eles, estavam vulneráveis a passar pela mesma situação caso não houvesse nenhuma intervenção. As Instituições judaicas beneficentes surgem com o objetivo de ajudar e auxiliar os imigrantes nas mais diversas situações.

1.4.1 A implantação da Ezra: auxiliando a imigração judaica no Brasil

Se tratarmos as pessoas como elas devem ser, nós as ajudamos a se tornarem o que elas são capazes de ser. Johan Wolfgang Von Goethe.

Figura 8. Lista de imigrantes feita pela Ezra. Abril de 1932. Fonte: Arquivo Histórico Judaico do Brasil.

A necessidade de auxílio aos imigrantes tornava-se uma realidade cada vez mais acentuada com o passar dos anos, devido ao número crescente de refugiados semitas que buscavam o Brasil como rota de fuga e sobrevivência. Surge no ano de 1916, uma das mais expressivas Instituições judaicas no país e que foi responsável por ajudar um número significativo de judeus que não tinham condições de sobreviver no país sem sua interferência. A Ezra, também conhecida como Sociedade Israelita “amiga dos pobres” teve um papel fundamental na história da imigração judaica no Brasil. Ela ajudou os que não tinham nada, auxiliou nas necessidades básicas e essenciais para a sobrevivência. Foi responsável por fazer uma triagem de todos os imigrantes que chegavam ao porto em São Paulo, procurando com isso, suprir as principais carências que cada viajante possuía naquele momento. A foto acima revela como essas pessoas eram organizadas e cadastradas, facilitando um maior controle das necessidades reais de cada indivíduo.

Seu objetivo era proporcionar condições dignas aos imigrantes recém- chegados, ajudando famílias na complementação dos aluguéis, além de distribuir alimentos mensalmente aos mais necessitados. Foi uma das instituições tradicionais da coletividade judaica em São Paulo, tendo desempenhado importante papel na absorção de imigrantes vindos ao Brasil a partir da Primeira Guerra. Seu princípio era o mesmo que regia a Sociedade das Damas Israelitas, ou seja, era sustentada pelos sócios fundadores, além de contribuição de membros da coletividade Judaica e promoção de eventos sociais e culturais (AHJB, 2009).

Uma das maiores portas de entrada no Brasil nesse período era o porto de Santos, em São Paulo, por isso, a Ezra pôde ajudar um número expressivo de judeus oriundos de várias partes não só da Europa, mas do Oriente. Dentre as funções exercidas pela Ezra, podemos destacar a atenção que esta dispensava aos pobres e necessitados, ajuda financeira por meio de empréstimos, assistência médico-hospitalar, visita aos enfermos, ajuda aos imigrantes que chegavam ao país para que estes pudessem encontrar seu destino em qualquer cidade do Brasil. Foram responsáveis também por ensinar a língua portuguesa para os que chegavam, bem como apoio para uma qualificação dentro de um espaço profissional objetivando dirigidos ao mercado de trabalho. A Ezra tornava-se, portanto, um dos braços acolhedores que muitos judeus tiveram quando entraram pelo Porto de Santos (AHJB, 2009).

No período em que Getúlio Vargas assume o governo no Brasil é quando inicia uma política restritiva para a entrada de imigrantes de origem semita, principalmente após o início da Segunda Guerra Mundial. Essa Instituição terá um papel singular na história dos judeus no Brasil, pois será responsável por prestar assessoria jurídica para muitos refugiados, bem como lutar junto às autoridades competentes pela legalização de vistos de muitos imigrantes (AHJB, 2009).

1.4.2 Imigração e a (des)construção dos estereótipos

As manifestações de solidariedade nem sempre foram registradas, como foi no caso de algumas Instituições como a Ezra, mas há registros históricos que comprovam que durante as décadas de 1930 e 1940, esses semitas tiveram uma participação política bastante engajada, posicionando-se contra a política restritiva de imigração que o governo brasileiro havia adotado, possibilitando romper, de certa forma, com essas barreiras impostas; isto chegou a beneficiar a entrada de quase dez mil judeus que queriam escapar das garras antissemitas que estavam gerando o Holocausto europeu naquele momento.

O que questionamos neste momento é: por que os judeus, pequena parte de um grande fluxo de imigrantes da Europa, provocaram tanta perturbação que acabaram proibidos de entrar no Brasil? E por que, somente um ano depois que a proibição se impôs, mais judeus entraram no Brasil legalmente do que em qualquer outra época dos vinte anos anteriores?

A resposta para ambos os questionamentos envolve uma mudança na maneira como um grupo, relativamente pequeno, embora poderosíssimo de intelectuais e políticos, via a identidade brasileira e o papel que os imigrantes e, portanto, residentes e cidadãos em potencial, teriam em sua conformação. Isso ocorreu porque os líderes das comunidades judaicas do Brasil, juntamente com membros influentes de entidades internacionais de auxílio aos refugiados, manipularam com sucesso vários estereótipos que os intelectuais e responsáveis pela política brasileira tinham a respeito dos judeus, de modo que os aspectos negativos do passado tornaram-se aspectos positivos do presente. As questões econômicas falaram mais forte dentro das medidas políticas adotadas em relação aos imigrantes semitas. A utilização da imagem de que o capital está presente na mão de muitos judeus facilitou a entrada de muitos deles no país, fazendo com que até mesmo um número considerável de integrantes da Inteligência brasileira se dobrasse diante desse argumento de que para o país era viável e importante recebê-los, seria uma medida positiva para a economia do país. Segundo o historiador Jeffer Lesser:

Muitos integrantes da intelligentsia brasileira e da elite política consideravam os judeus culturalmente indesejáveis, embora acreditassem que tinham um relacionamento herdado e especial com o poder financeiro e que, assim, poderiam ajudar o Brasil a se desenvolver industrialmente. A imigração judaica, portanto, desafia os responsáveis pela política, que consideravam os judeus uma raça não européia, mas também desejavam criar uma sociedade brasileira que refletisse a indústria dos Estados Unidos ou da Alemanha (LESSER, 2005, p.319).

A situação dos judeus no território brasileiro era bem diferente da questão judaica vivenciada na Europa e até mesmo na Argentina, onde o antissemitismo popular e oficial era praticado de maneira desenfreada. Na Argentina, por exemplo, o antissemitismo estava baseado em imagens distorcidas de judeus reais, com os quais a população em geral tinha contato constante, um contato regular. No Brasil, contudo, indivíduos influentes atacaram as imagens de judeus fictícios que, supunha-se, seriam ao mesmo tempo comunistas e capitalistas, e cujo estilo de vida degenerado tinha-se formado em enclaves étnicos europeus apodrecidos e atingidos pela pobreza. As avaliações grosseiras e pouco realistas eram emolduradas por uma

leitura ingênua do antissemitismo e do ódio aos judeus na Europa, aplicada a uma imagem inexata da vida judaica fora do Brasil, fossem cidadãos ou refugiados, enfrentavam poucos impedimentos cotidianos ou estruturais para atingir metas sociais ou econômicas. Nessa perspectiva, a questão judaica no Brasil era, na verdade, uma briga sobre estereótipos e como deveriam ser interpretados. Embora alguns líderes do Brasil tivessem as imagens tendenciosas de judeus filtradas da Europa, também se lembravam de que a maioria dos imigrantes não era muito rica nem muito pobre, raramente tinha atividade política e aculturava-se com rapidez na sociedade brasileira (CARNEIRO, 1995; LESSER, 2005).

Nas décadas de 1920 e 1930 a imigração judaica tornou-se o centro das atenções dos intelectuais e dos membros do governo brasileiro. Isso ocorreu devido ao aumento significativo de imigrantes semitas nesse período. Estima-se que os imigrantes da Europa fizeram a população judia crescer consideravelmente de uns quinze mil indivíduos em 1920 para quase três vezes esse número apenas duas décadas depois, conforme explicitado na tabela abaixo.