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2.2 Judicialização dos medicamentos

2.2.1 Judicialização de medicamentos experimentais

Hoje, no Brasil, a busca pela cura das doenças, associada ao avanço tecnológico em pesquisa cientifica, faz com que a cada dia, a indústria farmacêutica apresente diversos novos tipos de tratamentos, prometendo um efeito melhor que anteriormente disponível. Na sociedade de consumo em que estamos inseridos, é natural que as pessoas procurem produtos de última geração, no entanto, ocorre que na área da saúde, geralmente, esses tratamentos ainda são experimentais, isto é, não teve seu uso autorizado pelos órgãos de fiscalização sanitária do governo. (MOREIRA; CAPANEMA; RABELLO, 2010, p. 402).

Os medicamentos experimentais são produtos de pesquisas científicas, os quais necessitam passar por diversas fases e testes rigorosos antes de serem aprovados pelo órgão competente do país.

Neste sentido, contribuem os mencionados autores:

[...] O tratamento experimental somente pode ser utilizado no país no âmbito da pesquisa científica, custeado pelo laboratório pesquisador. Fora do âmbito da pesquisa científica, toda utilização e comercialização desse medicamento é feita no “câmbio negro”, sem observância às normas éticas, técnicas e sanitárias determinadas pelos órgãos de saúde pública do país. [...] (MOREIRA; CAPANEMA; RABELLO, 2010, p. 402).

No Brasil, para que o medicamento consiga autorização para a comercialização e circulação dentro do território, é necessário atender as normas determinadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a qual é uma agência reguladora, incumbida de fiscalizar insumos relacionados a saúde, sua previsão está no art. 6º da Lei nº 9.782/99:

Art. 6º A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras. (BRASIL, 1999).

Para atender as normas estabelecidas pela ANVISA, os medicamentos passam por uma fase experimental, nas quais consistem na identificação da substância ativa, a realização de diversos testes, ensaios clínicos, experiências em animais e pôr fim a pesquisa clínica em humanos.

Os autores José Pestana, Maria Cristina de Castro e Walter Pereira (2006, p. 04), sistematizam claramente as fases:

[...] O desenvolvimento de um novo medicamento inicia-se com a identificação de uma nova molécula, potencialmente ativa no tratamento de determinada doença ou sintoma. O processo de desenvolvimento do novo medicamento passa por experimentação animal, denominada como fase pré-clínica. Nesta fase, quando utilizados animais vivos, são preferidos aqueles menos desenvolvidos na escala filogenética. Modelos animais são utilizados para estudar mecanismo de ação, a segurança (eventos adversos) e a eficácia da nova molécula. Quando aprovada nessas fases, têm início os estudos em seres humanos, denominados como ensaios clínicos, ou estudos clínicos. Esses estudos clínicos são divididos em quatro fases diferentes e consecutivas. O novo medicamento para ser aprovado para uso clinico e comercializado deve ser aprovado nas fases I, II e III, consecutivamente. Os estudos de fase IV são realizados após o lançamento do medicamento no mercado farmacêutico. Este processo de desenvolvimento leva, em média, 10 anos, com custo médio de 300 milhões de dólares por medicamento que chega a uso clínico. De cada 10.000 moléculas candidatas identificadas, apenas uma passa por todas as fases e é aprovada para uso clínico. [...]

Conforme mencionado pelos autores acima, o medicamento só poderá ser comercializado no território brasileiro, caso aprovado nas fases I, II e III, ao contrário apenas as pessoas participantes da pesquisa podem ter acesso, contudo:

[...] O problema ocorre quando os laboratórios responsáveis pela pesquisa científica em andamento lançam o marketing comercial de tratamentos ou medicamentos ainda em fase experimental. Então a população começa a utilizar medicamento/tratamentos de saúde sem ter conhecimento de que se trata de medicamento experimental. O medicamento/tratamento em fase experimental geralmente tem custo elevado, e o cidadão que não está participando da pesquisa muitas vezes não tem condições financeiras para adquiri-lo e recorre ao Judiciário para exigir que o SUS lhe forneça o medicamento considerado experimental. Para fornecer o medicamento/tratamento experimental, o SUS descumpre as próprias normas, desvirtuando toda a lógica de seu sistema, para custear com recursos públicos um tratamento em experimentação, de eficácia ainda não comprovada. [...] (MOREIRA; CAPANEMA; RABELLO, 2010, p. 406).

Desse modo, quando o cidadão recorre ao Poder Judiciário para conseguir o tratamento experimental para a sua enfermidade, está exigindo que o Estado cumpra com a sua obrigação, mas ao mesmo tempo exige que o ente público desobedeça as suas próprias regras, o fazendo adquirir medicamentos experimentais que sequer estão disponíveis no mercado para aquisição.

Nesta seara, contribuem Gallas e Petersen (2015, p. 144):

[...] A judicialização de medicamentos experimentais, ou medicamentos que não obtiveram o seu reconhecimento pela Anvisa, perfaz uma lógica inversa a toda construção teórica de bem público, ao passo que se está priorizando o direito individual de modo a prejudicar o coletivo. [...]

Veja-se, portanto, que, diversamente do que se pleiteia, o direito à saúde não deve ser assegurado de forma meramente individual, negligenciando as políticas estabelecidas, sob pena de inegável violação à igualdade, mencionada no artigo 6º da Constituição Federal.

Ocorre que para o poder público conseguir fornecer os medicamentos de caráter experimental, é necessário despender elevado valor para a compra desse tipo de tratamento, contudo, deve-se levar em conta, que está beneficiando um indivíduo em específico, sem ter a certeza acerca da eficácia do medicamento ou se esse não apresentará riscos a quem o pleiteia.

Assim, as mencionadas autoras enfatizam que:

[...] Percebe-se que toda coletividade fica prejudicada, haja vista que os recursos destinados a custear o tratamento de medicamentos com eficácia

comprovada, não serão suficientes, pois estarão comprometidos em financiar uma incerteza. Para tanto, deverá existir uma estruturação por parte do Poder Judiciário a fim de suprir tal demanda e dirimir eventuais conflitos existentes, em razão de que os processos relativos a saúde “lato sensu” estão ultrapassando as previsibilidades de fornecimento e extrapolando a previsão orçamentária. Se não bastasse as situações de prescrição de medicamentos alheios ao recorte institucional da política de saúde, para a realização de tratamentos, os profissionais da saúde tem ousado a prescrever medicamentos em caráter experimental, ou seja, passou-se a exigir a prestação do Estado, “lato sensu”, de modo à judicializar medicamento que ainda não se pode aferir a sua eficácia, segurança e consequência[...] (GALLAS; PETERSEN, 2015, p. 145).

Com relação à obrigatoriedade do Estado em custear tratamento em caráter experimental, o Supremo Tribunal Federal, em maio de 2019, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 657718, pacificou seu entendimento no sentido de que “O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), salvo em casos excepcionais” (STF, 2019), a decisão foi tomada por maioria dos votos.

Destaca-se o voto do Ministro Alexandre de Morais, o qual assevera que “Não se trata de negar direito fundamental à saúde. Trata-se de analisar que a arrecadação estatal, o orçamento e a destinação à saúde pública são finitos”, posteriormente complementa:

[...]Para cada liminar concedida, os valores são retirados do planejamento das políticas públicas destinadas a toda coletividade. Senão, não teremos universalidade, mas seletividade, onde aqueles que obtêm uma decisão judicial acabam tendo preferência em relação a toda uma política pública planejada”. [...] (STF, 2019)

Ao final do julgamento, a Suprema Corte, fixou a seguinte tese para efeito de aplicação da repercussão geral:

[...]1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

I – a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;

II – a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;

4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.[...] (STF, 2019).

Desta maneira, de acordo com a recente decisão do STF, acerca da não obrigatoriedade dos Estados em fornecer medicamentos experimentais, surge para os cidadãos que os necessitam, a possibilidade exigir do seu plano de saúde a cobertura desses tipos de tratamentos de caráter experimental.

Salienta-se que mesmo o Estado tendo o dever de garantir mediante políticas públicas o acesso a saúde, conjuntamente com esse sistema, existe os planos de saúde (rede privada) os quais “poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde”, conforme previsto no artigo 199, §1º da Constituição de 1988.

Nota-se que frequentemente os planos de saúde, negam aos seus segurados a cobertura de tratamentos que envolvam medicamentos experimentais, sob a justificativa de não ter obrigação, imposta por lei, para atender e fornecer produtos considerados experimentais. Ademais, afirmam tratar-se de tratamento off-label, isto é, o remédio não tem indicação para a patologia prescrevida pelo médico.

Sob este viés, no ano de 2018, Superior Tribunal de Justiça, julgou o Recurso Especial nº 1721705, no qual decidiram que a operadora de plano de saúde, não pode negar cobertura a tratamento indicado por médico, sob o argumento de que o fármaco a ser utilizado está fora das prescrições descritas em bula registrada na Anvisa. (STJ, 2018).

Vejamos um trecho do voto da Ministra Nancy Andrigui:

[...] Quem decide se a situação concreta de enfermidade do paciente está adequada ao tratamento conforme as indicações da bula/manual da ANVISA daquele especifico remédio é o profissional médico. [...] Autorizar que a operadora negue a cobertura de tratamento sob a justificativa de que a doença do paciente não está contida nas indicações da bula representa inegável ingerência na ciência médica, em odioso e inaceitável prejuízo do paciente enfermo[...] (REsp 172105, p. 9-10).

A luz dessa perspectiva, Bender e Sturza (2016, p. 805), entendem que “o plano de saúde não pode se recusar a custear fármaco prescrito pelo médico, pois cabe a este definir qual é o melhor tratamento para o segurado”. Dessa forma, seria semelhante dizer que o convênio de saúde passa a determinar a melhor forma de cuidar do paciente, o que não lhe é autorizado, pois o médico detém soberania para decidir qual é o melhor tratamento para seu paciente, devendo, assim, o plano de saúde custear medicações e eventuais tratamentos necessários. (CAMPOS, 2018, s/p).

Além disso, há de se ponderar que havendo no contrato do plano de saúde, cobertura para a enfermidade do segurado, deverá o plano, consequentemente, cobrir os medicamentos e procedimentos necessários para assegurar a vida do paciente, incluindo o tratamento com medicamentos de caráter experimental.

Assim sendo, a negativa dos planos de saúde para o fornecimento de medicamentos experimentais ou fora do rol estabelecido pela ANS, não podem se sobrepor em face do consumidor que contribuí para seu convênio médico, na promessa que quando necessitar terá a contraprestação necessária para o custeio do seu tratamento. (CAMPOS, 2018, s/p).

Em consonância com o exposto:

[...] A busca pela cura da enfermidade do segurado, por métodos mais sofisticados, eficientes e modernos, deve sobrepor-se a quaisquer outras considerações, pois não se pode perder de vista que o bem envolvido no contrato celebrado entre as partes é a saúde e a vida do mero negócio por parte das administradoras de planos de saúde, pelo simples argumento de que não há cobertura contratual para determinados procedimento.[...] (BENDER; STURZA, 2016, p. 806).

Deste modo, o cidadão que dispõe de convênio de saúde privado faz jus ao medicamento/procedimento que for primordial para a recuperação da sua saúde. Nota-se que os planos, tentam de inúmeras maneiras transferir toda responsabilidade para o Estado, entretanto, o Poder Judiciário está impondo aos planos de saúde a incumbência de custear o medicamento experimental, mesmo não havendo eficácia comprovada, levando em consideração que os consumidores

são mais fragilizados do que os prestadores desses serviços. (BENDER, STRUZA, 2016, p. 807).

Portanto, observa-se a necessidade de uma análise acerca dos gastos excessivos, oriundos, dos medicamentos pleiteados judicialmente. Ainda cabe mencionar que elevados gastos também acabam por ferir os princípios orçamentários (GALLAS; PETERSEN, 2015, p. 146). Ademais, deve-se analisar a relação entre a garantia do direito à saúde e as suas consequências nos cofres públicos, atentando a cláusula da reserva do possível.

2.3 Considerações acerca da reserva do possível e o fornecimento de

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