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CAPÍTULO 3 – A PROPOSTA DE NANCY FRASER PARA SE PENSAR A

3.4 Justiça Social, Estado e Políticas Públicas

O que vimos acima foi um esforço teórico, por parte de Nancy Fraser, em torno do conceito de justiça social. Refere-se a uma outra discussão o modo como tal conceito é adotado pelas diferentes formas de organização do Estado. Uma coisa é discutirmos o quê é justiça social para um dado conjunto de autores, outra coisa é pensarmos qual o conceito de justiça incorporado pelo Estado e quais as conseqüências dessa concepção para sua estrutura como um todo e, conseqüentemente, para suas ações (entendidas enquanto políticas públicas). A intenção aqui é pensar qual o tipo de Estado que seria mais condizente com a noção de justiça social nos termos que foram anunciados por Fraser e que, portanto, seriam capazes de imprimir em suas políticas públicas as diversas demandas que emergem do complexo contexto político-social contemporâneo.

O Estado Moderno adquiriu, ao longo dos anos, diferentes configurações que exerceram grande impacto no seu modo de organização e principalmente na definição de qual seria sua função social. A ascensão do liberalismo, a partir do século XVIII, sobretudo na Europa, representa uma das grandes influências que determinou a configuração do Estado Moderno. As noções de Estado mínimo e livre-comércio estão no cerne do pensamento liberal, bem como a idéia de constitucionalidade (Estado de Direito, porém, não necessariamente democrático) onde todos os indivíduos são percebidos como iguais perante a lei e detêm o direito à liberdade e à propriedade. Na prática, isso significaria que a atuação do Estado se resume em garantir a ordem e o cumprimento das leis cabendo ao mercado a função de alocação dos recursos e vantagens econômicas (KERSTENETZKY, 2006). Portanto, o Estado desempenharia a função exclusiva de organizar o convívio social sem interferir na vida privada dos indivíduos. Além disso, com o predomínio dos ideais de liberdade e igualdade,

gradativamente, vão sendo incorporados pela sociedade moderna os valores democráticos, culminando na configuração do que fico denominado de democracia liberal. A idéia de justiça social aqui, portanto, estaria relacionada à garantia das liberdades individuais (direitos civis e políticos) sendo a intervenção do Estado no âmbito social praticamente inexistente.

Todavia, esse modelo sofre forte abalo, em meados do século XX, quando o colapso da economia mundial, com a crise de 1929, expõe a fragilidade do mercado enquanto instância privilegiada para a condução da economia. As desigualdades sociais ficam evidentes e a intervenção estatal passa a ser apontada como a solução mais adequada para enfrentar o drástico quadro socioeconômico que assolava diversos países. A partir, principalmente, das idéias desenvolvidas por Keynes, em 1936, em sua obra “Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda” inicia-se a tentativa de conciliação entre o econômico e o social, baseada primordialmente na indução da demanda, por parte do Estado, através de gastos públicos com o objetivo de promover o pleno emprego (FONSENCA, 2002). A expressão política das idéias keynesianas se deu através dos partidos social-democratas (em grande medida europeus) que instituíram o chamado Welfare State, inaugurando ampla intervenção econômica (planejamento da produção, controle de preços, monitoramento do mercado financeiro, revalorização salarial, etc.) e promovendo uma série de serviços sociais (na área da educação, saúde, assistência social, previdência, etc.)40. Leal (1990) destaca que a proposta keynesiana não se limita à estrutura econômica e à provisão de bens sociais, ela também pressupõe profundas alterações no conjunto das relações sócio-políticas. Segundo esse autor, o Estado se coloca na posição de mediador ativo das relações capital/trabalho:

[...] onde, de um lado, os proprietários dos meios de produção “permitem” aos não-proprietários a sua organização e a criação de instrumentos políticos que lhes possibilitem exigir seus direitos na repartição dos recursos e na conseqüente distribuição de renda; de outro, os não proprietários dos instrumentos de produção “concordam” com a manutenção da propriedade privada do capital social e com as regras da lucratividade. O compromisso da democracia capitalista só se viabiliza na medida em que o Estado passa a harmonizar a propriedade privada dos meios de produção com a gestão democrática da economia, fornecendo as bases técnicas para realização desse compromisso e o suporte político, de modo a possibilitar que as instâncias político-partidárias exerçam a ação democrática (LEAL, 1990, p. 05).

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Vale ressaltar que a intervenção estatal na economia não é inaugurada no século XX, pois, já no século XIX alguns países (por exemplo, a Alemanha governada por Bismarck) haviam empreendido ações nesse sentido (FONSECA, 2002).

A partir da metade da década de 1970, o modelo de intervenção estatal começa a apresentar sinais de esgotamento e as críticas surgem tanto por parte dos liberais quanto dos pensadores de esquerda. Dentre outros aspectos, a crítica liberal recai profundamente sobre a ampliação dos gastos sociais empreendidos pelo Welfare State. As políticas sociais e o aparato burocrático, necessário para sua manutenção, são vistos como causadores da elevação do déficit orçamentário e o conseqüente agravamento da crise econômica.

De maneira geral, no plano político-ideológico, os conservadores vêem no Welfare State uma concepção falida do Estado, e no que tange à dimensão econômica, acreditam ser a intervenção estatal o elemento responsável pela crise da economia, uma vez que esta impede a livre atuação do mercado e sua auto-regulação (HENRIQUE e DRAIBE, 1988). As primeiras críticas ao Estado de Bem-Estar por parte da esquerda surgiram quando este modelo de intervenção ainda se apresentava no auge de seu desenvolvimento. Como aponta Costa (2001), de maneira geral, esses autores vêem as políticas sociais empreendidas pelo Estado como um mecanismo que, em última instância, beneficiaria mais a lógica de acumulação da sociedade capitalista do que as classes desprivilegiadas, criando entre essas últimas e o Estado um vínculo patológico baseado na dependência. Ainda no debate progressista, Brunhoff (1991) defende uma outra perspectiva. Ao contrário do que afirmam os liberais – de que a desaceleração econômica é fruto do modelo de intervenção estatal – a autora acredita que a falência do Welfare State é resultado da crise econômica. Brunhoff aponta que o Estado de Bem-Estar apresenta contradições próprias que ao serem expostas a contextos econômicos adversos acaba sendo fortemente abalado. Segundo a autora, crises econômicas geram déficits orçamentários sob qualquer modelo econômico, a peculiaridade, nesse caso, reside no fato de que em tempo de crise o Estado se mostra incapaz de sustentar as políticas que justificam a sua própria manutenção, ou seja, o sistema de proteção social. Nas palavras da autora:

Todas as alocações públicas são tributárias do crescimento econômico e do emprego […]. Sem crescimento, há um déficit orçamentário elevado, como ocorreu em 1975 (depressão conjuntural) e sobretudo em 1981-1982. Portanto, o sistema de proteção social falha justamente quando é mais necessário, em caso de crise (BRUNHOFF, 1991:68).

Com a crise do Estado de Bem Estar Social, ganham espaço as idéias alinhadas ao neoliberalismo, que inauguraram uma fase de severo “ajuste econômico” e, conseqüente, diminuição dos gastos sociais e sérias restrições às medidas de proteção social. Durante toda a

década de 1990 e início dos anos 2000 esse modelo prevaleceu, levando a uma precarização generalizada de todos os setores da área social.

Nota-se que a função social do Estado varia no tempo e no espaço e, portanto, pode experimentar diferentes configurações. Não assistimos ainda a construção de um Estado que tenha sido capaz de atender aos requisitos propostos por Fraser para se alcançar a justiça social, todavia, tanto o Estado de Direito Liberal proporcionou ganhos (com a garantia de igualdade de direitos), como o Estado Social também permitiu grande avanços no campo dos direitos sociais. No entanto, as questões envolvendo, principalmente, as reivindicações identitárias ainda não foram contempladas pelas formas institucionais do Estado, como o conhecemos. Pensando justamente nas lacunas que ainda faltam ser preenchidas e nas falhas a serem corrigidas que essa pesquisa adquire sentido. A partir da análise empírica, a seguir, vamos ver de que maneira os municípios de Natal e Belo Horizonte têm incorporado algumas das categorias formuladas por Nancy Fraser tendo a justiça social como conceito norteador da investigação.

CAPÍTULO 4 – A BUSCA POR JUSTIÇA SOCIAL EM NATAL E BELO