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1 EPISTEMOLOGIA

1.1 QUESTÕES DO MÉTODO CIENTÍFICO

1.1.2 Contexto da justificação

1.1.2.4 Justificação como fenômeno social

Há um debate cada vez mais corrente na filosofia da ciência sobre a influência de contextos sociais na produção de conhecimento científico. Dentre as diversas abordagens possíveis, distinguem-se duas linhas características de tratar a questão. A primeira, objetivista, admite que esses fatores sociais modulam muitas propriedades da ciência, mas não afetam a objetividade do conteúdo científico. A segunda, o construtivismo social, afirma que não somente aspectos periféricos da atividade científica estão sujeitos a essas interferências, mas também sua objetividade.

A visão objetivista admite diversos modos de influência do contexto social na produção da ciência sem, contudo, afetar padrões objetivos de justificação e racionalidade. Isto é, qualquer que seja a relação com esses fatores, ela mantém intacta sua dimensão cognitiva, mantendo independente o caráter do conhecimento produzido. Essa justificação, independentemente de fatores sociais, é defendida com diferentes argumentos, e, aqui, são mencionados dois. O primeiro, do racionalismo universal de Imre Lakatos (1989), e o segundo, da pragmática histórica de Chalmers (1994). No entanto, antes se vê como algumas características sociais são mais amplamente aceitas como constituintes da ciência, para depois expor a defesa de sua objetividade.

Há diversos aspectos da atividade científica que, correntemente, são atribuídos a questões políticas, econômicas, éticas e sociais. Grupos de pesquisa precisam de recursos financeiros para subsidiar os custos envolvidos na sua atividade. Geralmente, esses vêm de financiamentos públicos e/ou privados e estão condicionados a diversos tipos de questões políticas para consegui-los. Nesse sentido, a efetivação da pesquisa científica é dependente de questões externas a seu conteúdo. Além disso, o próprio objeto de estudo da ciência pode ser determinado por fatores extracientíficos e, principalmente, modulado por questões éticas.

Diversas pesquisas, especialmente as que envolvem animais e humanos, devem passar por comitês de ética para poderem ser desenvolvidas. Em muitos casos, há controvérsias sobre os critérios utilizados para essa seleção. A opinião pública, que carrega em si impressões do senso comum com fortes influências sociais e religiosas, também tem grande relevância no estabelecimento de critérios. Portanto, fatores externos à linguagem da ciência permitem selecionar pesquisas que poderão ser realizadas, afetando em algum grau o conteúdo científico. Entretanto, para um objetivista, isso não implica que, uma vez estabelecidas as condições de desenvolvimento de uma pesquisa por fatores diversos, essas irão se manifestar no conhecimento dela derivado. Independentemente de como a pesquisa foi tornada possível e

do que lhe foi permitido estudar sem violação ética, o que dela resulta só pode ser justificado objetivamente. Assim, os aspectos mencionados são considerados periféricos à análise epistemológica da ciência, pois não comprometem sua parte cognitiva relacionada às características de seu conteúdo.

A concepção objetivista admite que o fator social possa influir de algumas maneiras na constituição da linguagem da ciência. Seguindo a distinção aqui adotada entre contexto da descoberta e contexto da justificação, os fatores sociais – segundo os objetivistas – podem influenciar no primeiro, mas não no segundo. Trata-se de uma restrição da sociologia da ciência às origens do conhecimento e não à sua validação, nesse âmbito entendida como objetiva (DOLBY, 1972). Assim, o modo como uma teoria é proposta pode carregar todo tipo de aspectos sociais relacionados, porém, ao trazê-la a público, ela será testada, e só sobreviverão os aspectos objetivos da proposta teórica. Desse modo, quando se faz uma análise histórica das teorias científicas, pode-se afirmar, segundo essa visão, que apenas as teorias que foram refutadas carregam fatores sociais identificáveis. Para as teorias que passaram por diversos testes e foram bem sucedidas, essa identificação não é válida (CHALMERS, 1994). Nesse grande filtro todo e qualquer aspecto não racional torna-se irrelevante.

Lakatos (1989) defende que as teorias científicas seguem critérios racionais e universais de aceitação. Como será discutido a seguir, há diversos problemas no que diz respeito ao estabelecimento desses critérios. Chalmers (1994) propõe que, mesmo não sendo possível estabelecê-los, a objetividade da justificação científica permanece de modo prático, sempre de acordo com os padrões contingentes no momento histórico em que se encontra.

Já a segunda vertente, o construtivismo social, nega as restrições mencionadas do âmbito da descrição do conhecimento científico pela sociologia. Nega, também, que exista um padrão privilegiado de justificação da ciência (FRENCH, 2009), assim como a pressuposição de que apenas a má ciência é socialmente influenciada. Dentre os autores dessa vertente estão David Bloor e Barry Barnes.

Destacam-se dois aspectos que essa postura traz para o debate sociológico da ciência. Primeiro, ela afirma que todo e qualquer fato científico é socialmente construído. Ou seja, um fato constitui-se como tal na medida em que há um consenso de sua existência. Cada grupo ou cultura atribui características à realidade de acordo com características presentes em seu convívio social. É uma postura antirrealista, pois não admite qualquer correspondência desses fatos com uma realidade além daquela descrita.

Isso acarreta uma segunda consequência importante, a de que a ciência não tem um padrão de justificação universal. A aceitação de uma teoria é atribuída a crenças da comunidade que a aprova (DOLBY, 1972). As crenças, por sua vez, são atribuídas a sistemas de relação social. Dessa maneira, a justificação perde sua objetividade, e a racionalidade estimada pela ciência é descrita de modo relativista.

Um dos argumentos a favor da ênfase da crença na aceitação das teorias é a subdeterminação da teoria pela evidência: uma mesma evidência poderá dar apoio empírico para duas ou mais teorias rivais (MOSER et al., 2004). Para um construtivista social, como Bloor, não há como justificar a predileção a uma dada teoria, sem atribuir essa predileção a aspectos subjetivos de sistemas de crenças.

Uma crítica a essa postura é a de que nenhuma teoria sociológica pode descrever de modo contundente a relação entre crença e ação, ou, no caso específico, de ação com aceitação, como afirma Karin Knorr-Cetina (apud CHALMERS, 1994).