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O capítulo que se segue tem como objectivo uma análise das vertentes social e cultural de poéticas nacionais que clamam a nação libertada, ou reivindicam fazer parte da nação, paisagem simbólica que busca pôr em causa o ideário etno-nacional colonial, detentor de um monopólio político silenciador de outros povos e culturas. Confere-se especial relevo ao Modernismo Americano do movimento Renascença de Harlem, pela razão de a vertente ideológica nele implicada se ter manifestado exemplarmente em forma de intervencionismo artístico, na sua reapropriação da cultura étnica vernacular, mas também cosmopolita, fazendo-se salientar a sua proposta de mudança social e política, enquanto inovação potenciada pela Arte.

As vozes criativas de Harlem, movidas pela ancestralidade africana e politicamente solidárias para com África, bem como a sua influência literária e ideológica nos escritores africanos, particularmente em Francisco José Tenreiro e em Noémia de Sousa, concentram a atenção deste capítulo. Como diferente oferta artística, dialogante com os espaços literários explicitados, convida-se a poética telúrica de Ruy Duarte de Carvalho que, apesar de exaltar um outro tempo noutra geografia, partilha com algumas escritas de Harlem um telurismo identitário de pertença. Todavia, a escrita poética de Carvalho cede-nos o cotejo com uma outra voz de inserção telúrica, uma voz sem cor ou com todas as cores presentes, que responde com um novo espectro cromático, o da cor da terra, contrariando, assim, a monótona geografia que o homem, desumanamente, pintou de si, a preto e branco.

Assim, o trabalho que se segue apresentará, no seu primeiro momento, um percurso esclarecedor das condições de emergência do movimento cultural Harlem Renaissance, pretendendo salientar, num segundo momento, marcas da sua transculturalidade, fruto da empatia identitária que esse período criativo afro-americano desenvolveria na poesia africana de língua portuguesa, especificamente em Francisco José Tenreiro (santomense) e em Noémia de Sousa (moçambicana), ambos poetas da “mulatitude” 80. Como prática evidenciadora da ilação que se pretende demonstrar, cabe aqui fazer a interpretação de um corpus literário constituído por três poemas: «Negro de Todo o Mundo»81, do primeiro livro, Ilha de Nome Santo (1942), de Francisco José Tenreiro (n. 1921-f. 1963); «Deixa Passar o Meu Povo» (25/4/50) e «A Billie Holiday, Cantora» (24/5/49) 82, de Noémia de Sousa (n. 1926 - f. 2002). Em Ilha de Nome Santo, do conjunto poético intitulado «3 Poemas Soltos»83, tributário da estética pan-africana e do Renascimento Negro de Harlem, o poema «Negro de Todo o Mundo» afigura-se o mais explícito da estética mencionada e onde Harlem é invocado de forma mais enfática e directa, onde a ideia de diáspora é representada de forma mais sistemática e diversa, começando pelo título, incluindo os seguintes vectores semânticos: negro, branco,

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Russell Hamilton considera alguns poemas de Tenreiro «Case(s) of mulattitude». Cf. Hamilton, 1975, p. 16. Salvato Trigo prefere o epíteto “poeta da mulatitude”, em vez da Negritude, alegando «[…] ser mais conveniente ao conjunto da obra poética de Tenreiro». Cf. Tenreiro, 1994, p. 7. Toma-se a designação “poetas da mulatitude”, porque as poéticas em questão são marcadas por um certo «crioulismo», por vezes disfarçado de negrismo. Utiliza-se o termo «crioulismo» introduzido por Salvato Trigo, in Tenreiro, 1994, p. 7.

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Francisco José Tenreiro, «Negro de Todo o Mundo», in Ferreira, dir., 1982, pp. 76-81.

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Noémia de Sousa, «Deixa Passar o meu Povo» e «A Billie Holiday, Cantora», in Mendonça, Fátima, Noa, Francisco, Saúte, Nelson, org., 2001, pp. 57-59 e pp. 134, 135.

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O conjunto poético intitulado « 3 Poemas Soltos» é constiuído pelos poemas: «Epopeia», «Exortação» e «Negro de Todo o Mundo». Cf. Ferreira, dir., 1982, pp. 69-81.

agressividade, trabalho braçal, dispersão e cosmopolitismo. Embora o livro Coração em África, particularmente o poema que dá o nome ao livro, disponha de composições poéticas susceptíveis de diálogos intertextuais, no âmbito da temática diaspórica gerada à volta da Europa, África e Américas, o poema escolhido revela, contudo, maior assertividade no que se refere à violência entre negros e brancos, em Harlem, na América e noutras geografias da diáspora, o que melhor serve o contraste pretendido com a poética de Ruy Duarte de Carvalho. A escolha dos poemas de Noémia de Sousa justifica-se por estes serem os que, de forma mais evidente, se expõem ao diálogo da diáspora protestatária em estudo.

Num terceiro momento, em contraste com os discursos poéticos do eu acima indicados, introduz-se a poética telúrica de Ruy Duarte de Carvalho (n. 1941- ), particularmente evidente no corpus literário seleccionado, de título «Noção Geográfica»84, com o objectivo de colocar em confronto diferentes discursos de índole nacional e diaspórica, produzidos em distintos momentos do fervilhar das modernas consciências nacionais da África colonizada por Portugal, em que as diversas nações lutaram pela sua emancipação. No âmbito deste capítulo, a opção literária em causa ganha maior pertinência pelo seu cruzamento temático com “gestos literários” da Renascença de Harlem, igualmente codificadores do sentimento humano de apego identitário à terra, ainda que, por vezes, imaginado.

As nações em questão encontraram a sua sobrevivência na diáspora deslocalizada, no exílio, oficial ou não, por vezes interno, dentro do próprio país, condição, no entanto, profícua à motivação da escrita, arma empenhada na luta pela

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indiferença humana e cultural. A poesia de Francisco José Tenreiro, escrita de 1942 a 1963, e a de Noémia de Sousa, de 1948 a 1951, são factos literários de um processo de afirmação individual e nacional, em interacção com outras nações modernas libertadas, numa atitude solidária ao diálogo cultural e ideológico.

Com a evolução dessa consciência, que conduziu à reconfiguração organizada de estratégias de luta nos quadros revolucionários dos respectivos países, e à medida que o sonho das independências nacionais se foi aproximando da sua realização, a literatura foi espelhando a preocupação em representar o processo de independência dos novos países, abandonando a influência dos nacionalismos negristas e evoluindo, a partir de uma fase mais agressiva de combate, para a implicada tarefa de narrar a história identitária nacional. Os estados africanos emergentes, ou países recém-independentes, ensaiavam, assim, uma performance simbólica, culturalmente adequada ao momento político, mergulhado no sonho do socialismo africano, que na opinião de Eduardo dos Santos « […] tem tanto de socialismo como de capitalismo.»85 (Santos, 1968, p. 234). A ideia imaginária de unidade nacional, embora necessária, constitui-se, porém, afazer complexo, dada a multiplicidade de etnicidades coexistentes no espaço africano, culturalmente diverso, do qual Ruy Duarte de Carvalho mostra profundo e claro conhecimento, não só no trabalho de índole antropológica, como também na sua obra poética, que abarca trinta anos de poesia (1970-2000), antologiada em 2005 sob o título Lavra, tema que o poeta, em exercício de metalinguagem, desdobra da seguinte forma: «Lavra é o labor da terra, uma expressão da condição humana!».86 A escolha de «Noção

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Veja-se as várias ideologias que foram mobilizando as elites africanas, em torno de uma nova ordem: pan-africanismo, negritude e socialismo africano, in Santos, 1968.

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Ruy Duarte de Carvalho, «Eu tenho pudor em inventar situações», in Diário de Notícias, 16/05/2006, p. 29.

Geográfica» assenta a sua pertinência de se poder constituir como reinterpretação contemporânea da tradição épica, bicontinental, pela recorrência literária temático-formal que torna verosímil o conceito simbólico de estado-nação, num espaço de grande diversidade étnica e cultural, que no momento da sua independência política aspirou, de forma consciente, à unidade nacional, fragilizada pela violência das facções antagónicas etno-políticas, em luta pelo poder.

Stuart Hall, embora seguindo a perspectiva de Raymond Williams, quando este se refere ao País de Gales, marca o lado alegórico que preside à ideia de estado-nação, afirmando:

The nation-state was never simply a political entity. It was always also a symbolic formation - a ‘system of representation’ – which produced an ‘idea’ of the nation as an ‘imagined community’, with whose meanings we could identify and which, through this imaginary identification, constituted its citizens as ‘subjects’ (in both of Foucault’s senses of ‘subjection’ - subject of and subjected to the nation).

(Boswell, David, Evans, Jessica, eds., 1999, p. 38)

A unidade nacional referida, princípio determinante na organização do sistema simbólico da nação oficializada em estado, à volta do qual se faz representar o conceito de identidade nacional, alimentou, naturalmente, o desejo dos novos estados-nação africanos em formação, os quais investiram no direito à sua própria invenção. Também por via da literatura, Ruy Duarte de Carvalho marcou relevadamente, com o testemunho legitimado dos seus sentidos e corpo, a terra que pisou, e com a qual se transmutou, vivências em que fundou as suas percepções, consubstanciadas numa poética de isotopia telúrica principal, que consagra a pluralidade étnica em uníssono.

Vale ainda dizer que, em «Noção Geográfica», a diferenciação cultural que se deseja assegurar é, grande parte, de índole continental, saindo particularmente reforçada pelo recurso à tradição epistemológica anónima, centrada na comunidade, em que se inscreve a oralidade africana, pelo que a criação de enunciados de primeira pessoa, um conjunto de alocuções dramáticas figuratizadas do eu, representante de nós, é um eu anónimo, voz no plural, que diz todo um património identitário de síntese, personagens tipo, devidamente identificadas na matriz histórico-cultural da África banto. Deste modo, a voz plural que no texto diz eu deseja fincar, na escrita poética, uma realidade político-territorial diferençável, a qual implica uma variedade etno-cultural, firmada numa geografia continental mais vasta, África, que reinvindica uma fonte própria, como factor centralizador de coesão. Por outro lado, a memória cultural identitária que este texto guarda evidencia o reaparecimento literário de uma significação simbólica, construída em torno do tema terra de pertença e seu legado cultural, presente nas escritas autobiográficas de Zora Neale Hurston, de Langston Hughes e de Jean Toomer, manifestando Cane e mesmo The Big Sea o mesmo tom exaltatório que, intensivamente, percorre «Noção Geográfica», pelo que o diálogo deste texto com as vozes de Harlem se faz pela recontextualização da mesma figura simbólica terra, da qual se efectua uma apropriação intertextual triunfante, porque incentivadora de relacionamentos interculturais com os textos pressupostos.