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3. Ruy Duarte de Carvalho: a nação da cor da terra

3.2. O Paradigma Épico em África

Anthony Smith refere-se à importância dos poemas homéricos e da Bíblia, como os exemplos mais profícuos de escrita etno-histórica na tradição ocidental: «o estilo épico e a crónica foram sempre as formas predominantes de etno-história pré-moderna.» (Smith, 1999, p. 55). Tal como no Ocidente, a epopeia faz parte da tradição oral de África, que, de modo semelhante, é detentora de um passado étnico e de uma herança cultural de aspiração única e autêntica, comparável à de outros continentes. Segundo Ana Mafalda Leite120, a épica oral africana marcou, quer as regiões africanas de antigos e célebres impérios, onde a tradição guerreira é muito relevante, como é o caso da África Ocidental, «onde os heróis têm correspondência com figuras históricas» (L, p.43), quer as zonas onde a tradição guerreira é menos relevante, o caso da África Central, «[onde os] heróis não são reconhecíveis enquanto modelos de figuras lendárias da história» (L, p. 43). Devem também ser mencionados os poemas heróicos, panegíricos, característicos das populações do Sul de África, muitos deles sobre a figura heróica do guerreiro Zulu, Chaka, o génio militar invencível que viveu no início do século XIX e inspirou o romance histórico que Thomas Mofolo escreveu em Sotho.121

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Leite, 1995, p. 43. As citações que se seguem desta obra de Ana Mafalda Leite serão apenas indicadas com a maiúscula L, seguida do número de página, entre parênteses, conforme o exemplo: (L, p. 43).

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Para uma informação mais detalhada sobre o tratamento literário da figura heróica de Chaka, veja-se Kesteloot, 1971, pp. 47-53 e Leite, 1995, pp. 89-97.

Pelas palavras de L. Kestloot, «La déclamation de l’épopée peut durer trois nuits consécutives. L’artiste est infatigable, il alterne les chants, les mimes, les pas de danse, les récitatifs, les dialogues avec son orchestre, ou avec le public qu’il ne cesse de maintenir en haleine, de réveiller et d’exciter par ses question et ses mots d’esprit.» (Lestloot, 1971, p. 30). A escolha efectuada por Kesteloot, de textos relativos à epopeia tradicional africana, dá conta dos principais enunciados orais pertencentes ao género. Começando pela África Ocidental, a primeira epopeia oral apresentada pela autora é o poema épico mandinga Soundjata, cuja versão escrita foi publicada em 1960, por Djibril Tamsir Niane, sob o título Soundjata ou l’épopée mandingue. Toda a enunciação épica gira à volta de Soundjata Keita, príncipe muito poderoso que viveu no século XIII, sucessor do império do Gana e edificador do segundo império negro mais famoso da África Ocidental, o Mali. No espaço mandinga, deve também ser assinalado o texto épico intitulado Gabou - nome da região onde se desenvolveu o império Mali - uma epopeia que conta a ascenção, opulência e queda deste reino, no princípio do século XIX.122 Dentro do grupo linguístico Mande, salienta-se, igualmente, a Epopeia Peule, da qual constam: Samba Gueladio Diegui, relacionado com o reino Denianke, que dominou o norte do Senegal no séc. XVII; os poemas Silamaka du Macina (Mali) e Hambodedio de Kounari, que relatam acontecimentos históricos do século XIX no Mali, assim como os poemas épicos de senhores guerreiros, Oumarel Swa Donde e Amadou Sam Polel (Cf. L, p. 42), não sendo aqui referidas as epopeias religiosas. Ana Mafalda Leite dá ainda conta de uma epopeia bambara denominada Segou, referente a um século de história, do século XVIII ao XIX, durante o qual floresceu o império

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A informação sobre a epopeia mandinga foi complementada pelo ensaio de Ana Mafalda Leite, in Leite, 1995, p. 42.

bambara do Mali (L, p. 43). Na zona ocidental de África em menção, L. Kestloot (Kesteloot, 1971, p. 22) aponta também a epopeia do Cayor, antigo reino vassalo do império de Djoloff, no actual Senegal, que se tornou independente em 1548, tendo-se desenvolvido entre esta data e 1886. A narrativa heróica referida organiza-se à volta do herói Madior Fatim Golègne, retratando o resgate deste reino, assim como mais de três centenas de anos da sua história.

No que se refere às epopeias da África Central, as duas autoras referem a tradição fang do “mvet”123, característica do Gabão e dos Camarões, países em que, segundo Ana Mafalda Leite, estes textos revelam «[…]particularidades específicas, situando o seu universo de acção entre seres humanos e deuses» (L, p. 43), entre eles o herói Abo Mama. O tocador do mvet tem que passar por duas longas e duras aprendizagens, uma de cariz técnico e a outra mágico, passando depois a constituir-se um interlocutor privilegiado dos espíritos. Mais do que o griot da zona Oeste, este iniciado tem uma missão mais implicada na participação do mundo dos mistérios, sendo também uma espécie de feiticeiro. Nos Camarões, são dignas de menção a epopeia Douala, Djeky la Ndjambé, e a epopeia Basa, Les Files d’Hitong. No Congo, são conhecidos o poema Mwindo, o ciclo épico Lianja e ainda o texto Mubila (Cf. L, p, 43). No entanto, existem diferenças entre as várias épicas africanas, sendo, por exemplo, apontadas dissemelhanças entre a épica oral da África Ocidental e a da África Central. Esta última contém mais humor, maior abundância de elementos burlescos, mais digressão, maior efeito de exuberância e grandeza, um espaço humano menos hierarquizado do que nas sociedades de cariz feudal, e uma violência de proporções

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O Mvet é um dos mais antigos instrumentos musicais de África, o qual dá nome à recitação épica Fang, porque faz o seu acompanhamento musical.

desmesuradas. Rememorando os traços mais salientes do texto épico, introduz-se o quadro síntese que Anthony Smith enuncia, a propósito da tradição genológica em apreço, nos poemas homéricos e na Bíblia, os quais considera os exemplos mais familiares da escrita etno-histórica ocidental:

uma ênfase na heroicidade e na honra; uma crença no exemplo da virtude; uma história das origens e primeiras movimentações da comunidade, talvez também da libertação da opressão e da unificação acima de tudo, um mito de uma idade de ouro, de guerreiros, santos e sábios, que garante um padrão interno à comunidade, um exemplum virtutis para emulação posterior, além de um estímulo e um modelo para a regeneração étnica.

(Smith, 1999, p. 56)

Tomando a matriz verbalizada por Smith como contraponto, apresenta-se como comparação uma sistematização efectuada a partir do resumo que L. Kestloot faz das características da epopeia africana (Cf. Kestloot, 1971, p. 30), a saber: um herói orgulhoso e valente, a exaltação do passado e dos antepassados clânicos, a primazia do clã, as referências ao animismo e à magia. Particularmente no que diz respeito ao estilo, existe o recurso, abundantemente, a imagens, à utilização de provérbios, à digressão e apelo ao público, à utilização da onomatopeia, ao acompanhamento musical, à mistura do canto e da declamação. O confronto destas duas estruturas temáticas mostram o subsolo mítico em que se funda o arquétipo tratado por Joseph Campbell (Campbell, 1968), herança literária em que se consolida o modelo ficcional subjacente aos textos épicos de que constou o percurso efectuado, pelas literaturas dos E.U.A. e África, paradigma genológico em cuja dinâmica sistémica reside a memória do género épico. No processo bivalente traçado, embora exposto à evolução literária, foi, contudo, desvelada uma formação matricial muito semelhante, diferentes quadros históricos em que, no entanto, a itinerante acção humana busca e ganha sentido identitário, cultural,

territorial e nacional, do ser na comunidade, do indivíduo na nação, da própria nação em luta pela sua diferença e independência. O texto épico, ao oferecer o seu testemunho à história nacional, implica o juízo estético como fonte de memória, em que subsiste o inconsciente individual e colectivo, do eu ou nação simbolizados, os quais acreditam, em comum, na realização de um destino humano, num lugar da terra, que o ser humano para si elegeu, ou não, pois, tal como sente Ruy Duarte de Carvalho, «“o nosso país é aquele com o qual o nosso destino se mistura”».124 O pensamento transcrito, ao mostrar que vive remanescente na psique colectiva dos povos que querem ser reconhecidos como nação, ou pretendem reforçar a sua nacionalidade, justifica que os textos seleccionados, embora pertencentes a quadrantes diferentes da literatura, possam dialogar, porque são susceptíveis de ser colocados em relação com um paradigma, uma vez que a sua escrita se constitui modelização criativa do mesmo cânone literário.

3.3. Ruy Duarte de Carvalho e as Vozes de Harlem: uma conversa de