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3. Ruy Duarte de Carvalho: a nação da cor da terra

3.4. Interpretação de «Noção Geográfica»

3.4.1. Preposição voz «off»

Em “Preposição - voz «off»”, o sujeito poético verbaliza, em forma de Proposição, no início do poema, o que se propõe “cantar”, colocando em evidência o desejo de fixação de um tempo de importância histórica, o registo do tempo pela palavra escrita, perene, que ultrapassa todos os acontecimentos, tempo digno de menção, que vai permanecendo pela sua cíclica reescrita: «um tempo tanto importa/ de fartura quanto de surda seca se devolvido à noite/um nome dado aos corpos para demandar a chuva» (Est. I, vv. 1-3, p. 59). Torna-se, assim, necessário trazer a História para o tempo da vigília, evitando que ela permaneça na noite do esquecimento. A escrita poética manifesta intenção de retirar o tempo da sua condição cósmica atemporal, torná-lo cronológico, salvá-lo da condição esquecível, do alheamento, e à escrita cabe agora esse papel. Contudo, o que o sujeito poético parece propor é o verbo épico, engrandecedor, «Uma palavra que arboresça as mãos e amadureça os frutos» (Est. I, v. 4), o verso enaltecedor das mãos que fazem, assim como dos frutos feitos, parecendo a letra sonora anunciar-se como seio germinador de semente, de nascimento, a palavra que o desejo da da escrita engravidou, numa árdua mas fértil viagem, à altura do objecto que se aspira entoar (Est. II).

Assim, as duas estrofes iniciais da composição em estudo sugerem uma Proposição épica, em que se enuncia, num tom eloquente e exaltador do corpo humano, o anseio de responder ao chamamento da terra africana, persona com a qual se transmuta, em vontade realizada na força da partida, para a digressão continental da escrita, que percorrerá, de lés a lés, o mapa geográfico de África, focalizando as suas bioregiões, costas marítimas, regiões climáticas, os seus solos e actividades ligadas ao

uso da terra, particularmente à pastorícia, assim como à História de África, na sua diversidade cultural. O eu poético parte em busca desse corpo - « [abala] em busca da fogueira, um halo, um fogo, a labareda» (Est. III, vv. 1, 2, p. 59) - , como que invocando inspiração para a grandiosa tarefa da escrita133, que inscreve, desde logo, a temática da viagem, um possível percurso iniciático, efectuado por um eu, que se excede de si e parte em demanda de uma essência, ou de outros eus: «capaz de emparceirar com corpos e comungar conforto/ a céu aberto» (Est. III, vv. 3, 4, p. 59).

Como se viu, os rituais do fogo a que Ruy Duarte de Carvalho alude, no contexto Kuvale, estão ligados à invocação de espíritos ancestrais remotos, antepassados poderosos - no caso relatado de Kavolovolo - que só o Mestre do Fogo, por poderes legados pela sua ancestralidade, está autorizado a evocar. Este facto cultural vem esclarecer a condição invocatória da terceira estrofe de «Noção Geográfica», quando o eu poético anuncia «abalar em busca da fogueira», em demanda de um círculo luminoso e brilhante, irradiado de uma fonte luminosa, o halo e o fogo a que explicitamente se refere. Este gesto verbal, na forma como está esboçado e implantado, bem como no tom em que é utilizado, aponta, de modo suficientemente explícito, para

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O fogo ocupa um lugar simbólico importantíssimo nas culturas africanas bantu, requerendo, muitas vezes, um Mestre do Fogo, como por exemplo na tradição Kuroka, povo Kuvale, de que fala Ruy Duarte de Carvalho, quando o antropólogo foi “lá visitar pastores”, e se deparou, inesperadamente, com o funeral de Mukuroka, grande tyimbanda, um mais-velho, Mestre do Fogo que conhecera ao serviço de uma das linhas de sucessão patrilineares mais destacadas entre os Kuvale. Aliás, é o antropólogo que, na obra intitulada Vou Lá Visitar Pastores, adverte o esperado amigo, repórter da BBC, da forma seguinte: «A seu tempo saberás com o detalhe suficiente do lugar que o fogo - o murilu – ocupa no sistema religioso e político.». Ruy Duarte de Carvalho alerta-o também para o facto de alguns desses fogos estarem ligados ao rio e ao povo Kuroka, facto religioso que, segundo ele, «[…] leva à evocação de uma figura mítica, a de um tal Kavolovolo, saído da Hanya da Província de Benguela […]». Cf. Carvalho, 2000, p. 61.

um acto reinterpretativo da Invocação épica tradicional. Dizendo de outro modo, todo este desenho verbal, colocado na voz de um eu, que anuncia uma partida em busca de inspiração poética, o seu pedido de forças ou iluminação, feito a entidades divinizadas, ainda que não divinas, com o fim subentendido de escrever o poema, todo o tom e atitude que clama, colocados a seguir à Proposição, no início do poema, sugerem estrutural e tematicamente uma Invocação épica.

No excerto textual em interpretação, a nível da sua semântica lexical, deve ainda ser colocada em evidência, a forma como o Fogo, essencial, se associa a corpos, no plural, em vez de a espírito, o que pode introduzir a ideia de um grupo humano em presença, ou de grupos humanos congregados à volta de uma matriz cultural identitária e com os quais o sujeito poético, tal como diz, busca «comungar conforto» (Est. III, v.3, p. 59). Por outro lado, a imagem do fogo, enquanto força original que impele o eu poético, propõe um vector direccional de movimento, que clarifica o seu sentido através da relação sintagmática que estabelece com «herança», sublevando-se a ideia de um eu que busca, em viagem, as fontes humanas do sentir africano, cuja percepção, «soberana», no interior de si repousa intacta:

Em nós em vós intacta a soberana percepção da herança/não a de alfaias ou de espaço dado porém a graça/antiga de entender as fontes do sentir e a voz excessiva/de quem governa a sede e predispõe à glória.

(Est. XI, p. 61)

Tal como «Intacta está guardada a força original/ do sangue antigo que garante a cor» (Est. VI, p. 60). Garantida está também a «[…]dignidade que cabe aos corpos/ quando assumem livres a cor que os faz florir da cor da terra» (Est. VII, p. 60), uma verdade interior aos sentidos do eu poético, dita pelo discurso da evidência, na mesma

certeza com que é “cantada” e mostrada, nas estrofes IV e V, a hora do crepúsculo que, em cada dia, cai nos estuários dos grandes rios africanos.

A «cor» de que fala o texto é a cor dos corpos que guardam a força original do sangue antigo, mas é também a cor dos que, seguindo a enunciação poética, assumiram livremente a cor da terra, na sua inteira identificação com ela, a cor dos campos de Setembro, com que se confunde a cor em que se transmuta o sujeito poético: «Confundirei […] a minha cor aos campos de Setembro» (Est. III, vv. 5, 6). É também a cor ardente da vontade que «[…]mantém o tom da combustão com o sol» (Est. XXI, v.1, p. 70); a cor apresentada como noção liberta de fronteiras - «acesa a cor para além destas fronteiras.» (Est. I, v. 9, p. 62) - , a cor dada, ao invés, pela geografia vivida e escolhida, daqueles que no chão africano partilharam abundância e carências - «e a geografia que nos deu a cor:» (Est. XXII, v. 2, p. 71). É ainda a cor dignificada pela luta - «para conquistar o mar e devolver/à cor o seu sentido e a dignidade.» (Est. II, vv.10, 11, p. 62) - , num projecto nacional sem muros, que se propõe resgatar a dignidade humana dos corpos e da sua cor - «[…]e construir uma nação sem muros/onde se expanda o eco da alegria/cavada em vossos peitos/pelo resgatar dos corpos e da cor» (Est. XXVI, vv. 5-8).