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Justificativa: Mas Por Que a Narrativa?

1. Algumas Considerações Iniciais Sobre a Narrativa

1.2. A Narrativa, Seus Elementos Constitutivos e Suas Relações

1.2.5. Justificativa: Mas Por Que a Narrativa?

A grande maioria dos povos que espalharam sua existência sobre a Terra registrou o mistério de sua origem e os grandes feitos de seus personagens através de narrativas épicas: os povos indianos conservam os grandiosos poemas Mahabharata e Ramayana; os povos germânicos possuem a Edda; os romanos valeram-se da Eneida; os finlandeses deram origem à Kalevala; povos do sudeste asiático, sobretudo os que habitam, hoje, a região do Vietnam, trouxeram à luz o Conto de Kieu; o tibetanos confabulavam em torno de Rei Gesar; os persas registram seus mitos na Shahnameh; os chineses, no Shi Jing; os hebreus, no Gênesis, no Êxodo, em todo o Pentateuco; entre muitos e muitos outros. Mas, por que a épica narrativa?

Theodore W. Adorno (2003) afirma que a forma artística, o gênero através do qual se dá a realização de uma obra literária, nada mais é do que conteúdo sócio-histórico decantado. Não basta apenas ter o que dizer, é necessário dar corpo discursivo a esse algo a ser dito, ou seja, conferir ao que é dito um formato de realização concreto que seja inteligível ao interlocutor. Eis aí o conceito bakhtiniano de “gênero discursivo”. De acordo com Bakhtin, “[...] cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos como gêneros discursivos” (BAKHTIN, 2003, p. 262. Itálicos do autor). Mais adiante, o mesmo autor continua:

Nós aprendemos a moldar nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo de fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível [...] a diversidade dos gêneros do discurso é muito grande [...] A diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações sociais de reciprocidade entre os participantes da comunicação (BAKHTIN, 2003, p. 283).

Têm-se, então, a definição de gênero como uma forma concreta pronta de realização linguística, como uma forma que molda as ideias em algo inteligível ao interlocutor. De acordo com Adorno, observa-se que nesse processo de moldagem, a

forma do gênero acaba atribuindo às ideias a serem transmitidas algo de sua propriedade como uma determinada extensão, estrutura além de certo tom de formalidade que busca acertar a manifestação das ideias à determinada situação de enunciação. É exatamente isto que vai proporcionar ao gênero vastíssima diversidade, atribuindo, assim, uma série de qualificações às ideias a serem transmitidas. Vale a ressalva acerca do caráter relativamente estável do gênero. Mesmo que a forma atribua certos caracteres ao que é dito, tais caracteres não devem ser tomados como o eixo definidor de determinado gênero, dado que eles se flexibilizam, se atenuam, ou mesmo desaparecem diante das exigências da modalidade de realização, da temática abordada, da situação de enunciação e do interlocutor.

É essa narrativa enquanto gênero, enquanto forma, que cede seu arranjo estrutural ao pensamento humano como elemento organizador de uma realidade. É a estrutura narrativa presente nas obras literárias, sobretudo nas formas narrativas, que converte o real em algo inteligível, cognoscente e, portanto, perceptível à reflexão humana (sem desconsiderar a faceta inominável da condição humana, conforme o já observado anteriormente). Sobre esse empréstimo da forma cognoscente, Candido irá refletir:

Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que

o externo [...] importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2010, p. 13-14. Grifo nosso)

Considerando, assim, a narrativa como gênero, enquanto forma cognoscente para os processos de humanização, passemos a observá-la sob a perspectiva da modalidade de realização e da temática por ela abarcada, buscando refletir em torno das vantagens da narrativa como gênero fundamental para o empreendimento inicial do processo de humanização.

Em relação à modalidade de realização, observou-se que, a princípio, a narrativa estava associada à realização oral, necessitando da interação face a face entre enunciador e interlocutor. Com o advento da escrita, a narrativa pôde se emancipar do discurso e da condução de um enunciador e alçar voos no vasto horizonte das possibilidades de leitura realizadas por um interlocutor que lê e constrói seus sentidos sozinho. Tal movimento, por mais que possa representar um distanciamento entre

enunciador e interlocutor, acabou possibilitando maior liberdade ao interlocutor que pode projetar suas experiências na leitura, através do uso proclamativo, e criar um espaço íntimo e legítimo de reflexão sobre a obra lida.

Em relação à temática, pode-se dizer que a narrativa possui um conjunto infinito de itens abordáveis. Tudo o que acontece, que implica ação, pode ser representado através de uma narrativa. Na tentativa de estabelecer um eixo delimitador para a temática narrativa, pode-se dizer que, como o afirmado por Fiorin anteriormente, os temas abordados em narrativas devem oferecer uma transformação: há um estado inicial, um desequilíbrio seguido por um novo equilíbrio, porém, não como o equilíbrio inicial, um equilíbrio revisitado, portador de uma experiência e/ou uma aprendizagem nova, construída em face da instabilidade apresentada e sua resolução (ou não). O tema trabalhado através da ação dos personagens figura um corpo concreto sobre o qual se desenvolve o esquema equilíbrio → instabilidade → novo equilíbrio, a dinâmica da narratividade que pode ser tanto o reconhecimento de uma forma de agir sobre o mundo quanto uma forma de pensamento e aprendizagem.

A poderosa associação entre desequilíbrio, enfrentamento e resolução (ou não) de uma instabilidade com a concretude figurativa da narrativa faz dela o gênero inicial por excelência para a instalação do processo de humanização, dado que a própria humanização é entendida como uma dinâmica narrativa, como processos reflexivos fundamentados sobre a narratividade. É a narrativa que empresta a sua forma para o desenvolvimento e a organização da humanização, dado que esta tem em si o desenvolvimento de um percurso narrativo. Assim foi como o visto com a ressignificação, a perejivânia vygotskyana e assim é com o conceito, algo mais existencial, de resiliência humana, cunhado por Fabiana Prando em sua dissertação de mestrado intitulada como Narrativa e Resiliência: a invenção de si.

O conceito de resiliência narrativa pressupõe uma configuração narrativa da vida, um olhar que elabore e reelabore os sentidos da existência por meio de uma organização análoga aos padrões ficcionais. A capacidade de ler, configurar e reconfigurar as experiências vividas pelos modelos da literatura favorece sobremaneira essa prática. [...] A resiliência narrativa é a capacidade de fazer sentido a partir da falta de sentido. Ao cunhar o conceito de “resiliência narrativa”, ousamos propor um diálogo entre a resiliência de Cyrulnik e o imbricamento concebido por Paul Ricoeur entre mundo do texto e experiência de vida. Concebemos a resiliência narrativa como a capacidade de, pela via narrativa (criando, lendo ou adaptando histórias), construir sentido a partir da falta de sentido. (PRANDO, 2019. p. 33 – 34. Grifo nosso)

A narrativa humaniza, sobretudo, pela oportunidade de construir sentido, de introduzir na mente humana grandezas e formas que passam a compor a rede de relações de pensamento, proporcionando um refino deste, através do qual se concebe panoramas interpretativos cada vez mais complexo e liberta de uma visão simplista e imediata. A instauração desse processo de refino do pensamento é, ainda, prazerosa, confluindo aspectos lúdicos, a experimentação estética e o potencial anímico.

Considerando a experimentação estética e o potencial anímico, presentes na narrativa, como uma fonte de energia a impulsionar o leitor aos processos de reflexão individual e tomada de decisão, é importante ressaltar o aspecto ativo da experimentação estética. De acordo com Maria Zilda da Cunha, mencionando Lucia Santaella:

A contemplação estética, como já esclarecido, não é uma contemplação passiva, pelo contrário, é uma contemplação ativa há um fisgamento e um entendimento que nos atraem e nos cativam. Há uma razão que borbulha com o sentimento. A suspensão do policiamento da racionalidade, a pura inocência dos sentidos é fundamental para o estado mental estético, “mas isso não significa que a razão criativa não entre também em operação para compreender o sentimento”. (CUNHA, 2009. p. 52)

A vivência do sentimento estético implica, invariavelmente, um percurso ativo, um desenvolvimento que, cada vez mais, se vê relegado a uma importância secundária. O não desenvolvimento desse percurso acaba abandonando o ser humano a um desenvolvimento racional cada vez mais frágil. O aluno em tal situação cresce e se torna um adulto com uma capacidade reflexiva demasiada simplista e ingênua, não sendo capaz de acompanhar um raciocínio um pouco mais complexo, enxergar um pouco mais além de consequências mais imediatas. O adulto em tal situação acaba por formar suas opiniões e tomar suas atitudes baseando-se sobre fundamentos extremamente parcos e escassos, sem poder antecipar consequências mais graves de seus próprios atos, apoiando discursos extremistas, justificando atos violentos entre outras graves consequências.

Embora compreenda-se a supremacia cronológica da narrativa no empreendimento do processo de humanização, e a força de tal gênero no sentido de acionar processos reflexivos racionais ativos, desenvolvendo a capacidade intelectual reflexiva, despertando o leitor para um olhar mais apurado, complexo e abrangente, isso não retira de outros gêneros a possibilidade de humanizar. Afirma-se a supremacia da narrativa por uma perspectiva cronológica, pela importância das narrativas de fundação

presentes em todas as civilizações e pela concretude de seu caráter figurativo capaz de dar início ao fluxo de energia que conduz à experimentação estética e aos processos reflexivos; por seu caráter anímico e por sua semelhança com o processo de pensamento e aprendizagem significativos da perejivânia. Deve-se estudar as possibilidades de humanização associadas a outros gêneros, de forma que os textos literários produzidos por mãos humanas assegurem nossa essência humana e o resgate de capacidade de nossos caracteres basilares fundamentais, como a capacidade de sensibilização diante do processo de desumanização.

Compreendendo, assim, a instalação de um ambiente íntimo e legítimo de reflexão no leitor, associado à concretude figurativa e à transformação presentes no gênero narrativo, constata-se a supremacia inicial do gênero narrativo para a introdução do leitor no processo de humanização, sem excluir, obviamente, a possibilidade de humanização advinda de outros gêneros.