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A Narratividade como Forma de Pensamento

1. Algumas Considerações Iniciais Sobre a Narrativa

1.2. A Narrativa, Seus Elementos Constitutivos e Suas Relações

1.2.2. A Narratividade como Forma de Pensamento

Com base no brevíssimo retrospecto histórico compreendido anteriormente, foi possível constatar que as narrativas gregas antigas, as narrativas fundadoras da tradição bíblica e as narrativas medievais tradicionais sustentavam-se sobre três pilares principais: forte caráter figurativo, formativo e exemplar; eixo cronológico mais ou menos linear; modalidade de realização através da oralidade ou da fala.

Muito mais forte do que os mencionados três pilares, existe, nas narrativas observadas, uma atmosfera anímica mágica extremamente sedutora, o que distancia a narrativa da filosofia, muito mais abstrata.

Em termos um pouco mais concretos, essa força anímica da qual a narrativa é imbuída trata da possibilidade de produzir um impacto afetivo de tal forma que o interlocutor se sinta desequilibrado. Tal desequilíbrio faz com que o interlocutor invista considerável quantidade de energia em uma ação reflexiva restauradora, no intuito de recuperar o seu estado de equilíbrio anterior. Ao se reestabelecer o equilíbrio, observa- se que, de maneira alguma, esse novo equilíbrio é o mesmo estado de equilíbrio inicial, houve uma aprendizagem e, portanto, uma alteração no interlocutor da narrativa, este nunca mais será como antes. Em outras palavras, o caráter anímico da narrativa é o que coloca em funcionamento a narratividade, um processo de pensamento e, portanto, de aprendizagem, que reproduz a estrutura narrativa, e coloca o ser vivente no exercício de sua própria vida, não apenas como fluxo concreto de ações sobre o mundo, mas, sobretudo, como forma de pensamento e aprendizagem.

Essa reflexão e aprendizagem resultante da narratividade é o que Lev Semyonovich Vygotsky define como perejivânia.

De acordo com Toassa e Souza (2010), a palavra do português que mais se aproxima da síntese vygotskyana perejivânia é a palavra “vivência” na medida em que perejivânia mantém uma relação etimológica com os verbos russos “пережйть” (perejit) e “жить” (jit) que significam “viver”. Para Toassa e Souza, “a vivência é campo de conflitos, entreposto do funcionamento psíquico concreto, linguagem do impacto vital do entorno no sujeito.” (TOASSA; SOUZA, 2010. p.771). Por essa perspectiva, trata-se de uma ocasião experimentada no exterior do sujeito, no seu meio, que provoca um impacto vital com implicações afetivas, um conflito intelecto-emotivo que resulta em uma mudança interior significativa, que, por sua vez, coloca o sujeito em processo de reflexão até que o mencionado impacto e a mudança, resultante deste, sejam traduzidos em linguagem.

O ato final dessa aprendizagem por uma perspectiva narrativa, a tradução linguística, a síntese de todo o processo em significação linguística, ou seja, em uma nomeação, é o que se define aqui como ressignificação. É importante destacar que essa ressignificação, esse ato de nomear não se trata, apenas, de uma ocorrência lexical. A ressignificação, assim como a perejivânia, resulta de um processo dado ao longo do tempo, ou seja, resulta de um desenvolvimento narrativo, seja ele uma rememoração, uma releitura, uma reestruturação de um fato vivido ou a pura especulação, ordenada cronologicamente em torno de algo que se busca compreender. Embora a precisão lexical seja fundamental, ela é o início ou o fim do processo, aquilo que desperta para a

reflexão narrativa ou aquilo que sintetiza todo o processo em forma racional e consciente.

Vale a consideração acerca do fato de que todo esse movimento narrativo, partindo de uma nomeação ou a ela chegando através de um esforço de síntese, é apenas parte do grandioso universo que observamos sob o nome de humanidade. O esforço humano na busca por uma vivência profunda e a sua tradução em termos racionais não implica a não existência do inominável. O ser humano é muito mais do que se pode nomear. Há vastíssimo horizonte de ação humana que extrapola o que se pode delinear em termos racionais. Existe, dentro de cada um dos seres viventes, um universo inaudito, do qual não trataremos no presente estudo8, mas que é forçoso mencionar dada a sua importância para a consideração da questão humana. O inominável traz para a constituição do humano a humildade característica daquele que não é senhor absoluto dos próprios atos. Esse universo é o que a psicanálise nomeou como inconsciente, é o solo fértil sobre o qual florescem os desejos, os sonhos, os medos, as manifestações artísticas, as alegrias, as angústias etc. É através dessa dimensão inominável que podemos sentir o impacto afetivo proveniente da força anímica da narrativa e que nos coloca em movimento, seja de forma especulativa, seja na experiência da vida, em busca de sínteses linguísticas, de nomeação e/ou (re)significação.

Conjuntamente a esse caráter anímico, a narrativa hebraica trouxe à luz o uso ploclamativo, a possibilidade de certa interatividade entre o interlocutor e a obra lida na qual o interlocutor preenche as “lacunas” deixadas no enredo com elementos referentes à sua própria experiência prévia, a própria vida do interlocutor toma parte na narrativa. O uso proclamativo inaugura, assim, a possibilidade de certa polifonia no entendimento da narrativa. Orlandi (2008) vai explorar as variadas possibilidades de compreensão que um leitor pode construir diante de determinado texto tendo como pontos de ancoragem para a construção dos sentidos na leitura a sua experiência de vida, suas leituras de mundo, a construção de um aparato teórico metodológico para a realização da leitura propriamente etc. Rouxel (2012) trabalha no mesmo sentido ao afirmar a polissemia da leitura em relação às leituras pessoais, à necessidade de acolher os sentimentos dos leitores em relação à leitura. Na medida em que nenhum ser humano possui o mesmo repertório prévio, as “lacunas” deixadas podem ser preenchidas com os elementos mais diversos, produzindo compreensões e interpretações as mais diversificadas. Quanto

mais o interlocutor da narrativa interage com esta, inserindo elementos relativos à própria experiência, mais ele se identifica, mais a narrativa fala à sua essência e, portanto, maior proporção toma o caráter anímico.

Além do uso proclamantivo, a narrativa hebraica ainda revelou, de maneira extremamente insipiente, algumas possibilidades em torno do registro escrito que pode libertar o interlocutor das limitações interpretativas resultantes de uma realização oral imediata e conduzida pelo falante. Essa libertação em termos interpretativos acaba por potencializar a polifonia.

Vale ainda a importante observação de que as narrativas gregas antigas, as narrativas fundadoras da tradição bíblica e as narrativas medievais tradicionais, por sua realização nas modalidades oral ou falada, incentivavam o encontro dos interlocutores no mesmo local e em um mesmo tempo, garantindo o espaço de presença e atuação.

Na pós-medievalidade, a alteração do modo de produção artesanal para o industrial resultou, como visto anteriormente, no refúgio do ser humano na realidade privada, o que acabou por reduzir a esfera da presença e da atuação do ser humano e, consequentemente, por evidenciar uma dimensão reflexiva introspectiva mais profunda. O homem entra em estado de cisão entre o seu universo especulativo interior e a dimensão mais concreta de atuação sobre o mundo exterior. Inaugura-se um período no qual a narratividade, tanto como ação sobre o mundo concreto quanto como processo de pensamento, é paulatinamente substituída por outros processos especulativos mais abstratos9. Do desequilíbrio entre a esfera da vivência, em termos vygotskyanos, e o da

especulação mais abstrata surge algo como um processo de asfixia da narratividade, de suspensão do aspecto fluídico, do movimento que caracteriza a vida humana em seu pleno exercício.

A contemporaneidade vem coroar a asfixia da narratividade com a retomada sinérgica da informação e do neotribalismo. A informação, completamente avessa à narratividade por seu caráter imediato e por sua necessidade de plausibilidade, acaba reduzindo o tempo necessário à ponderação em relação ao que é informado. O neotribalismo, por reunir indivíduos sob os mais variados interesses, acaba por justificar o narrative turnning, uma explosão, sobretudo em termos de consumo e submissão, do uso da narrativa de maneira descaracterizada, não como um objeto artístico, dotado de

9 A observação da “concorrência” e/ou da instalação e desenvolvimento de determinada substituição entre os mencionados processos especulativos mais estáticos e o pensamento com base na narratividade será objeto de estudos posteriores.

seu poder anímico, capaz de dar início aos processos implicados na perejivânia, mas como um procedimento manipulador.

Por outro lado, a mesma conectividade que proporciona o aumento do ritmo necessário à imediatez da informação e a explosão do narrative turnning também proporciona um enriquecimento das formas de linguagem. A hipermídia, associada à sinergia contemporânea, não apenas retoma as formas antigas da narrativa como as traduz e as atualiza através de novas linguagens. Conforme Cunha (2009), o desafio, agora, é a descoberta e a elaboração de novas sintaxes, novas maneiras de leitura capazes de chegar ao aprimoramento da capacidade simbólica humana.

Não se trata, absolutamente, de afirmar uma supremacia da narratividade como forma de pensamento e como exercício absoluto das possíveis formas de vida, trata-se de observar um desequilíbrio entre as formas de pensamento e de experiência que acabaram relegando a narratividade a níveis inapropriados, de maneira que se perde, como o defendido por Agamben, a capacidade de narrar, o reconhecimento da experiência de vida de forma significativa em nome de uma fixação estática, esvaziadora e mórbida.