• Nenhum resultado encontrado

4 PROBLEMÁTICA

4.1 JUSTIFICATIVA

Desde o ano 2000 trabalhamos em uma escola pública estadual e, praticamente em todos esses anos, tivemos um ou mais alunos com deficiência visual incluídos nas salas de aula comuns. Atualmente, as salas do Ensino Fundamental têm em média 35 alunos e as de Ensino Médio 40, e os alunos com deficiência visual frequentam essas salas normalmente. Com a prática, vamos aprendendo a lidar com a situação, mas como tudo que se aprende na prática, até acertar, cometemos muitos erros. Nesses anos pudemos observar as dificuldades dos professores em enfrentar situações para as quais não foram formados, e dos alunos com deficiência visual que precisam se superar para aprender, muitas vezes, sem condições apropriadas.

Em um dos ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo) as coordenadoras pedagógicas, junto com as professoras especialistas em deficiência visual, resolveram aplicar uma dinâmica em que deveríamos fazer nossas atividades com os olhos vendados. Inicialmente achamos que seria perda de tempo, pois todo mundo sabe que ficar sem enxergar é uma situação difícil, mas, participamos. Após andar pela escola escoltados por um professor como guia, entramos numa sala e sentamo-nos em volta de uma mesa para fazer a reunião habitual. Grande foi nossa surpresa quando, sentada ao redor da mesa para discutir a pauta do dia, não conseguíamos falar. Eram os olhos que estavam vendados, mas era a língua que estava paralisada. Tínhamos medo falar sozinhos, não sabíamos se estavam nos dando atenção. Foi aí que percebemos que era através do olhar do outro que sabíamos se podíamos ou não falar e se o que estávamos falando estava sendo aprovado ou não. Essa experiência ajudou a perceber a importância de se aproximar do aluno cego, de perguntar o que ele acha, se está entendendo ou não, pois, como ele não está vendo, acreditamos que é por meio das palavras do outro que ele sabe se deve falar ou não; isso mudou nosso olhar em relação aos alunos cegos.

Na sala de aula, o que o professor escreve na lousa é ditado para o aluno cego, pelo próprio professor ou por um colega de classe, e ele escreve em uma máquina de escrever em Braille. Na matemática, ditar pode gerar alguns problemas, por exemplo: o professor escreve na lousa 2 x+1 , um aluno dita: “dois elevado a x mais um” e o aluno cego escreve 2x + 1. O professor não percebe, pois não entende o Braille. Na hora da correção, o professor pergunta ao aluno qual foi o seu resultado e constata que foi diferente do que ele esperava. Sem saber o que o aluno errou, o professor pede que ele corrija e, geralmente, o colega lhe ditará a solução, não do exercício que ele tem em seu caderno, mas sim do exercício que está na lousa.Desta forma, o aluno não entende porque errou e o professor não entende a dúvida do aluno. Esse é apenas um exemplo, mas, em matemática, temos muitos outros casos que geram problemas semelhantes.

Com essas observações, surgiram questionamentos a respeito da relação do aluno cego com a matemática, que tanto depende de representações para ser entendida. Será que observar essas representações matemáticas por meio da visão e por meio do tato é a mesma coisa? Quais problemas as diferenças entre a escrita a tinta e a escrita em Braille poderiam causar para o aprendizado matemático do aluno cego? Quais cuidados um professor precisa ter para ensinar matemática para esse aluno?

Com essas dúvidas fomos à procura de quem pudesse dar respostas a essas questões. Conversamos com as professoras especialistas em alunos com deficiência visual que trabalham nessa mesma escola. Não encontramos respostas definitivas para nenhuma das questões e ainda descobrimos que não há uma padronização mundial para os símbolos matemáticos em Braille, quer dizer, por exemplo, que a forma de representar raiz quadrada em Braille no Brasil pode ser diferente da forma de representar raiz quadrada em outro país. Dessas observações surgiu o interesse pelo estudo de dificuldades enfrentadas por professores e alunos e a vontade de contribuir para uma reflexão a respeito das condições de ensino e de aprendizagem de alunos com deficiência visual.

Assumindo a posição de pesquisadores em uma escola em que somos também professores, podemos observar esse espaço não como meros expectadores, mas, como diz Geertz (2008), como pessoas integradas a ele, sendo necessário tomar o cuidado de manter um senso crítico que nos permita ser o mais imparcial possível, pois a escola constitui uma cultura diferenciada, que precisa ser entendida para que possa evoluir e corresponder aos anseios da sociedade.

Hoje a “inclusão” já não é questão de concordar ou não, é lei e os alunos com necessidades educacionais especiais estão nas salas de aula. A questão é: como atender às necessidades desses alunos quanto à educação? Não basta construir rampas, providenciar materiais adequados e colocar essas crianças numa sala de aula. É preciso garantir as condições de ensino para os professores e de aprendizagem para essas crianças, o que vai muito além do acesso físico à escola. A urgência de se encontrar respostas a esta questão justifica e ressalta a importância de trabalhos de pesquisa direcionados ao ensino e à aprendizagem desse público.

Ferreira e Manrique (2010) realizaram um mapeamento em quatro periódicos qualificados como A1 na área de Ensino de Ciências e Matemática, entre os anos de 2007 a 2009, buscando artigos que abordassem um dos temas: inclusão, alunos deficientes ou alunos cegos. Escolheram duas revistas nacionais: a Revista Bolema, da qual analisaram 75 artigos, e a revista Ciências e Educação, da qual analisaram 105 artigos. Escolheram, também, duas revistas internacionais: Education Studies in Mathematics, da qual analisaram 163 artigos, e For the learning in Mathematics, da qual analisaram 87 artigos. Verificaram que não existia nenhum artigo que abordasse a inclusão nessas revistas. No Caderno Cedes, com 57 artigos entre os anos de 2007 e 2009, encontraram apenas oito artigos relacionados à inclusão de alunos cegos e/ou surdos. Estes dados justificam a necessidade de pesquisas relacionadas à inclusão.

De acordo com os PCN (BRASIL, 1998b), os conceitos geométricos constituem parte importante do currículo de Matemática no ensino fundamental, porque, por meio deles, o aluno desenvolve um tipo especial de pensamento que lhe permite compreender, descrever e representar, de forma organizada, o mundo em que vive. O trabalho com noções geométricas contribui para a aprendizagem de números e medidas, pois estimula o aluno a observar, perceber semelhanças e diferenças, identificar regularidades etc.. O documento destaca que o trabalho com espaço e forma pressupõe que o professor de Matemática explore situações em que sejam necessárias algumas construções geométricas com régua e compasso, como visualização e aplicação de propriedades das figuras, além da construção de outras relações. Esse bloco de conteúdos contempla não apenas o estudo das formas, mas também as noções relativas a posição, localização de figuras e deslocamentos no plano e sistemas de coordenadas.

Muitas vezes, para que um aluno cego tenha acesso às representações matemáticas, são necessárias adaptações que nem sempre são simples numa sala de aula inclusiva. Essa

necessidade nem sempre é percebida pelo professor, prejudicando as condições de aprendizado desse aluno. Segundo Brousseau (apud ALMOULOUD, 2007, p.141), os obstáculos didáticos nascem da escolha das estratégias de ensino, que permitem a construção, no momento da aprendizagem, de conhecimentos cujo domínio de validade é questionável ou incompleto e que, mais tarde, se revelarão como obstáculos ao desenvolvimento da conceituação. Sendo assim, as falhas ocorridas hoje, no processo de ensino e aprendizagem de determinado conteúdo ao aluno cego, podem se tornar um obstáculo para sua aprendizagem no futuro.

Considerando a relevância do ensino da geometria e a dificuldade, ou quase impossibilidade, do aluno cego construir suas próprias representações de objetos geométricos em sala de aula, esse será o conteúdo matemático que abordaremos em nossa pesquisa.

Faremos a revisão bibliográfica para verificar se alguma das pesquisas precedentes estudou a relação do aluno cego com as representações geométricas à luz da teoria de Raymond Duval.