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2. Por que conduzir a investigação a partir de um recorte etnicorracial, classista e geracional?

2.2 Juventude(s): questões iniciais

Na introdução do artigo “Condição juvenil no Brasil contemporâneo”, escrito por Helena Abramo (2005), lê-se que “juventude é desses termos que parecem óbvios, dessas palavras que se explicam por elas mesmas e assunto a respeito do qual todo mundo tem algo a dizer” (p. 37). Neste sentido, a presente seção inicia com a seguinte provocação: afinal, o que é juventude?

Há, entretanto, para este questionamento, diversas respostas possíveis. Para o Estatuto da Juventude, marco jurídico brasileiro, a juventude corresponde ao universo de indivíduos na faixa etária entre quinze e vinte e nove anos. Para a minha vó, a juventude é uma fase muito bonita e que deve ser aproveitada. Para algumas pessoas, é o momento em que o sujeito deve iniciar a vida laboral a fim que possa contribuir com as despesas domésticas, e para outras, trata- se do momento em que o (a) jovem deve dedicar-se para aprovação no vestibular. Em alguns momentos históricos, o “futuro do amanhã”, em outros, o “problema do hoje” (Abramo, 2007; Mannheim, 1968).

Discutir, ou desenvolver conceitualmente a categoria juventude, perpassa necessariamente pela adequação do termo ao plural – juventudes. Partir do pressuposto de que existem juventudes e não uma única juventude contribui para a superação de uma concepção que naturaliza a experiência do ser humano no mundo, e que entende a juventude como um período da vida dotado de determinadas características pela qual todos (as), ao chegarem naquela “fase”, irão experienciar. Portanto, a juventude, assim como o que se convencionou chamar de infância e adolescência, pode ser experienciada de múltiplas formas, mediante o contexto no qual o sujeito está inserido.

Neste sentido, o universo de cinquenta milhões de brasileiros atualmente considerados jovens contempla várias expressões juvenis. Tratam-se de juventudes experimentadas a partir de características territoriais, etnicorraciais, de classe social e condição econômica, culturais, dentre outras. Afinal, jovens do campo não experimentam a juventude do mesmo modo que jovens da área urbana, assim como jovens de camadas socioeconômicas médias e altas tem uma experiência diferente daquela que têm os jovens das camadas “populares”. Situada esta

discussão inicial, para fornecer uma resposta à pergunta exposta no início desta seção, resta saber o que diferencia o período da vida denominado juventude dos demais.

Ao interpretar a asserção “tudo aquilo que é sólido se desmancha no ar”, proposta por Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista (1998, p. 43), a partir do seu contexto histórico, vê-se que se trata de uma crítica ao modo de produção emergente – o capitalismo – e sua capacidade de revolucionar formas de agir, pensar e sentir que possuíam alto grau de reificação na sociedade feudal. Contudo, tal asserção também remete a uma corrente das ciências sociais que afirma que, a realidade social, por ser algo construído pelo gênero humano, não é algo imutável.

Neste sentido, as noções acerca do conceito de juventude(s) foram permeadas por diversas transformações no curso da história, desde o surgimento da ideia de que existe um período entre a adolescência e a fase adulta, ou que este período – a juventude – possui caráter e demandas específicas em relação às demais faixas etárias. Portanto, dentre os quadros teórico- conceituais disponíveis para analisarmos a juventude, recebe destaque, nesta investigação, as contribuições de Regina Novaes (2007) e Margulis e Urresti (1998).

Novaes (2007) propõe a metáfora do jogo de espelhos como modo de distinguir com precisão a juventude dos demais grupos etários. Para a referida autora, “as relações entre juventude e sociedade se fazem como uma espécie de jogo de espelhos: ora apenas retrovisor, ora retrovisor e agigantador” (pp. 2-3). Isto implica dizer que o cenário político, econômico, cultural e social irá influenciar na construção das vulnerabilidades e potencialidades da juventude, de forma mais acentuada do que em outros grupos etários. A aplicabilidade empírica do modelo analítico supracitado é demonstrada através dos dados quantitativos que evidenciam

uma sobrerrepresentação da população jovem no sistema prisional e nas vítimas de homicídio (Brasil, 2014; Waiselfisz, 2014).

Por sua vez, Margulis e Urresti (1998) propõem reflexões acerca do caráter assumido pelo período denominado juventude na atual etapa do capitalismo. Para os autores, na dinâmica do capitalismo contemporâneo, a juventude é entendida como uma etapa de transição para a vida adulta, cuja função é de que a adolescência seja prolongada a fim de que o sujeito possa especializar sua força de trabalho para posterior ingresso no mercado: a isto, deu-se o nome de moratória juvenil. Conforme Souza e Paiva (2012), é por volta da década de 1950 e 1960 que a juventude passa a ser vista também como um período da vida marcado por sua transitoriedade – embora todos sejam – e não mais, necessariamente, como uma etapa problemática da vida humana. Mas não apenas transitório, a juventude também começa a ser observada como uma fase de preparação, conforme dito.

Entretanto, deve ser admitido a posição de classe dos sujeitos como um fator determinante para definir se o prolongamento da adolescência – ou moratória juvenil – será ou não concedido. De acordo com Souza e Paiva (2012, p. 354), "questionar o caráter universal da juventude é reconhecer sua historicidade". E é, neste sentido, que a noção de uma moratória destinada a todos os jovens é refutada, pois, embora esta noção possa ser uma visão corrente no atual estágio do capitalismo, ela não é universal para todos os jovens, tanto atualmente como em outros momentos históricos.

Deste modo há, pelo menos, duas possíveis experimentações da moratória juvenil. Em uma, geralmente relacionada aos jovens de camadas socioeconômicas médias e altas, a moratória é concedida, podendo, inclusive, ser alongada por tempo indefinido. No outro tipo de experimentação, a moratória ou é concedida por tempo limitado ou não é. Em um cenário

concreto, a primeira situação versa sobre uma família que possui condições materiais para “comprar” o tempo livre do filho e financiar a especialização deste. Já a segunda situação trata de casos em que, diante da escassez de recursos, o jovem se vê obrigado a procurar algum meio para a manutenção de sua existência ou obtenção de seus anseios, seja através da venda de sua força de trabalho ainda pouco especializada, da prática criminal ou de outra ação que sua criatividade permita. Sobre isto:

Tupac também citou que o tráfico é o crime mais presente na comunidade e que as crianças da periferia têm, em decorrência das necessidades que marcam o presente, dificuldades de planejar o futuro, sobretudo com um projeto de vida distanciado da prática infracional (Diário de campo, dia 30 de agosto de 2016).

Sobre esta reflexão, faz-se necessário destacar, conforme Aquino (2009) e Souza e Paiva (2012), que a consolidação da noção de moratória juvenil está associada ao movimento do capital de crise do modelo fordista de produção, precarização das relações de trabalho e consequente aumento do desemprego. Neste contexto, para uns, a busca e oportunidade por qualificação profissional ou simplesmente o deleite dos “ideais da liberdade, conforto, e tolerância do meio familiar à fase de moratória, aspectos tidos como naturais da juventude” (Souza & Paiva, 2012, p. 356) representam o adiamento da entrada na adultez e, para outros, há um híbrido entre características da juventude, como a impossibilidade, derivada da baixa renda e da posição no mundo do trabalho, de consolidação da autonomia, o que “infantiliza” o sujeito, e demandas e responsabilidades “próprias da vida adulta”, geralmente associadas com a necessidade do jovem de intervir financeiramente no sustento individual e familiar.

Portanto, além de não haver consenso acerca da faixa etária que corresponde à juventude, sendo esta adotada de maneiras distintas por diferentes países e instituições, construir

uma definição a respeito “do que é ser jovem” baseada sumariamente em limites etários é, no mínimo, reducionista, tendo em vista os argumentos supracitados que demarcam este período como uma condição social. Contudo, para esta investigação, será adotada uma fração do que é delimitado pela Secretaria Nacional de Juventude, excetuando apenas aqueles com menos de dezoito anos.

Tal adoção de um limite etário cumpre a função de situar o período da vida que, foi convencionado no atual momento histórico, como aquele destinado à moratória juvenil, por exemplo. E diante disto, poder identificar, em um contexto marcado por abissal desigualdade social, quando “um é, porém não parece”. Ou seja, através da delimitação de um padrão etário juvenil – de 18 a 29 anos, por exemplo –, o procedimento através do qual se pode definir que alguém está passando por um processo de negação da juventude se torna mais rigoroso.

Diante de um contexto marcado pela presença de várias juventudes, este estudo trata de uma juventude específica: os jovens do gênero masculino, pretos ou pardos, pobres e residentes em um determinado território. Contudo, sabe-se que, mesmo que os sujeitos acessados por esta pesquisa guardem estas variáveis em comum – cor, idade, território, gênero, condição socioeconômica –, estes possuem uma série de outras características que os diferenciam e marcam suas trajetórias como singulares, impedindo, portanto, de satisfazer o ímpeto da ciência moderna de racionalizar e classificar os grupos sociais.