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PARTE I: OS CLÁSSICOS DO IMPERIALISMO E DA DEPENDÊNCIA

A TEORIA CLÁSSICA DO IMPERIALISMO

1.3 Karl Kautsky

Em seu texto mais conhecido sobre o tema, intitulado O Imperialismo, Kautsky (2002a) inicia sua discussão desqualificando o uso que comumente se fazia do termo imperialismo, denominando de “frágil tautologia” a associação direta entre o mesmo e os fenômenos típicos do capitalismo moderno. Kautsky propõe, então, o abandono de “generalizações” desse tipo e a adoção de uma perspectiva pautada pelos determinantes históricos do fenômeno, de modo a se entendê-lo apenas como “um tipo particular de tendência política, que certamente tem como causa o capitalismo moderno, mas que não coincide de fato com ele” (KAUTSKY, 2002a, p. 444).

Para definir de maneira plena sua compreensão sobre o imperialismo, Kautsky parte da separação entre agricultura e indústria presente na raiz do pensamento fisiocrata para demonstrar que se constitui, no sistema capitalista, uma tendência crescente ao descompasso entre a produção desses dois setores. Em termos gerais, a ideia é a de que o desenvolvimento do processo produtivo só poderia se dar de forma estável e equilibrada caso se conseguisse manter, durante todo o tempo, uma estreita proporção entre aquilo que se produz na agricultura e aquilo que se produz na indústria, uma vez que ambos os setores apresentam uma clara interação entre si, enquanto fornecedores e enquanto compradores de mercadorias, reciprocamente.

Embora reconheça essa espécie de interdependência entre os setores, Kautsky enfatiza dois aspectos algo contraditórios envolvendo o funcionamento do sistema: por um lado, o autor identifica na agricultura o setor de maior importância do ponto de vista do processo produtivo, alegando que se trata de uma esfera que pode facilmente seguir produzindo mesmo diante de uma interrupção/desaceleração da produção industrial, ao passo que a indústria teria sua atividade interrompida caso cessasse o fornecimento de matérias-primas e bens de subsistência que representam a base de seu processo. Sendo assim, a agricultura não aparece como um setor que se desenvolve a reboque do setor industrial; ela o faz seguindo suas próprias leis. Por outro lado, Kautsky afirma que, no capitalismo, desenha-se uma clara tendência a que o setor industrial se expanda de forma mais rápida que o setor agrícola, uma vez que este último, mesmo que inserido na lógica capitalista de produção, se defronta com dificuldades técnicas que retardam o aumento da produtividade, com uma tendência à

escassez de mão de obra, especialmente em razão do crescente processo de urbanização, e com limitações mais fundamentais relativas à disponibilidade decrescente de terras para o cultivo.

Assim sendo, a indústria adquire condições mais amplas de melhorar seu nível de produtividade e isto tem como efeito uma ampliação da exigência de produtos agrícolas necessários para pôr em andamento a produção industrial. Resulta daí – isto é, do fato de a produção agrícola não se apresentar como uma cauda ou como um rastro da produção industrial, mas, ao contrário, por se dar independentemente desta, e por fazê-lo numa velocidade e/ou numa intensidade mais reduzida – uma tendência ao permanente desequilíbrio entre o produto de ambos os setores, de modo que a agricultura passa a oferecer mercadorias sempre em quantidade inferior àquela exigida pela indústria, o que produz a crise como resultado imediato.

Reside justamente nessa escassez de terras e de bens agrários voltados para o capital industrial o próprio impulso à ocupação de terras por parte deste último. Forma-se, assim, a noção de imperialismo oferecida por Kautsky, tal como segue:

O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste no impulso de todas as nações capitalistas industriais a submeter e anexar regiões agrárias cada vez mais vastas, independentemente da nacionalidade dos povos que as habitam. (2002a, p. 444, o itálico é original)

Seria esta a estratégia (política) ao alcance das economias industriais para que pudessem garantir tanto a oferta de matérias-primas e bens de subsistência necessários para a continuidade de seu processo produtivo sempre ascendente, quanto a disponibilidade de mercados aptos a adquirir seu excedente de produção. Tal estratégia foi fortemente favorecida pela exportação de capitais para territórios agrícolas, especialmente com a finalidade de introduzir um sistema ferroviário para colocação dos produtos nos mercados e uma técnica mais avançada para a exploração mineral e o cultivo.

Vale considerar que, uma vez que se trata de “um tipo particular de política capitalista” (KAUTSKY, 2002b, p. 471), perfeitamente ajustável às circunstâncias que se apresentavam, o

imperialismo em Kautsky é conduzido para outros níveis de discussão que o levam à definição de uma tendência ao que ele chama de ultraimperialismo. A origem deste movimento está no fato de que, à medida que a produção industrial se expande para outros Estados além de sua terra natal, a Grã Bretanha,12 o livre comércio deixa de ser o meio ideal para a anexação e o controle de territórios agrários e o protecionismo, com a consequente intensificação da competição internacional, assume seu lugar, particularmente pela via do conflito militar entre os Estados capitalistas industriais.

Como percebe Fontes (2008, p. 81), Kautsky parte de uma espécie de fracionamento entre a economia e a política e entende que o recurso à ocupação militar de territórios seria nocivo à acumulação de capital, no sentido de que os custos relativos à corrida armamentista e à expansão colonial seriam altos o suficiente para impor restrições a tal processo de acumulação e, por extensão, para ameaçar a exportação de capital e o próprio imperialismo. Por esta razão, a política do imperialismo – objetivada, naquele momento, em conflitos militares entre os Estados industriais pela anexação de territórios agrícolas – constituía algo transitório e que tendia a ser substituído por uma espécie de acordo de paz (ou uma política de aliança) entre as grandes potências imperialistas, que passariam a explorar o mundo em comum acordo, através da unificação internacional do capital financeiro e, portanto, sem o recurso à violência, à corrida armamentista e aos conflitos bélicos.13

12 Quanto a isto, Kautsky (2002a, p. 459) afirma que “a exportação de capitais pode operar de maneira bastante

diferente no território agrário para o qual é destinada. Já apontamos as difíceis condições em que se encontram hoje os países agrários e o esforço que são obrigados a fazer para se tornarem países industriais, no interesse não só de sua prosperidade, mas diretamente de sua independência. Nos Estados agrários que possuem a força necessária para garantir a própria independência, o capital importado não é utilizado exclusivamente para construir ferrovias, mas também para desenvolver uma indústria nacional, como aconteceu nos Estados Unidos e na Rússia. Nesse caso, a exportação de capitais dos velhos Estados capitalistas favoreceu apenas provisoriamente a sua exportação industrial. Muito rapidamente, esta foi bloqueada pelo surgimento de uma forte concorrência industrial no território agrário. O desejo de evitar que isso ocorra, torna-se agora, para os Estados capitalistas, uma razão a mais para submeter diretamente (como colônia) ou indiretamente (como esfera de influência) os territórios agrários, para impedir que desenvolvam uma indústria própria e forçá-los a limitar-se exclusivamente à produção agrícola”.

13 Reside aqui um dos principais focos da maior parte das críticas dirigidas a Kautsky, tanto naquele tempo

quanto em análises mais contemporâneas de sua obra. É justamente essa sua noção de ultraimperialismo que leva Lenin a tomá-lo como um ex-marxista e a dedicar uma parte importante de seus esforços para desenvolver e fundamentar seu rebatimento em relação às ideias propostas por Kautsky, esclarecendo as razões pelas quais enxerga o afastamento deste autor em relação ao marxismo. A este respeito, ver Lenin, Imperialismo, fase superior do capitalismo, cap. 9.