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Os termos gerais da inserção externa latino-americana num contexto de capitalismo financeirizado

PARTE III: SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA FASE DA DEPENDÊNCIA

SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA FASE DA DEPENDÊNCIA DADA A NOVA FASE DO IMPERIALISMO

5.1 Os termos gerais da inserção externa latino-americana num contexto de capitalismo financeirizado

É possível dizer que, concretamente, o primeiro momento que emblematiza essa nova configuração da acumulação de capital na periferia é a crise da dívida dos países subdesenvolvidos no início dos anos 80. Como é sabido, em função da recorrência ao capital externo durante o período desenvolvimentista na América Latina e da forte entrada desses capitais, fruto da alta liquidez internacional e do processo de “reciclagem dos petrodólares”, o endividamento externo salta para níveis sem precedentes, inicialmente por conta das necessidades criadas pelo choque do petróleo em 1973, depois pelo processo de realimentação produzido pelo chamado choque dos juros internacionais. Esta representaria a fase na qual ocorre a primeira alteração do eixo de acumulação na periferia (daí o fato de ser o momento emblemático), já que se rompe com um processo de acumulação produtiva e começa a tomar lugar um tipo de dinâmica calcado na ocorrência de uma espécie de círculo vicioso a partir da recorrência ao endividamento para dar conta de um endividamento anterior, o que gera nova dívida, nova necessidade de recursos e assim sucessivamente. Deste modo, o movimento de financeirização em nível mundial passa a se generalizar para os países periféricos e demonstra clara conexão com o processo de industrialização enfrentado por estes últimos.

O desenrolar dessa dinâmica culmina com um projeto pautado por regras absolutamente distintas daquelas vigentes até então e tem início o processo de abertura dos mercados e redução do papel do Estado.90 Todas as formas de regulação anteriormente vigentes foram, a

90 Diversos analistas defendem ser equivocado caracterizar o neoliberalismo como um período em que se

desenha a constituição de um Estado mínimo. O argumento principal que se apresenta nesse sentido é o de que, ao contrário, um Estado que se propõe a sustentar e garantir vitalidade à dinâmica da economia de mercado, assegurando sua fluidez e oferecendo aparato jurídico ao seu pleno funcionamento, tanto através da garantia de cumprimento dos contratos quanto através do reforço às regras de propriedade, apresenta-se como um Estado ao menos forte, não, portanto, como estado mínimo. Neste sentido, um Estado que confere primazia ao controle inflacionário, que leva a cabo políticas de abertura comercial, desregulamentação financeira e flexibilização do mercado de trabalho e que eleva à categoria de preocupação de primeira ordem o atendimento aos compromissos externos, é um Estado que adquire a função de uma espécie de gestor de conflitos advindos dos mais diversos setores da sociedade, e sua atuação exige uma ampla capacidade de intervenção. Vale destacar, portanto, que a

pouco e pouco, sendo desativadas. O Estado perdeu seu papel de regular a demanda efetiva, de regular os fluxos internacionais de capital, de proteger o mercado de trabalho, de proteger a indústria local. Neste sentido, o processo de financeirização na periferia não poderia satisfazer-se exclusivamente com a liberalização financeira. A abertura comercial empreendida no período, por exemplo, leva a que a indústria nacional seja exposta a um padrão de competição absolutamente desigual, em nome da estabilidade monetária, mas essa abertura era condição sine que non para o sucesso dessa nova dinâmica.

Considerando, ademais, que a partir dos anos 1980 e mais fortemente na década de 1990, os países periféricos (os latino-americanos, em especial) enfrentam um intenso processo de reestruturação produtiva baseado na especialização e na reprimarização da economia – em contraposição à industrialização diversificada empreendida no período desenvolvimentista anterior91 –, temos que a dinâmica dessas economias salta de uma tentativa de industrialização voltada para dentro, para uma espécie de desindustrialização voltada para fora, se é que podemos assim dizer.

Além disso, a privatização de empresas estatais denota o afastamento do Estado da atividade produtiva que comandara durante todo o período desenvolvimentista anterior, processo que é muito acentuado em países como o Brasil, o qual tinha desenvolvido um poderoso setor produtivo estatal, capaz não só de alavancar o investimento privado, como o de gerar tecnologia.

Segue-se a este grupo de mudanças, inclusive de forma complementar a elas, a liberalização financeira, acompanhada da eliminação do controle de capitais, na tentativa de permitir o constante fluxo de recursos externos direcionados a essas economias, dada sua permanente necessidade de fechamento das contas externas desequilibradas pelo endividamento e pela intensificação do comércio internacional em sua nova configuração.

noção de Estado mínimo aqui apresentada refere-se especialmente à minimização de sua atuação no sentido de estimular os níveis da demanda efetiva ao tirar de cena, tão amplamente quanto possível, sua função de agente ativo no processo de produção e ao reduzir toda a sorte de gastos que gerem efeitos positivos do ponto de vista da demanda.

91 Osório (2004) chamou esse proceso de “el nuevo patrón exportador latinoamericano”, ou, mais especificamente,

“un nuevo patrón de reproducción del capital, que en sus líneas generales puede caracterizarse como un nuevo modelo exportador”. Da mesma maneira, Sotelo Valencia (2004) identifica este processo, cunhando os termos “novo padrão de reprodução de capital dependente” e “novo padrão de acumulação dependente neoliberal”, no sentido de qualificar as transformações vividas pelos países latino-americanos a partir do final da década de 1970.

Ademais, para a garantia de entrada desses recursos, o receituário conta com a defesa e a exigência de estabilidade monetária. Nesse sentido, é adotado um regime de metas de inflação que tem como instrumento fundamental uma política de juros altos que, no fundo, passam a ser funcionais também no sentido de garantirem uma remuneração atrativa para os capitais especulativos de curto prazo que “passeiam por essas praças”. Deste modo, a política monetária torna-se peça fundamental do ponto de vista da financeirização, já que eleva os ganhos rentistas, e, com isso, faz com que a acumulação de capital produtivo perca sua sensibilidade à taxa de lucro, tendo em vista que, por mais que haja recuperação desta taxa, a acumulação produtiva pode não acompanhar esse crescimento, pois volta seus olhos para as possibilidades de valorização dadas pela esfera financeira.

Epstein e Power (2003) e Epstein e Jayadev (2005) apontam também a austeridade fiscal como mais uma lenha na fogueira do processo de financeirização. Os autores mostram que, se por um lado, a redução dos déficits do governo reduz a necessidade de incremento nos seus débitos, o que faz com que, portanto, caiam os pagamentos de juros aos rentistas, por outro lado, as reduções no déficit orçamentário reduzem a pressão sobre a inflação, o que pode contribuir para o incremento na taxa real de juros e, por conseguinte, para uma ampliação nos ganhos financeiros. Cumprem com esse papel as políticas de manutenção de superávits primários por parte da grande maioria dos países latino-americanos nas últimas décadas. Isto denota uma outra face da alteração do papel do Estado, considerando que a sustentação de um resultado primário positivo provoca sufocamento dos gastos públicos e reduz a intervenção do Estado mesmo (ou inclusive) nas áreas que seriam, por definição, de sua responsabilidade, o que significa fundamentalmente perdas sociais, de tal forma que esta esfera – e toda a dinâmica da economia nacional – passa, portanto, a ser subordinada aos interesses e humores do capital financeiro globalizado.

Todas estas colocações delineiam a percepção importante de que os processos de abertura e desregulamentação levam a uma elevação hierárquica daqueles relacionados ao setor financeiro, relegando o Estado a um mero instrumento garantidor da segurança nacional, dos direitos de propriedade e de um aparato legal que permita a fluidez dos movimentos do mercado. O Estado passa a ser, portanto, uma espécie de garantidor da nova estrutura de acumulação e assim o é porque, aparentemente, o jogo de forças que o compõe passa a ser

dominado por essa “aristocracia financeira”, cujos interesses assumem caráter de urgência e prioridade.

Isso torna mais robustos os argumentos em favor da existência da financeirização, de modo que, no mínimo, o que se tem é um novo guia ou um novo fator determinante e condicionador da capacidade de crescer (e se desenvolver) das economias periféricas.92 E o que nos leva a crer que esse guia é a própria esfera financeira (ou o grupo rentista) é, afora o anêmico crescimento do produto nos países latino-americanos nas décadas de 80, 90 e na atual, frente a um incremento substancial dos estoques financeiros,93 a observação assumida por Epstein e Power (op. cit.), Epstein e Jayadev (op. cit.) e Gonçalves (2006) de que os ganhos financeiros ocorrem em detrimento daqueles referentes ao fator trabalho, evidenciando, mais uma vez, a ideia de atropelamento em relação à esfera produtiva.

Ademais, se entendemos o processo de financeirização como um processo que “tende a desenvolver-se toda a vez em que a acumulação de riquezas está assegurada preponderantemente por conversão direta da forma monetária em mais valor sob a forma monetária ou financeira” (BRUNO, 2005, p. 6), sendo que “a necessidade de conversão indireta através das alocações produtivas da poupança das famílias e das empresas é reduzida pela detenção de ativos financeiros, por natureza, mais líquidos e de menor risco” (Idem, ibidem, p. 6) e se, adicionalmente, entendemos o capital financeiro como “aquele que obtém excedente econômico predominantemente por meio de atividades rentistas e de valorização fictícia do capital produtivo” (GONÇALVES, op. cit., p. 27), considerando que “a atividade rentista implica recebimento de juros, enquanto a valorização fictícia dispensa o processo de produção (via valorização de ações, títulos e derivativos)” (Ibid., p. 27), nos parece lícito afirmar que todas aquelas alterações apontadas no que diz respeito ao processo de acumulação nas economias periféricas conduzem à interpretação acerca da constituição de uma forma de acumulação que tem à sua frente os grupos rentistas sustentados num regime monetário- financeiro em plena conjunção com seus interesses particulares.

92 Aqui vale uma importante ressalva: quando pensamos em “capacidade de crescer e desenvolver das economias

periféricas”, nos referimos a uma questão de grau, isto é, à margem de manobra que está posta para os países periféricos nos marcos do capitalismo dependente, sem com isso fazermos qualquer defesa – antes o contrário – das teses que entendem o desenvolvimento como um processo que se dá por etapas, como numa espécie de continuum evolutivo.

93 Bruno (2009), mostra que a razão estoque de ativos financeiros, estoque de ativos produtivos no Brasil salta de

Isto posto, se, de fato, todos aqueles que abraçam as teses da financeirização têm sua proposição confirmada, vem à tona a ideia de que uma economia periférica que tem em sua cabine de comando o setor rentista está sujeita a uma intensa fragilidade financeira e aos impactos de potenciais crises financeiras sempre em germinação num tipo de regime de acumulação como o descrito. Retomaremos essa questão mais adiante, quando da reflexão sobre a condição dependente hoje.

5.2 O caso brasileiro como emblema da financeirização dos países periféricos latino-