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Por Lama Jigme Lhawang

Pergunta:

Gostaria de entender melhor o carma, a consciência substrato onde ficam armazenados as marcas karmicas, se há um carma e uma consciência coletiva ou é individual, saber mais sobre a reencarnação, sobre os sucessivos renascimentos, conforme nossas ações (Karma). Realmente podemos renascer como animais, ou como descrito nos textos nos reinos dos deuses, semi-Deuses, humanos, famintos, infernos e animais?

De acordo com o budismo cada um de nós é dotado de um continuum mental individual onde impressões são registradas (atitudes mentais ou karma) no que é chamado de consciência substrato (alayavijnana em sânscrito). Temos uma natureza cônscia sutil livre da dualidade que sepera a realidade subjetiva da objetiva. Desta natureza, a partir de suas qualidades e potenciais naturais, brotam projeções mentais duais como ondas passageiras em um vasto oceano ou como reflexos em um espelho. Há um momento onde a consciência não-dual livre se permite estreitar e cai para dentro de um referencial dual, se

auto-percebendo separada de uma realidade externa

independente. Neste momento a mente se fixa nesta experiência e desta fixação é registrado impressão karmica em nossa consciência substrato. Neste momento temos uma semente karmica, ou impressão que poderá servir como causa direta ou indireta para o brotar de outra atitude mental ou karma quando as condições apropriadas se agregarem. Assim temos a cadeia causal de causas diretas, condições indiretas, ações ou atitudes mentais, e resultados ou efeitos que por sua vez tem o potencial de servirem como causas para outros eventos mentais se manifestarem.

As impressões registradas na consciência substrato são individuais porém as marcas que ali são impressas surgem através de relações co-dependentes entre observador e aquilo que é observado, ou seja, relações que estabelecemos com as coisas,com o mundo e com as pessoas.

A consciência substrato é um continuum mental individual porém o que é ali marcado são instantes de consciência relacionais e contextuais. Por exemplo, certo dia, pela manhã, tenho uma discussão com um amigo, a tarde me apaixono por

uma pessoa e a noite em minha meditação diária brota em meu coração uma profunda compaixão e amor por todos os seres. Em cada uma destas experiências foi registrado algo na consciência substrato. Quando contemplamos sobre elas, percebemos que em cada uma delas ocorreram estados mentais baseadas em algum tipo de relação e contexto, seja físico, emocional ou cognitivo.

Podemos pensar, será que há uma diferença na discussão ter acontecido pela manhã ou pela noite, no trabalho ou em um

parque, em público ou em privado? Será que o contexto

influencia no que é registrado através dos estados de consciência ou atitudes mentais naquele momento? Podemos vir a identificar que sim, que o contexto exerce uma influência direta em nossos estados mentais. Na outra circunstância nos apaixonamos a tarde. Novamente, o que é registrado em nossa consciência substrato é relacional (com alguém ou algo) e contextual (ambiente, pessoas, clima, luz, barulho etc). Quando meditamos a noite, também, mesmo que estejamos sozinhos, iniciamos nosso caminho de meditação com uma identidade, um eu, uma sensação de individualidade - aquele que tem interesse por meditação, um meditador. Este meditante traz para o seu sentar as marcas de suas identidades relacionais e contextuais e irá trabalhar e iluminá-las através da meditação. Começamos a descobrir o universo das marcas de um coletivo mental, registros de nossas experiências coletivas em nossa consciência substrato.

Ainda que diferentes pessoas tenham diferentes experiências

em uma mesma relação e contexto, haverão momentos onde

nos aproximamos em nossos próprios mundos internos

significados e propósitos. Por exemplo, em uma conversa entre amigos, partilhamos de desafios diários no trabalho e, aquele amigo que começou a meditar, lembra que a meditação lhe tem ajudado muito. Aqui, uma semente carmica que o meditante tem sobre a meditação engatilhou a partilha que lança sementes na consciência do outro amigo que talvez vá pesquisar ou aprender sobre meditação. Ou seja, primeiro semeamos coisas positivas em nossa consciência substrato que são relacionais de

acordo com o nosso contexto de vida. Em seguida, caso

cuidarmos da terra, do adubo, da água onde estas sementes foram plantadas elas irão começar a ter efeitos em nossa vida e

estados mentais e, obviamenente, nas relações que

estabelecemos com o mundo e com as pessoas.

O coletivo é um agente participativo na formação de nossa consciência e de nosso ser pelo contato que estabelece entre

seus membros. Este contato produz pensamentos,

posicionamentos, perspectivas, idéias, motivações e metas que são registradas em nossa consciência substrato.

Assim, temos uma consciência substrato individual, onde estão impressas marcas de experiências relacionais e contextuais. Devido a isso podemos falar de karma individual e de karma coletivo. O karma coletivo não quer dizer que em algum lugar há uma mente coletiva onde estão registradas todas as marcas de todos os seres nos incontáveis universos mas que as marcas de um continuum mental individual são partilhadas por um grupo maior de pessoas.

Percebemos claramente isso quando conhecemos novas culturas. Há certos hábitos culturais bem como formas de pensar e se relacionar, perspectivas e assim por diante, bem

diferentes de um país para outro. Ou seja, há um karma coletivo claro, relacional, contextual. Tanto um karma como impressões genéticas também. Há karmas coletivos mundiais também como, por exemplo, a sexualidade. Praticamente todos nós humanos temos algum tipo de atividade sexual, temos registros em nosso cognitivo e emocional sobre a sexualidade.

Portanto, se cada um desenvolver um modo de vida positivo, estaremos transmitindo estas atitudes mentais para outros

através de nossas relações que, se encontrarem espaço e

interesse para serem cuidadas e nutritas, farão parte da vida de outras pessoas, criando gradualmente um karma compartilhado por um número maior de pessoas.

O karma se manifesta em cada atitude mental. Não é

propriamente o movimento, expressão ou manifestação livre da mente que cria karma. Eu sempre gosto de citar um ensinamento que o grande mestre indiano Tilopa deu a seu discípulo Naropa: "Filho, não são as aparências que lhe prendem mas sua fixação a elas é que lhe aprisiona. Corte através da fixação, ó Naropa!" Ou seja, não é o surgimento de aparências ou da atividade mental que cria karma, que nos condiciona e aprisiona, mas nossa atitude mental frente ao que esta surgindo. Se nos fixarmos a experiência que surgir como sendo algo separado, independente do mundo interno do sujeito, estaremos criando karma. Nossa atitude mental e intenção na relação com nossas experiências individuais, que nada mais são do que mente, é que cria marcas kármicas.

Nossas pré-disposições revelam os condicionantes que formam eventos mentais. Estas impressões habituais quando se separam do corpo físico no período de transição da morte

buscam um novo corpo ou veículo que possa sustentar e realizar suas pré-disposições. Assim surge a noção dos seis reinos na cosmo-psico-logia budista. Estes reinos não existem em nenhum lugar separado de nosso universo mental. É como se fossem experiências de uma natureza de sonho que contém um tipo de condicionamento habitual distintos uns dos outros. Veja, tomamos a emoção do medo como referencial por onde experienciamos o mundo. A partir desta experiência de medo procuramos corpos que tenham características que nos protejam daquilo que tememos. Assim, muitos vivem em casas gradeadas em condomínios fechados, vestem coletes a prova de balas, andam armados e dirigem carros blindados. É como se

este mesmo corpo humano quando aromatizado a partir de

certos estados mentais e emotivos buscasse se atualizar para poder sobreviver, adaptando-se e ajustando-se a cada situação psico-emocional e contextual.

Quando falecemos nossa consciência dual mantem-se em um fluxo senquencial contínuo de eventos mentais encadeados e inter-relacionados engatilhados a partir destas impressões

karmicas registradas em nossa consciência substrato.

Dependendo da medida e proporção do que esta ali registrado, teremos atitudes mentais que irão buscar suporte em algum veículo, corpo ou forma para sobreviverem. No instante da separação da consciência do corpo físico após a transformação dos 5 elementos a consciência irá vaguear a partir do que for engatilhado karmicamente. Neste vaguear ela pode ser carregada a buscar um novo corpo de acordo com as impressões de hábitos mentais positivos e negativos criados na vasta teia karmica de inter-relações. Na classificação dos seis reinos entre uma rede de causas e condições que levariam alguém a nascer, por exemplo, no reino dos infernos, um estado mental se

sobressai - o medo, a aversão, raiva, ódio, maldade. Caso houver um registro em grande proporção e intensidade deste estado mental haverá grande possibilidade de re-nascer em uma condição na qual há muitas pessoas que tem raiva e-ou medo de você, que querem lhe prejudicar, lhe fazer mal, e até mesmo acabar com sua vida. Por exemplo, podemos viver em uma mesma cidade ou até mesmo em um mesmo bairro. Neste bairro vivem diferentes pessoas com trajetórias e contextos psico-físicos e financeiros distintos. Dependendo do contexto do moradar de tal bairro teremos a grande possibilidade que diferentes moradores experienciem o bairro das mais variadas formas. Ou seja, fisicamente estão na mesma localidade, porém, mentalmente vivem diferentes esferas de realidade ou reinos de experiência.

Seque a mesma compreensão para os outros 5 reinos. O reino dos pretas (seres famintos) onde o estado mental da avareza é predominante. O reino dos animais onde o estado mental predominante é a preguiça e obtusidade mental. O reino dos devas (ou seres celestiais) onde o orgulho e a superioridade é predominante. O reino dos semi-devas onde a inveja e auto-importância é predominante. E, o reino dos humanos onde o desejo, o apego e a ganância nos assola.

Hoje temos como um fato seres (incluindo animais) nascidos

em um corpo masculino porém com uma 'mente' feminina, e

vice-versa. Entre os humanos, há certos casos de um desejo intenso em obter o corpo certo, aquele corpo que se encaixa com nossos estados mentais de forma mais harmonica. Deste desejo intenso temos o potencial de alterarmos nosso corpo para que atenda nossos estados mentais. Da mesma forma, temos que estar conscientes de nossos desejos e aspirações pois

eles podem criar registros que nos impulsionem a nos atrair por um determinado contexto ou forma psico-física. Portanto,

aqueles que um dia olharam para um o contexto de um

cachorro ou outro animal e desejaram poder ser um cachorro (ou qualquer outro animal) criaram registros em sua mente de atração ou aversão por um determinado contexto que, após a morte, dependendo das condições assessoras que se agregarem

podem engatilhar a mente em uma determinada direção ou

outra.

A mente completamente desperta e iluminada de um Buddha não está sujeita ao karma pois não há mais karma nela. Ou seja, não há mais qualquer condicionamento ou impressões de um fluxo mental individual. A individualidade da consciência substrato foi transformada e realizada em sua natureza última

livre de qualquer condição, divisão, identidade ou

individualidade. Um Buddha não se move mais pelo seu karma mas se expressa de acordo com a necessidade, capacidade e pré-disposições dos seres.

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